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ÍNDICE TEMÁTICO 
47
Ficções em Psicanálise
ano XXIII - Dezembro 2011
182 páginas
capa: Malu Pessoa
  
 

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Resumo
O artigo apresenta a Rede de Atendimento Psicanalítico, problematiza seu funcionamento e discute a questão da grupalidade, da ética e da montagem de redes de trabalho na formação do psicanalista. Partindo de uma breve retomada da história da psicanálise e de suas formações grupais, e de certas maneiras de conceber a grupalidade, os autores situam a Rede em um projeto ético-político de formação continuada do psicanalista.


Palavras-chave
grupo; fantasias; ética; história da Psicanálise.


Autor(es)
Fernando da Silveira
é psicólogo e psicanalista, aluno do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Grupo de Trabalho e Pesquisa em Dinâmicas Grupais desse mesmo Departamento, professor de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Clarissa  Metzger
é psicanalista, membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade do Departamento de Psicologia Social pelo IPUSP, doutoranda em Psicologia Clínica pelo IPUSP, coordenadorea dos cursos de Acompanhamento Terapêutico do Instituto A CASA.

Paula Regina Perón Perón
é psicanalista em formação no Instituto Sedes Sapientiae, doutora em Psicologia Clínica pela PUCSP.


Referências bibliográficas

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Abstract
The article presents the Psychoanalytic Service Network, discusses his operation and discusses the groupality, ethics and assembly of networks in the formation of the psychoanalyst. Starting with a brief resume of the history of psychoanalysis and its group formations, and certain ways of conceiving groupality, the authors place the network in an ethical, political psychoanalyst's continuing education.

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 TEXTO

Sobre o grupo psicanalítico e a difusão da Psicanálise – contribuições de uma experiência de rede.

About the psychoanalytical group and diffusion of Psychoanalysis – contributions of a network experience
Fernando da Silveira
Clarissa  Metzger
Paula Regina Perón Perón

Introdução

O presente artigo tem como objetivo relatar a experiência de construção de uma rede de psicanalistas, a Rede de Atendimento Psicanalítico[1], seus objetivos e vicissitudes, e refletir sobre essa construção em articulação com a constituição de grupos e instituições na história do movimento psicanalítico. A difusão da psicanálise traz uma série de desafios para os psicanalistas na contemporaneidade, inclusive naquilo que diz respeito a se estabelecer como analista reconhecido por seus pares, adotando uma filiação e aderindo - ou não - às instituições. Finalizamos o artigo com uma discussão sobre a questão da ética em articulação com a nossa concepção da Rede de Atendimento Psicanalítico.

 

Pluralidade do campo e grupos psicanalíticos

O exame da história do movimento psicanalítico, incluindo suas rupturas e expulsões, constitui uma das facetas do estudo da teoria psicanalítica. Para René Kaës[2], o grupo é a matriz fecunda e traumática da psicanálise. É no agrupamento que a psicanálise pode ser construída e transmitida. Freud precisou de um grupo para levar adiante a psicanálise, e o movimento analítico é herdeiro da teoria desenvolvida por ele. Mas é no grupo que os conflitos entre psicanalistas são atualizados ao longo da história: quem seria o legítimo herdeiro de Freud? Ao estudarmos essa história, conhecemos como se construíram determinados referenciais teóricos e o que os torna diferentes de outros e, principalmente, compreendemos em que consiste o campo psicanalítico. Nem sempre estão em jogo apenas questões teóricas e muitas vezes as questões institucionais têm grande peso no surgimento ou desaparecimento destes referenciais[3].

 

Na historiografia psicanalítica, a pesquisa das gerações de psicanalistas permitiu muitos esclarecimentos: a genealogia dos sucessores de Freud, o encadeamento das interpretações da obra original, a formação e sucessão das escolas, a dialética dos conflitos que levaram às cisões e às diferenças implícitas na compreensão teórica.

 

Os primeiros trabalhos historiográficos foram redigidos pelo próprio Freud, e ele entendeu que, por mais isolado que trabalhasse um intelectual, pertencia a uma comunidade de pesquisadores e a determinado momento histórico[4].

Nascida no coração do Império Austro-húngaro, a psicanálise seduziu uma primeira geração de pioneiros de língua alemã e posteriormente conquistou a Suíça, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Ao longo de toda esta expansão e desenvolvimento, Freud elegeu seus grupos favoritos e rompeu com outros. Houve grupos privilegiados como, por exemplo, o Comitê Secreto (1912-27), que objetivava preservar a doutrina psicanalítica de qualquer forma de desvirtuamento ou má interpretação.

 

A primeira geração internacional compôs-se dos primeiros discípulos de Freud, reunidos em Viena, no seio da Sociedade Psicológica das Quartas-feiras (1902), que formava um grupo de discussão. Foi, entretanto, dissolvido em 1907 por Freud, já que estava repleto de divergências e rixas. Freud restabeleceu formalmente a Sociedade das Quartas-feiras como Sociedade Psicanalítica de Viena; mais tarde, em 1910, será fundada a Associação Internacional de Psicanálise e, a partir daí, outras Sociedades Psicanalíticas locais. Com estas breves informações históricas, percebemos que os psicanalistas, desde o início, constituem-se em grupos e que as relações intragrupais são bastante complexas e nem sempre pacíficas.

 

Nos grupos iniciais certamente não havia unidade entre as leituras da teoria freudiana e os trabalhos desenvolvidos por seus discípulos, embora Freud atribuísse grande importância à uniformidade da psicanálise, tendo rompido com partidários e trabalhado para a vigilância da sua difusão. Conforme vemos em "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise"[5], se, por um lado, as regras técnicas são suprapessoais, por outro, Freud admite que as mesmas regras têm alguma relação com a sua própria individualidade e que, portanto, profissionais diferentes podem gerar diferentes práticas psicanalíticas. Felizmente, embora a psicanálise tenha sido institucionalizada sobre uma base firme, não se transformou em uma teoria fossilizada. No entanto, para garantir coerência em meio às diferentes leituras e práticas psicanalíticas, Freud propõe princípios básicos que definem a psicanálise:

 

As pedras angulares da teoria psicanalítica - A pressuposição de existirem processos mentais inconscientes, o reconhecimento da teoria da resistência e recalque, a apreciação da importância da sexualidade e do complexo de Édipo constituem o principal tema da psicanálise e os fundamentos de sua teoria. Aquele que não possa aceitá-los a todos não deve considerar-se a si mesmo como psicanalista.[6]

 

Aceitos estes princípios, a experiência clínica dos novos analistas e o aprendizado que dela deriva poderiam transformar a psicanálise.

 

No entanto, se já com a presença de Freud não havia consenso, após sua morte a situação não melhorou. Se Freud era antes o fiador da verdade sobre a psicanálise, na sua ausência, faz-se necessário instituir normas que delimitem o que é válido, ou não, no campo psicanalítico - tarefa que parece nunca ter sido totalmente levada a cabo, dadas as eternas discordâncias entre as linhas sobre o que é ou não é psicanálise.

 

Não se pode deixar de levar em conta também que qualquer teoria psicanalítica resulta do cruzamento de muitas perspectivas envolvidas na elaboração da experiência psicanalítica: formulações conceituais, análise do analista, momento cultural, discurso dos pacientes, etc[7]. Depois de Freud, surgiram na psicanálise desdobramentos e modificações teóricas relacionadas à prática clínica dos psicanalistas, influenciadas por suas personalidades e biografias, que, submetidas a determinadas comunidades de analistas, foram aceitas ou refutadas.

 

Mezan exemplifica tal diversidade apontando que um analista kleiniano e um lacaniano não escutam a mesma coisa porque partem de teses bastante diferentes sobre a natureza do inconsciente, sobre as finalidades do processo analítico, sobre o que significa escutar. Nenhum dos dois está fora da psicanálise, já que produzem teses psicanalíticas sobre objetos psicanalíticos, respeitando o que Freud propõe como pedras angulares da teoria psicanalítica.

 

Como em outros grupos psicanalíticos, na Rede, da qual nos propomos a falar, a teoria de Freud está em um plano diferente da teoria de outros autores; ela não foi suplantada por nenhum pós-freudiano e continua sendo elemento constitutivo do que veio depois. Desta maneira, Freud segue fornecendo os parâmetros básicos do campo balizado pelo inconsciente, bem como a prática clínica, de onde advêm processos psíquicos a serem examinados por escutas singulares de analistas cuja formação está codeterminada por análise pessoal, cursos e supervisões oriundas de diferentes contextos.

 

Em nossa experiência de Rede, verificamos que a questão da pluralidade do campo, apesar de complexa, aponta para a vitalidade da psicanálise. Se a diversidade teórica traz o risco da fragmentação do campo psicanalítico, o predomínio de uma única forma de se fazer psicanálise aponta para o risco do enrijecimento e da estereotipia.

 

As instituições psicanalíticas são formadas pela consolidação de normas que regulam o campo, aquilo que, a partir do jogo de forças entre psicanalistas, torna-se instituído e fornece a base na qual toda prática se desenvolve. Levando em conta o fato de que o movimento psicanalítico é, desde sua fundação por Freud, formado por grupos, conforme já abordado nesse texto, entendemos que o estudo sobre eles pode trazer importantes contribuições para nos auxiliar na reflexão sobre o que está em jogo nos agrupamentos formados pelos psicanalistas, principalmente naquele que nos interessa especialmente nesse artigo, qual seja, a rede de analistas e a relação dos seus membros com a rede em si.

 

A questão do grupo e a teoria psicanalítica

Em "Psicologia de grupos e análise do ego"[8], Freud entende a psicologia do grupo como voltada para o estudo da igualdade, da equalização entre os membros do grupo em um todo homogêneo, cabendo apenas ao líder a possibilidade de diferenciação:

 

o pai primevo impediria os filhos de satisfazer seus impulsos diretamente sexuais; [...] ele os forçara, por assim dizer, à psicologia de grupo. Seus ciúmes e intolerância sexual tornaram-se, em última análise, as causas da psicologia de grupo[9].

 

Este modelo de agrupamento se repete como um retorno do recalcado, ao longo da história do movimento analítico, com a formação de escolas em torno de um líder: os analistas tomariam seu líder como ideal de eu e assim alimentariam o narcisismo daquele, em troca da possibilidade de identificar-se com esse líder, desde que respeitado o interdito de tomar seu lugar.

 

No entanto, se o líder imprime uma marca quando inaugura um grupo, se mantém a libido dos membros do grupo voltados para si por certo tempo, não podemos esquecer que as rupturas dentro dos grupos são praticamente regra entre os psicanalistas, por motivos os mais variados. Exemplos não faltam na história do movimento psicanalítico desde suas origens, conforme comentado no início desse artigo, até os dias de hoje.

 

René Kaës propõe ampliar a compreensão da relação entre os sujeitos e os grupos. Apoiado no conceito de narcisismo de Freud, entende que o sujeito vive uma dupla existência: por um lado, procura atingir seu próprio objetivo de sobrevivência, mas, ao mesmo tempo, é membro de uma cadeia geracional à qual está submetido. Na sua relação com o grupo, ora o sujeito tende a se diluir e a perder suas fronteiras, ora tende a se diferenciar. Freud referiu-se a alguns aspectos do grupo que Kaës entenderá como um de seus polos, o isomórfico: aquilo que Freud descreveu como massa, objeto comum a todos os membros, com perda dos limites individuais, predominando a homogeneidade mental, negando as diferenças, separações entre o aparelho psíquico grupal e o espaço psíquico subjetivo. É, sem dúvida, necessária para a manutenção do grupo. O grupo se constitui neste polo como uma entidade específica, dando a ilusão de massa, corpo indivisível, imortal, onipotente. Esta construção imaginária acalma, mas, por outro lado, também ressuscita angústias arcaicas[10].

 

Se o caráter homogeneizante do grupo é inegavelmente uma de suas facetas, não podemos desconsiderar que os grupos não são apenas contrários ou opostos à singularidade, mas também servem como suporte para que ela possa emergir, contanto que certas condições sejam observadas. Kaës entende que o polo homomórfico mantém uma relação dialética com o isomórfico:

 

O polo homomórfico é o da diferenciação entre o aparelho psíquico grupal e o individual e faz possível que a relação entre cada um com o grupo possa ser elaborada. Para isto, as proibições estruturantes devem ser enunciadas e integradas e a Lei de grupo precisa suportar e conter conflitos, contradições, separações. A integração das diferenças se produz no mesmo momento em que se efetua o acesso ao simbólico: uma palavra individual pode surgir na medida em que o jogo de assinalamentos está regulado pela Lei de grupo e não pela onipotência de um tirano, de um ideal cruel e mortífero da lei do grupo[11].

 

A Lei ganha função central nesse polo por ser fiadora dos ganhos obtidos mediante inibição dos impulsos hostis e das vantagens advindas da inibição da expansão do narcisismo. Tal função era anteriormente exercida pela figura do líder, mas neste caso, como proposto por Kaës, com a vantagem de ser supraindividual e o fruto da interação entre diferentes agentes. Entendemos que, quanto mais horizontal for o funcionamento de um grupo, maior será a possibilidade de a Lei ser o fruto dos acordos estabelecidos entre os pares e mais aberta estará para a revisão em função de novas proposições. Tal proposição de relação com o espaço coletivo é extremamente condizente com os princípios de um modelo de organização em rede. Metaforicamente falando, a rede pode ser concebida como um grupo cujos integrantes, entendidos como os nós que amarram essa rede, se relacionam a partir de certos combinados coletivos, que os unem e ganham o valor de lei grupal a qual, por sua vez, interfere na amarração desses nós que constituem a rede, fortalecendo-os ou desfazendo-os e eventualmente mudando a maneira de amarração.

 

Diversos grupos psicanalíticos vêm procurando trabalhar a partir da horizontalidade. A própria fundação do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae é fruto do questionamento da estrutura piramidal das Sociedades de Psicanálise associadas à International Psychoanalytical Association, ipa. O grupo que especificamente nos interessa aqui apresentar e discutir é a Rede de Atendimento Psicanalítico. Ela surgiu em 2001, pela iniciativa de analistas ligados ao Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae.

 

Rede de atendimento psicanalítico - um projeto ético-político

Partindo da concepção acima, a Rede tem como principal objetivo: o fortalecimento da clínica de seus analistas, por meio da interlocução e discussão clínica entre psicanalistas de diferentes linhas e que estejam em diferentes etapas de sua formação, assim como pela formação de uma rede de encaminhamento.

 

O modelo de funcionamento em rede coloca-se como um horizonte ético-político, ainda que sua radicalidade e inovação dificultem sua realização plena. Segundo Whitaker[12], uma das dificuldades em se implementar uma rede é que a nossa educação tradicional é muito mais voltada para estruturas piramidais, pautadas na hierarquia, do que no modelo de rede. Trabalhar em rede envolve uma mudança de paradigma que na prática nem sempre é simples. Há uma forte tendência em se delegar funções e responsabilidades em detrimento de uma ação mais ativa dos membros. Segundo este autor, na medida em que as responsabilidades são divididas, uma rede depende da iniciativa dos seus membros para que possa ser mantida. Neste caso, o investimento libidinal, em vez de ser voltado para um líder, como descreveu Freud nos grupos organizados, deve ser voltado para a realização de uma tarefa comum; neste caso, a tessitura e manutenção da rede. Para que uma rede possa funcionar plenamente, deve haver, portanto, o predomínio do polo homomórfico, embora o polo isomórfico esteja sempre presente.

 

Como todo grupo, a Rede também oscila entre estes dois polos. Não podemos nos iludir com a ideia de que a Rede não apresente características do polo isomórfico, tais como: a tendência ao indiferenciado, a busca por um líder, a crença de que somos todos iguais ou a ilusão de que na Rede estamos protegidos. Tais características do polo isomórfico também estão presentes em todas as instituições psicanalíticas. Discutimos acima que estas são tradicionalmente piramidais e organizadas em torno de líderes, e que as diferenças representam muitas vezes rupturas e formação de novos grupos. Embora apresente uma estrutura de organização muito compatível com princípios fundamentais da psicanálise, tais como a alteridade e respeito às diferenças, a cultura de trabalho em rede entre psicanalistas é pouco conhecida. Psicanalistas estão muito mais habituados a cuidarem individualmente dos seus consultórios do que de um espaço compartilhado, e a Rede exige a manutenção de um espaço coletivo que depende da iniciativa de cada analista.

 

Ao longo dos 8 anos de existência, este grupo vem buscando se lançar aos desafios de se constituir como um grupo gerido de maneira horizontal e que respeite as diferenças sem que elas se tornem inferiorização ou instrumento de opressão. Este é um grande desafio, principalmente no campo psicanalítico, onde tradicionalmente as instituições são formadas em torno de homogeneidade teórica. Em uma rede, a diversidade é mais do que bem-vinda e deve ser trabalhada no sentido da ampliação dos horizontes. A lei de grupo, supraindividual, tem a função de conter os conflitos advindos da diferenciação de seus componentes sem que a diferença se torne ameaça ao fundo comum do grupo, evitando com isto que determinado componente predomine sobre os demais no tocante ao poder que exerce.

 

Claro que, na prática, esta é uma questão que traz uma série de dificuldades, afinal muita coisa pode ser encoberta em torno de uma suposta diversidade. Enfrentamos o desafio de lidar com diferentes linhas teóricas, momentos de formação, experiência clínica e concepções sobre a gestão dos bens coletivos: há, entre nós, alunos recém-formados dos cursos de especialização, analistas com um percurso um pouco maior, assim como professores universitários. Como não pretendemos um controle estrito sobre a prática de cada membro, entendemos que todos que pretendem participar da rede devem estar comprometidos com suas formações - o que é critério para aprovação na seleção feita com os interessados em ingressar na Rede como membros. Assim, a lei de grupo que rege a Rede e garante a coesão grupal é dada pelo próprio campo psicanalítico e, para fazer parte da Rede, todos os membros devem estar situados neste horizonte normativo.

 

No entanto, desvencilhar-se de um líder não representa tarefa simples. A fundação e os primeiros anos da Rede estiveram ligados a um profissional mais experiente que ocupava o lugar de líder do grupo, no qual se manteve por alguns anos. No entanto, para que pudesse colocar em prática de modo pleno seus princípios, a Rede precisou romper com o modelo frequentemente estabelecido no campo analítico de agrupamento, descrito por Freud, em torno de um líder: uma rede não pode ter um líder ou pertencer a uma pessoa, caso contrário não será uma rede, mas outra forma de organização. Não existe uma rede de x ou y mas x e y que compartilham um projeto comum organizado como rede.

 

A contribuição que esta Rede tem a trazer ao movimento analítico não é a de ser um novo polo de produção teórica no campo psicanalítico, embora diversos membros da Rede possuam produções individuais. Não visa se tornar uma nova escola de psicanálise, que se agrupa em torno da produção teórica de uma ou outra linha dentro da psicanálise: muitos de seus membros são ligados às escolas de psicanálise reconhecidas. Também não tem como objetivo ser uma rede de apoio de um analista com maior percurso na psicanálise que, por sua vez, alimentaria a rede com seus encaminhamentos. Trata-se, isso sim, de uma prática solidária que surge como alternativa à prática solitária frequentemente associada à clínica psicanalítica e que busca, apesar das dificuldades, trabalhar predominantemente no polo homomórfico, onde há a possibilidade de diferenciação sem que isto represente a ruptura com a lei do grupo.

 

Tal como no movimento entre o narcisismo e a alteridade, a abertura para o mundo torna-se um princípio fundamental do funcionamento em rede. Reconhecendo que toda instituição é incompleta e não pode dar conta de tudo, a Rede e seus participantes devem estabelecer conexões com o mundo, seguindo o princípio da incompletude institucional. Nela, um lugar de pertencimento não dará conta de todas as necessidades. Os membros da Rede estão engajados em outros projetos nas mais variadas instituições do movimento analítico fazendo suas formações, grupos de estudo, pesquisas. Mas encontramos na Rede um grupo de pertencimento que nos ajuda a pensar e estruturar as nossas práticas, que permite um diálogo horizontalizado entre analistas em diferentes pontos de sua formação e fomenta também a clínica de seus membros sem depender de encaminhamentos de um analista mais experiente - embora a rede receba encaminhamentos inclusive de analistas com percursos longos dentro da psicanálise.

 

Certamente este modelo está em oposição com outro modelo típico de instituição psicanalítica, onde predominam a hierarquia, a interdição do questionamento às normas e aos poderes narcísicos instituídos, a repetição dos circuitos de circulação de poder e saber e as identificações narcísicas. Nenhum psicanalista deve estar livre de questionar sua própria posição: "Cada analista, não importa o que pode fazer a sociedade em que está inserido, não cessa de ter que construir, de modo interminável, seu lugar de analista e seu reconhecimento"[13], mas para isto teremos que admitir nossos pontos de vista e formular soluções, mesmo que provisórias.

 

Há ainda um ponto a discutir: a formação de redes de encaminhadores, uma tarefa árdua para todos. Com frequência, as redes constituem-se em torno de pessoas com renome na área e/ou que ocupam posições estratégicas nas associações e escolas de psicanalistas. No início dos anos 1970, no Brasil, quando a principal questão do movimento analítico era a busca da verdadeira psicanálise, a garantia de um bom analista supostamente era dada pelo seu pedigree: a que associação de psicanalistas pertence? Com quem fez análise, com quem fez supervisão? Aqueles que se intitulavam herdeiros diretos de Freud, que haviam feito análise com Melanie Klein ou Bion, tornavam-se os herdeiros legítimos e, portanto, os bons psicanalistas; por mais absurdas que pudessem ser suas práticas, seus consultórios viviam lotados. Grupos eram formados em torno destas figuras na tentativa de uma espécie de reserva de mercado. A luta pelo controle do mercado era tão acirrada que, com exceção de São Paulo, no Brasil, somente os médicos podiam realizar formação em psicanálise neste período[14]. A questão da expansão da psicanálise esteve por muito tempo associada à ideia de sua distorção, tanto teórica quanto prática. Nesse contexto, o pedigree tinha como fundamentação a busca de controle de qualidade. No entanto, com o fim do boom da psicanálise no Brasil, que teve vez ao longo dos anos 70 e 80 do século passado, o esvaziamento de muitos consultórios forçou o movimento analítico a se rever.

 

Se, por um lado, a discussão entre as diversas linhas da psicanálise sobre quem detém a verdadeira psicanálise tornou-se um tanto anacrônica, uma vez que a pluralidade de linhas está colocada, a formação de redes de encaminhamento continua sendo um desafio para os analistas. Os jovens analistas com frequência iniciam sua clínica apoiados em figuras notórias a quem pedem supervisão, por exemplo. Ao mesmo tempo que o supervisor ajuda o analista a iniciar a tessitura de uma rede de encaminhamentos indicando a ele pacientes, mantém a sua própria rede na medida em que o jovem analista também indica a ele pacientes e supervisionandos. Como é sabido, os próprios psicanalistas formam um grande mercado para a psicanálise. Por outro lado, a psicanálise não é uma mônada, muito pelo contrário: propõe-se a ser um campo aberto ao diálogo e às intersecções com as mais diversas áreas da sociedade e do saber, como a saúde, educação e trabalho, atendendo sujeitos com formações profissionais completamente distantes da formação psicanalítica. Resta abordar com mais detalhe outro aspecto: a espinhosa questão da difusão da psicanálise.

 

Difusão = distorção?

Desde Freud, a questão da difusão da psicanálise e da sua ampliação trouxe muita discussão. Em alguns momentos, Freud falava da difusão como distorção, enfraquecimento, popularização, vulgarização, abastardamento, simplificação, diluição, etc[15]. Por outro lado, é sabido que onde há psicanálise há difusão e penetração nos aspectos significativos de uma cultura. Mas será que é possível que haja difusão sem banalização, simplificação da psicanálise?

 

Há um grande contraste entre o que Freud e os primeiros psicanalistas fizeram para a difusão da psicanálise e o que diziam sobre isto. Se em 1919[16] Freud afirmava que "É muito provável, também, que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta", também sabemos que ele tinha enorme interesse na difusão e no reconhecimento da psicanálise (a ponto de ter sonhos sobre o assunto), proferindo conferências para muitas plateias, construindo instituições e estratégias para garantir a existência e a expansão do conhecimento e da profissão psicanalíticas.

 

Certamente, em alguma medida a psicanálise difundida, ou seja, acessível a mais e mais pessoas, utilizada como teoria de referência em diferentes instituições, produziu concepções de normalidade e funcionamento mental que tendem para versões adaptativas e reducionistas da própria psicanálise. Por outro lado, essa mesma difusão permitiu um retorno a Freud (como o empreendido por Lacan, por exemplo) que busca justamente resgatar a fidelidade à proposta freudiana naquilo que ela tem de mais subversivo: o reconhecimento do sujeito do inconsciente e de sua singularidade, sustentando o ponto de vista de que a adaptação egoica está longe de ser a saída para o sujeito e seu desamparo. A entrada de psicanalistas na rede pública e privada, o trabalho de vários psicanalistas em hospitais e dispositivos de tratamento da Saúde Mental, por exemplo, também dão testemunho de como a ampliação pode acontecer, sem que haja deturpação da teoria. Ampliar o campo de atuação do psicanalista não é, portanto, um caminho óbvio para a banalização dos nossos princípios.

 

No número especial da Revista Francesa de Psicanálise sobre a Psicanálise Contemporânea, André Green[17] aponta algumas tendências atuais em nossa prática. Por um lado, uma corrente pragmática, para quem a psicanálise é antes de tudo uma terapêutica, responsável por seus resultados, que deve conhecer seus meios, limites e preço. Esta corrente introduz variações na cura, nos métodos, e é em geral favorável a uma simplificação da teoria em proveito da busca prioritária de eficácia. Por outro lado, uma corrente preocupada com a complexidade da experiência psicanalítica, que procura aprofundamento e reúne adeptos de diversas escolas, sem reinvindicar exclusividade de filiação a Freud. Este último grupo contém um núcleo que continua a defender a ideia de que é a partir de sua própria prática que a psicanálise deve proceder às revisões teóricas necessárias, porque continua sem igual e não se reduz a nenhuma outra forma de saber. Certamente, nós da Rede estamos aliados a esta segunda tendência.

 

Ainda há mais um ponto a pensar, embora ele não seja discutido de forma aprofundada aqui - a questão da psicanálise nacional. Figueira[18] problematiza um aspecto muito interessante da nossa psicanálise - seria ela imitação ou criação? Como se dá nossa relação com os modelos do campo internacional - absorvemos, imitamos ou criamos algo novo? Certamente, em todo lugar onde chegou, a psicanálise trouxe influências dos discípulos diretos e indiretos de Freud e, por outro lado, sofreu marcas dos valores e singularidades dos campos locais. Ainda que seja difícil pensar particularidades culturais da psicanálise, devemos insistir nesta questão e trabalhar aspectos peculiares da expansão da psicanálise no Brasil. A busca pela verdadeira psicanálise marcou fortemente os anos 1970. A fundação do curso de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae representa uma importante ruptura da tendência do movimento analítico brasileiro em reconhecer apenas a psicanálise importada da ipa como legítima. Mesmo que dependente da psicanálise inglesa e argentina para a formação dos primeiros analistas, o movimento analítico brasileiro consolidou suas instituições de formação, ligadas à ipa ou não, conquistou lugar nas universidades e representa uma importante referência na formação de diversas áreas do conhecimento, como a psicologia e a pedagogia, e recebeu posteriormente as influências diretas da psicanálise francesa.

 

É neste cenário múltiplo, peculiar e desafiador, que estamos inseridos. Na Rede, estamos preocupados, simultaneamente, com o fomento da clínica dos analistas e com a manutenção de uma posição política, levando em consideração os princípios éticos da psicanálise. Então, fazemos a divulgação conjunta de nossas clínicas privadas, ampliando as possibilidades de acesso da população em geral à psicanálise e, concomitantemente, fomentamos a prática clínica dos participantes da Rede. Isto significa reconhecer que não há clínica psicanalítica sem pacientes (o que parece óbvio, porém muitas vezes precariamente concretizado...), mas que para realizá-la não é necessário banalizar nem distorcer a psicanálise.

 

Para finalizar: sobre a ética da psicanálise e sua relação com a formação do analista

Não há como problematizar a formação de grupos de psicanalistas sem abordar a questão da ética da psicanálise. A discussão poderia, inclusive, começar por aí: existe uma ética da psicanálise? Uma, no sentido de que, dependendo da linha teórica a que nos filiemos, a ética pode tender para ênfases bastante diversas. Ética da psicanálise no sentido de que podemos nos perguntar, junto com Goldenberg[19], se existe uma ética da psicanálise, diferente da ética do cidadão. A direção apontada por esse autor é a do desejo do analista, que discutiremos brevemente.

 

A questão da ética é extensa e complexa, não temos a intenção de esgotá-la, mas sim de comentar em linhas gerais alguns norteadores de nossas concepções e suas relações com a contínua formação do analista.

 

O tripé que sustenta o analista - sua própria análise, a sua prática supervisionada e o estudo teórico - deve sustentá-lo em uma posição específica: a de analista. Podemos dizer, a partir da teorização de Jacques Lacan, que esse tripé precisa estar necessariamente orientado por um desejo peculiar: o desejo do analista, expressão por ele cunhada[20].

 

Embora a expressão lacaniana não apareça nos textos freudianos, podemos encontrar o cerne daquilo que Lacan concebe como desejo do analista em textos freudianos, como, por exemplo, "Linhas de progresso na terapia psicanalítica":

 

Assim formulamos a nossa incumbência como médicos: dar ao paciente conhecimento do inconsciente, dos impulsos recalcados que nele existem e, para essa finalidade, revelar as resistências que se opõem a essa extensão do seu conhecimento sobre si[21].

 

Ou seja, o psicanalista tem como função analisar, revelar as resistências de modo a permitir que aquele que se dispõe a ser analisado se aproprie de seu singular desejo inconsciente - por mais estranho que este possa parecer. Veremos adiante que não é tarefa do psicanalista desejar o bem para seu analisando - na concepção do Bem Supremo, ou seja, como se o analista soubesse o que é melhor para seu analisando, o que seria o seu bem - por exemplo, que ele tivesse um desejo menos estranho. Isso só seria possível partindo da concepção de que há um bem que é igual para todos. Já adiantando nosso raciocínio, é justamente da concepção contrária que a psicanálise parte: o bem é singular, assim como o desejo inconsciente também o é. De forma sucinta, poderíamos dizer que nisso reside a ética da psicanálise. Segundo Lacan,

 

Para que se trate do campo que pode ser valorizado como puramente ético, é preciso que não estejamos, de modo algum, interessados em nada[22].

 

Assim, a escuta ética na psicanálise é aquela orientada pelo desejo; desejo do analista, que tem como norte a escuta do desejo de seu analisando e não está interessado em alguma outra coisa - como no bem do paciente, conforme dissemos acima, ou em obter qualquer benefício daquela análise.

 

Na psicanálise, o principal objetivo não está na terapêutica, como ocorre nas psicoterapias. Nessas, o terapeuta sabe o que é o bem para o paciente e o auxilia a atingi-lo. Ou seja, há uma concepção apriorística do que seja o bem, uma vez que o Bem Supremo é universal, derivado do imperativo categórico kantiano: para avaliar nossa ação, devemos imaginar se qualquer outro em nosso lugar tomaria a mesma atitude: é isso que devemos desejar para o outro - inclusive para nossos pacientes. Seria essa a atitude que qualquer um tomaria em meu lugar? Em caso afirmativo, aqui estaria o Bem na concepção kantiana. Não é difícil deduzir que essa concepção se alia ao imperativo categórico superegoico: o Bem é um só e deve ser igual para todos. As psicoterapias, uma vez que não tenham uma ética própria que as norteie, ou que a derivem de campos do saber que não tenham a escuta do inconsciente como seu principal objetivo, visariam então, pelas vias mais variadas e de diversas formas, adaptar o indivíduo ao universal social, calcado na ideia de Bem Supremo. Desse modo, as psicoterapias, sem se dar conta, podem se aproximar perigosamente da moral e do senso comum.

 

Na psicanálise, a atenção está voltada para o desejo, que é singular em cada analisando, independente da coerência desse desejo com o Bem, independente de seu caráter adaptativo. Aliás, não podemos esquecer da descoberta freudiana de que a sexualidade humana é sempre infantil e não adaptativa desde sua origem. Com efeito, se a sexualidade não é instintivamente definida, uma vez que é recoberta pela pulsão, então o desejo também não o é, uma vez que é um derivado da sexualidade. Assim, abre-se um campo virtualmente infinito de possibilidades desejantes[23]. Ora, isso tem como consequência uma sexualidade desde sempre desadaptada e um desejo singular e mutante, não definido a priori ou universal[24].

 

É quanto à postura do analista perante essa singularidade que Freud nos alerta no artigo "Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise"[25] quando diz:

 

Nas condições atuais, o sentimento mais perigoso para um psicanalista é a ambição terapêutica de alcançar, mediante este método novo e muito discutido [a psicanálise], algo que produza efeito convincente sobre outras pessoas. [...] A justificativa para exigir essa frieza emocional no analista é que ela cria condições mais vantajosas para ambas as partes: para o médico, uma proteção desejável para sua própria vida emocional e, para o paciente, o maior auxílio que lhe podemos hoje dar.

 

Encontramos já aqui a preocupação freudiana com o que pode nortear o trabalho psicanalítico e o alerta de que o objetivo da análise deve ser, por redundante que pareça à primeira vista, apenas que a própria análise aconteça e não alguma outra coisa. Neste sentido, o termo "desejo do analista" está intimamente associado à própria ética da psicanálise - para Lacan, a ética do desejo. Ética regida pela escuta, por parte do psicanalista, do desejo do analisando, de modo que também este escute seu desejo próprio. Essa escuta, a serviço do trabalho analítico, busca trazer à tona o desejo inconsciente do analisando e permitir sua constante renovação enquanto tal, e, por outro lado, permitir que o desejo continue deslizando de um significante ao outro.

 

O que não significa que a análise faz um trabalho narcísico, algo como colocar o desejo individual acima da coletividade e seus valores de modo inconsequente, como pensam alguns. A assunção do próprio desejo, objetivo da análise, exige uma implicação, tanto com o desejo, quanto com suas consequências, e é evidente que o outro, o social, está aqui implicado. Tal implicação não deve resultar em culpa pelos desejos singulares e desadaptados (sentimento que o neurótico já nutre de forma exagerada e que pouco o auxilia na resolução de seus conflitos, como bem sabem os analistas), mas sim responsabilidade por seus desejos e escolhas.

 

Também não se pode tratar o desejo do analista com leviandade; não se trata de simplesmente querer ser analista, como de fato acontece em certos casos, nos quais o indivíduo está motivado apenas pelo status, poder ou lucro financeiro que isso possa trazer. Não há nada de ilegítimo em ganhar reconhecimento e dinheiro, mas isso nada tem a ver com o desejo do analista - e, portanto, com a ética própria à psicanálise. Esse desejo tem relação com analisar, com a busca do lugar de escuta que melhor elucida o desejo do analisando em suas filigranas - e, portanto, elucida aspectos de seu inconsciente, objeto, por excelência, do trabalho psicanalítico.

 

Paradoxalmente, o desejo do analista se constrói na formação do analista, em sua própria análise e em sua clínica, ao mesmo tempo que é a origem da busca contínua de formação, de análise e de supervisão - o que não quer dizer, é claro, que todos que procuram formação estejam movidos por esse desejo, conforme comentado acima.

 

Os dispositivos de formação permitem ao analista depurar seu desejo, no sentido de tê-lo mais avisado. É isso que permite ao analista não colocar em jogo na análise de outros sujeitos o seu próprio desejo e manter a escuta o mais livre possível para escutar seus analisandos orientado pelo desejo do analista - que é, sem dúvida, uma das versões do desejo do sujeito analista, mas uma versão bem específica.

 

A Rede de Atendimento Psicanalítico

Estabelecer e manter uma clínica particular pode ser condizente com esse desejo do analista. Aqui encontramos a Rede, que se propõe como um articulador que permite a um analista se dar a conhecer enquanto tal por seus interlocutores, ao mesmo tempo que entra em contato e interlocução com outros analistas em discussões sobre a clínica e sobre o funcionamento da Rede. Concomitantemente, pode receber encaminhamentos da Rede e encaminhar para colegas interlocutores. Assim, o fortalecimento da clínica de cada membro e o fortalecimento da Rede acontecem de maneira recíproca.

 

Com o passar dos anos, o tipo de exigência feita pela Rede em relação aos candidatos a membro se modificou. Se em um primeiro momento bastava estar ligado a uma instituição de formação em Psicanálise reconhecida, atualmente se exige uma implicação com a psicanálise, com sua própria formação e com a Rede. Esse tipo de exigência nos parece apontar para o desejo do analista como norteador do trabalho; aqueles que buscam a Rede porque estão interessados apenas em receber encaminhamentos para seu consultório ou em ter o status de analista pertencente a um grupo de analistas frustram-se e dificilmente permanecem.

 

Essa exigência da Rede reflete um amadurecimento conquistado ao longo de anos, que fez com que o grupo tivesse cada vez mais clareza sobre o que esperar da Rede e, portanto, que tipo de interlocutor é interessante ter como membro. Sem dúvida, o desejo do analista, tal como brevemente o expusemos nesse trabalho, se apresenta como um denominador comum entre os diversos analistas, de filiações variadas, que formam hoje a Rede de Atendimento Psicanalítico e se empenham em discutir a clínica de forma implicada, investindo constantemente em sua própria formação.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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