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Resumo
Resenha de Emilio Rodrigué, O paciente das 50.000 horas, Rio de Janeiro, Imago, 1979, 104 p.


Autor(es)
Urania Tourinho Peres
é psicanalista, membro fundador da clapp/Bahia (1970), e do Colégio Freudiano da Bahia (1988) – atual Colégio de Psicanálise da Bahia. É membro da École Lacanienne de Psychanalyse (Paris) e membro correspondente de Insistance A.E. da Escuela Freudiana de Buenos Aires. Autora dos livros Mosaico de letras (Escuta, 1999), Depressão e melancolia (Zahar, 2003), e das coletâneas Melancolia (Escuta), A culpa (Escuta, 2001), Emilio Rodrigué – Caçador de labirintos (Corrupio, 2004).


Notas
1 E. Rodrigué, O paciente das 50.000 horas, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1979.

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 LEITURA

Fidelidade ao inconsciente: trajetória de um psicanalista

Fidelity to unconscious: the path of a psychoanalyst
Urania Tourinho Peres


Resenha de Emilio Rodrigué, O paciente das 50.000 horas, Rio de Janeiro, Imago, 1979, 104 p.

NOTA DE EDIÇÃOEste texto foi publicado em 2005 no livro Emi­lio Rodrigué – caçador de labirintos, de Urania Tourinho Peres, editora Corrupio, Salvador. Excep­cionalmente, o Conselho de Rese­nhas aceitou publicá-lo como parte da homenagem ao pensamento sempre vivo de Emilio Rodrigué.
Além das três resenhas que ora seguem de livros do próprio Rodrigué, encaminhamos também o leitor àquela de Sigmund Freud – o século da psicanálise 1895-1995, feita por Ana Maria Amaral e publicada na Percurso 17, do segundo semestre de 1996, bem como a outra, por ele mesmo escrita, do livro Freud: um ciclo de leituras, Percurso 19, segundo semestre de 1997.

Maria de Lourdes Caleiro Costa

Em 1969, Emilio recebeu um convite para participar de uma edição especial, comemorativa dos 50 anos da Revista Internacional de Psicanálise, publicação oficial da ipa. Juntamente com outros 19 psicanalistas, integraria o volume intitulado Bodas de ouro. O convite o deixou lisonjeado e ele resolveu escrever um texto, no qual faria uma avaliação de seu trabalho como analista, através da criação de um paciente/personagem, síntese de todos os pacientes que havia atendido durante os seus 25 anos como psicanalista. Surge assim o título: O paciente das 50.000 horas.

Este artigo não foi publicado em Buenos Aires, e, posteriormente, no ano de 1976, é revisitado pelo autor, que não deixa de confessar a difícil tarefa de se reavaliar. O artigo transforma-se, então, em livro. [1]

Me resulta difícil meterme en esa piel tan mía y hoy tan ajena. No sé como tratar al Rodrigué de antes. Cuando lo pongo al microscopio no doy con el aumento que lo evalúe y no lo diseque. Se puede ser muy cruel con esa versión más joven – aunque milenaria- que uno fue. (Rodrigué, 1977, p. 25)

O livro está dividido em duas partes. A primeira resulta dos 25 anos de experiência como analista ortodoxo, segundo sua própria definição, contém o relato clínico de um paciente em análise didática. A segunda parte, através do relato de uma “cura”, realizada em laboratório social, traz a tentativa de teorizar sobre a possibilidade de integração da psicanálise, com o Psicodrama, Bioenergética e Gestalt Terapia. Ou seja, uma nova proposta de trabalho.

A primeira parte tem, nitidamente, um tom testamentário, quase uma prestação de contas, uma despedida e um balanço do vivido, como se Emilio, neste texto, estivesse fazendo um depoimento de “final de analista”. E nos chama à atenção a sinceridade através da qual ele se expõe. Contudo, uma sinceridade carregada de amargura.

Ele não tem pudor em afirmar que a psicanálise envelheceu, entretanto, considera uma “afirmativa crucial” a transformação do homem pela psicanálise.

Uma cuidadosa análise deste livro nos leva à compreensão de uma trajetória aparentemente com muitos cortes, mas, em verdade, mantendo sempre o mesmo fio condutor: uma forte inquietação, uma luta apaixonada contra a impostura, uma recusa à adaptação empobrecedora, uma fidelidade ao inconsciente. E, o que é mais importante: travestido de transgressor, Emilio esteve sempre movido por uma ética intransigente, que o levou a buscar a verdade, a sinceridade do depoimento, a felicidade, a experiência de vida. Ainda que sabendo que nenhuma destas metas atingiria em sua totalidade, assim mesmo as buscou.

Questionando o lado adaptativo da psicanálise, ponto maior de sua inquietação, ele faz uma afirmativa, um forte alerta aos jovens analistas.

No se trata solamente de si vale la pena adaptar al individuo a una sociedad alienada; hay que ver, también, las consecuencias de esa prática sobre los valores que determinan nuestra forma de producir psicoanálisis. Ya hemos considerado los óxidos que se cargan en cincuenta mil horas; ahora es cuestion de perguntarse sobre el tipo de adoctrinación que he dado a mi paciente y, ademas, qué adoctrinación he recibido de él. ¿Qué tipo de gran círculo vicioso ideológico hemos conformado?
(Rodrigué, 1977, p. 41).
[…] el analista es sólo un ejemplo más de la deformación de una sociedad no liberada.
(p. 42).

Emilio expressa seu ressentimento por ter-se submetido a um enquadre convencional e desvitalizante, pela cronificação de um vínculo resultante em um desgaste da palavra, pela minimização da ação e recusa de mudanças. E, o que é mais importante, não se exime dessas culpas (Rodrigué, 1977, p. 45-77).

Critica-se por ter perdido a “vocação urticante” que o acompanhou quando se iniciou como analista e que o dotava de uma disposição, a mesma de Freud, em revolucionar a ordem estabelecida (Rodrigué, 1977, p. 37). A psicanálise era banhada de uma grande onipotência, tempo de “probar lo imposible”.

O homem freudiano seria um homem novo; o ato psicanalítico daria uma diferença qualitativa a quem a ele se submetesse. Provocaria uma verdadeira transformação do homem (Rodrigué, 1997, p. 38-9). Contudo, Emilio constata que Freud, ao iniciar a sua luta, sofreu o que denominou de “esplêndido isolamento”, sendo que as gerações vindouras não souberam manter a força do pensamento freudiano, promovendo uma “lamentável expansão” que, inevitavelmente passou a psicanálise da solidão teórica ao simples lugar comum.
Para ele uma teoria não envelhece.

Las ideas no mueren de muerte natural: son asesinadas por nuevas ideas o cometen suicidio. […] Hay que indagar los factores específicos de inhibi­ción, las contradicciones incompatibles y los elementos refractarios dentro de la teoria psicoanalitica
. (Rodrigué, 1977, p. 39).

Neste ponto ele chama a atenção para a acusação de traição feita a Freud, defendida, sobretudo, pelos franceses. O importante é, pois, buscar, dentro da própria psicanálise, sua teoria, sua técnica e prática, elementos que impediram o livre crescimento, e produziram um “endurecimento das artérias”.

Emilio chama a atenção para três grandes dilemas que a psicanálise enfrentava, no final da década de 1960: questões de procedimento, de metas e de teoria analítica.

O primeiro (procedimento) está ligado às questões da didática, do autorizar-se analista. Interrogações importantes e atuais são levantadas, valendo a pena segui-las de perto. O procedimento básico, a análise pessoal, é inquestionável. Tornar-se objeto de conhecimento, para em seguida tomar o outro e colocá-lo nesta posição. Na sua época, eram quatro a cinco sessões semanais durante quatro ou cinco anos. “Uno es el primer (y más irritante) paciente en el lento aprendizaje en carne propia.” (Rodrigué, 1977, p. 42-3).

Este ponto forte é também, para ele, o ponto fraco, na medida em que, de uma maneira geral, as análises iniciavam-se ao concluir a universidade e o término atingia o “candidato” com a idade média em torno dos 33 anos. Segundo sua observação, “las promesas analíticas cursan los 40” e, somente aos 50, o analista, verdadeiramente, está no momento de expandir-se. Para Emilio, este prolongamento da didática tende a incrementar a burocracia das Instituições, uma nítida crítica à análise didática. Ainda no que se refere ao procedimento ele aponta outro ponto que considera escabroso. “¿Cuál es la subjetividad del candidato en los 5-6-7 años que está en el diván?” (Rodrigué, 1977, p. 43-4). Anos de uma relação assimétrica, mantida por um diálogo singular onde o paciente fala mais de oitenta por cento e o analista quase, inevitavelmente, intervém com um “si…pero”.
Emilio se interroga:

¿Cuál es el resultado de años simétricos donde todo lo que uno dice y hace en realidad significa otra cosa? Años donde uno nunca ve al analista en la cara. En el mejor de los casos se configura una caracterologia profesional, un pensamiento relativista, medroso, que conlleva un “si…pero” internalizado. (Rodrigué, 1977, p. 45).

O enquadramento esconde uma violência e nosso autor questiona se, dentro desse modelo, não se produzem jovens analistas adaptados, sem rebelião e criatividade. Ou, ainda, que a rebelião se manifeste exatamente onde não deve, ferindo a regra de abstinência erótica?

Segundo dilema: metas. A ambigüidade da cura analítica, que se confunde com uma terapêutica no estilo médico. O analista não cura e, por isso mesmo, é preferível o nome de analisando ao de paciente. O analista pode cometer uma traição; o paciente procura alívio para sua enfermidade, e o analista persegue algo que tem relação com um suposto encontro com a “verdade”: “[…] el cambio en el otro que involucra mi propio cambio” (Rodrigué, 1977, p. 47).
E diz:

[…] la zona de convergencia es relativa y poco explicitada. Ello se debe a que nosotros mismos no tenemos el punto claro. La ambigüedad es nuestra, pero se remonta al propio Freud con sus enigmáticas contradicciones en lo que hace al curar. (Rodrigué, 1977, p. 48).

Outro dilema, no que se refere às metas, toca na questão da dimensão experimental. A psicanálise é um método de investigação passível de controle? Esta confusão entre analisar e experimentar, que toca nos anseios cientificistas, confunde a identidade do analista. “El psicoanálisis no es experimentación, es experiencia” (Rodrigué, 1977 p. 51).

O terceiro dilema dirige-se à teoria analítica, onde aponta uma divisão, surgida, então, no meio do kleinismo, defendida por George Klein e que, mais tarde, na revisão que Emilio fará do texto, em 1976, considerará um erro e a rejeitará. Uma divisão entre uma teoria clínica e uma teoria metapsicológica, que procura estabelecer uma separação entre conceitos clínicos e conceitos metapsicológicos, propondo-se a construir uma “teoria clínica”. Foi dessa época a expressão “teoria da clínica”. O impasse, entre outros, foi colocado quando a distinção entre um conceito clínico e metapsicológico tornou-se difícil de ser realizada. Em verdade, essa oposição à metapsicologia escondia um questionamento de outra ordem. A revisão, feita em 1976, o conduz a retomar os pontos fracos dessa colocação de George Klein por ele abraçada.

Emilio faz uma revisão de suas idéias, neste particular: para ele, esse erro decorreu do que se refere como sendo efeitos da análise ortodoxa, que produzia uma “desvitalização da psicanálise”. “ […] mi error: estar mirando al psicoanálisis desde el pesimismo en que la práctica alienante del mismo me había sumido. Reflejaba una desvitalización.” (Rodrigué, 1977, p. 57).

Foi também uma maneira de reagir a Hart­mann e seu grupo “[…] que descorporizaron el concepto de libido hasta convertirlo en una hipotética unidad de tensión[…]” (Rodrigué, 1977, p. 61).

Emilio critica a “teoria do eu” dos americanos que, para ele, segue em direção oposta a Freud, banalizando a noção de libido, reduzindo-a a um “monte de excitação”. Herdeiro de kleinismo, ele tinha claro o mérito de Melanie Klein em

[…] construir una teoria orientada hacia la práctica, abriendo espacios nuevos para la comprensión analítica del niño y del psicótico […] los analistas kleinianos son, por lo general, más imaginativos y también más comprometidos com la inmediatez del material clínico. […]Para ellos cada sesión tiene que arrojar su cuota de asociación libre y las interpretaciones pasan a ser hipótesis de trabajo en esa búsqueda”. (Rodrigué, 1977, p. 55).

Acaba por concluir que a metapsicologia “es un espacio que Freud enmarcó para tener un apoyo fuera de las representaciones verbales de los contenidos psíquicos, un espacio donde la palabra le deja el lugar al cuerpo” (Rodrigué, 1977, p. 61).

Uma olhar sobre a história do movimento psicanalítico lhe conduz a afirmar, entre outros, dois grandes desvios: um de Reich, à esquerda de Freud, que postulava “un cuerpo cargado de una energia que en última instancia llega a ser cósmica”; (p. 61) o outro à direita, privilegiando a palavra e fazendo-a legislar sobre a vida, cujo artífice era Lacan.

La dialética de estos extremismos es sumamente enriquecedora si uno se sabe colocar en la posición que, tomando las palabras de Kesselman, denominaria de ultracentro, donde la palabra es cuerpo y donde el cuerpo habla. (Rodrigué , 1977, p. 62).

Atingir essa posição de “ultracentro” era o que naquele momento ele procurava.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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