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AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
33
Psicanálise extra-muros: cinema, literatura, humor
ano XVII - 2° semestre 2004
186 páginas
capa: Cristina Maria Cortezzi Reis
  
 

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Resumo
O Witz serviu como modelo privilegiado para justificar a “regra fundamental” da psicanálise, e tal fato explica por si mesmo as motivações que conduziram Freud a mergulhar nesta pesquisa tão documentada quanto minuciosa.


Autor(es)
Fernando Aguiar
é doutor em Filosofia e professor no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Notas

1. L. Wittgenstein, Leçons et conversations sur l’esthétique, la psychologie et la croyance religieuse, Paris, Gallimard, 1971, p. 87-88.

2. M. O. C. Drury, “Conversations with Wittgenstein”, in: Wittgenstein L., Personal Recollections, Oxford, B. Blackwell, 1981, p. 168 (apud J. Bouveresse, Philosophie, mythologie et pseudo-science – Wittgenstein, lecteur de Freud, Paris, Editions de l’Eclat, 1991, p. 16).

3. S. Freud, “L’interprétation du rêve”, in: Oeuvres Complètes, IV, Paris, PUF, 1991, p. 341.

4. P. Willemart, Além da psicanálise: a literatura e as artes, São Paulo, Nova Alexandria/Fapesp, 1995, p. 56.

5. Cf. Editors Preface, in: S. Freud, Jokes and their relation to the unconscious (1905c), The Standard Edition of the complete psychological Works of Sigmund Freud, London, Hogarth Press, 1968. V. VIII, p. 5-6.

6. S. Freud, “Autoprésentation” (1925d), in: Oeuvres Complètes, XVII, Paris, PUF., 1992, p. 113.

7. S. Freud & S. Ferenczi, Correspondance (1908- 1914), I, Paris, Calmann-Lévy, 1992, p. 529, carta de 9 de julho de 1913.

8. E. Jones, La vie et l’oeuvre de Sigmund Freud, II, Paris, PUF, 1961, p. 12.

9. Cf. J. Lacan, Le Séminaire V, Les formations de l’inconscient (1957-58), Paris, Seuil, 1998.

10. S. Freud, Introduction à la psychanalyse (1916- 1917), Paris, Payot, 1991, p. 219-220.

11 S. Freud, “Le mot d’esprit et sa relation à l’inconscient” (1905c), Paris, Gallimard, 1968, p. 321. Doravante, as freqüentes e numerosas referências a esta obra serão seguidas no próprio corpo do texto pelo número de página correspondente.

12. S. Freud & J. Breuer, Etudes sur l’hystérie (1895d), Paris, PUF, 1981, p. 218.

13. S. Freud, “Psychanalyse et télépathie” (1941d), in: Oeuvres Complètes, XVI. Paris, PUF, 1991, p. 108- 109.

14. S. Freud, “Psychanalyse des masses et analyse du moi” (1921c), in: Oeuvres Complètes, XVI. Paris, PUF, 1991, p. 65. Ver ainda S. Freud, “Traitement psychique” (Traitement d’âme) (1905b), in: Résultats, idées, problèmes, I, Paris, PUF, 1984, p. 14.

15. S. Freud, “De la psychanalyse” (1910a), in: Oeuvres Complètes, X. Paris, PUF, 1993, p. 27.

16. S. Freud, L’interprétation des rêves (1900a), op. cit., p. 391.

17. S. Freud, “De la psychanalyse” (1910a), op. cit., p. 25-29.

18. A relação foi sublinhada por R. Mezan (“Pesquisa teórica em Psicanálise”, Psicanálise e Universidade, nº 2, 1994), “Uma interpretação surge como a frase de espírito (...). Para mim (o livro sobre o Witz]) é um tratado de interpretação psicanalítica. Ele descreve as condições metapsicológicas do que é uma interpretação. Esta ocorre exatamente da mesma maneira como se fabrica uma piada. É o processo primário cristalizado, apresentado com concisão, brevidade, impacto...” (p. 60).

19. S. Freud, “La prédisposition à la névrose obsessionnelle” (1913i), Revue Française de Psychanalyse, 1929, III, no 3, p. 445. No original: “… jeder Mensch in seinenr eigenen Unbewussten in Instrument besitzt, mit dem er die Äusserungen des Unbewussten beim anderen zu deuten vermag” (G. W., VII, p. 445). “O consciente do analista deve comportar-se para com o consciente emergente do doente como auscultador telefônico para com o microfone” (S. Freud, L’interprétation des rêves [1900a], op. cit., p. 66). “Foi isso que Theodor Reik chamou mais tarde, metaforicamente, ‘escutar com o terceiro ouvido’” (J. Laplanche e J.-B. Pontalis. Vocabulaire de la Psychanalyse, Paris, PUF, 1973, p. 39)

20. S. Freud, “L’Inconscient” (1915e), in: Oeuvres Complètes , XIII, Paris, PUF, 1988, p. 232.

21. M.-A. Quakn, Bibliothérapie, Lire, c’est guérir, Paris, Seuil, 1994, p. 138.

22. P.-L. Assoun, “Freud et le rire”, in A. W. Szafran e A. Nysenholc (dir.), Freud et le rire, Paris, Métailié, 1994, p. 46.

23. O. Mannoni, “O riso”, in: Um espanto tão tenso: a vergonha, o riso, a morte, São Paulo, Campus, 1992.

24. Apud E. Roudinesco & M. Plon, Dictionnaire de la psychanalyse, Paris, Fayard, 1997, p. 597.


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 TEXTO

O humor analítico:

o modelo witzig de interpretação


Fernando Aguiar


L’interprétation analytique est une réponse qui irait plutôt du côté du mot d’esprit
JACQUES LACAN, “L’(a) jouissance”.

Le Witz éclaire la division du sujet avec lui-même
JACQUES LACAN, Écrits.

Em resposta a Drury, que lhe confessara extrema dificuldade em compreender os sintomas observados em alguns de seus pacientes em aná lise e de nem sempre saber o que lhes dizer, Wittgenstein – leitor que em certa época, e segundo ele próprio, podia ser visto de bom grado como “um discípulo de Freud” e “um sectateur de Freud” [1] – limita-se a duvidar se o psicanalista seria portador do “senso de humor apropriado a este trabalho”, pelo fato de se “chocar muito facilmente quando as coisas não se passavam conforme o planejado”[2]. A “doença mental”, justifica, deveria sempre ser objeto de perplexidade.

A interpretação do autor do Tratactus parece justa, primeiro, porque o método psicanalítico, irredutível a uma mera aplicação técnica, não deve visar a um alvo determinado a priori. Segundo, por ser imanente ao ato analítico, esta disposição do espírito, sempre pronta a extrair da realidade seus aspectos divertidos e insólitos: em “Um estudo autobiográfico” (Selbstdarstellung), Freud escreve que suas interpretações de sonhos davam a impressão ao amigo Fliess, “o primeiro leitor e crítico de [meu] livro”, de estar fazendo graça.

A observação havia já sido objeto, em 1909, de uma nota de rodapé no livro dos sonhos, mas ali, para evidenciar uma distinção importante. Espirituoso seria o sonhador, diz Freud, e não o intérprete: em vigília, não podia reivindicar para si tal condição. Mais precisamente, espirituosos eram os próprios sonhos, dadas as circunstâncias particulares de sua elaboração, a seu ver relacionada à teoria do chiste e do cômico. Em uma palavra, a crítica do amigo o teria levado a comparar a elaboração onírica à técnica dos chistes [3].

Espirituoso de force, ainda assim o psicanalista aproxima-se do humorista, como observa Willemart, “não só como (adversário relativo) do absoluto, mas pelo que desencadeia: o contato com o inconsciente” [4]. A meu ver, diferencia-os a disposição do primeiro, sendo este seu métier, de servir-se interessadamente do humor no manejo da transferëncia (Handhabung der Übertragung) – a rigor, no manejo da “neurose de transferência” (Übertragungsneurose) – e por essa via, na situação privilegiada do setting analítico, transformar a compulsão de repetir do analisando num motivo para rememorar.

Em uma palavra, no limite da estrita obediência à regra fundamental, o discurso na análise será forçosamente espirituoso pela simples razão de que, tal como ocorre de maneira radical na formação onírica, encontra-se-lhe fechado o caminho mais direto e mais próximo para exprimir seus pensamentos. Esse humor, desvelado pela escuta analítica, é índice seguro de que as coisas estão indo bem em sua generalidade metódica.

Das circunstâncias históricas de uma obra

Os chistes e sua relação com o inconsciente (Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten) o resultado das incursões freudianas sobre o humor, tem um percurso curioso e, como sublinha Strachey na apresentação, bem diferente do ocorrido com os grandes trabalhos de Freud do período. A interpretação dos sonhos (1900), Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) receberam adendos ou modificações importantes a cada edição e, no caso do último da série, as notas de rodapé são, como se sabe, tão numerosas que dariam um outro livro.

Tudo se passa de outra maneira com os Chistes..., que mereceu de Freud somente seis pequenos complementos na segunda edição (1912) e nenhum outro nas demais [5], o que sugere uma espécie de desvio ou, pelo menos, um afastamento de sua démarche – com efeito, uma única vez voltaria especialmente ao tema, em seu diminuto artigo intitulado “O humor” (1927), e de passagem, de quando em vez. Teria mesmo desprezado sua obra, que preenche todo um volume da Standard Edition, ou ao menos lamentado tê-la escrito – e disso, afirma Strachey, pode-se encontrar referências ainda que tênues em “Um estudo autobiográfico”, de 1925. Na falta de indicações precisas, talvez se trate desse fragmento: “Meu livro sobre os ‘Chistes e suas relações com o inconsciente’ foi um tema secundário, originado diretamente da ‘Interpretação dos sonhos”’ [6] – o que não o impediu de listá-lo en privé, em 1913, entre seus trabalhos mais importantes (e depois de acrescentar: “Comigo, as boas coisas acontecem de fato segundo uma periodicidade de sete anos: em 1891, comecei com a afasia, em 1898-1899 A Interpretação dos sonhos, em 1904-1905 o chiste e a teoria sexual, em 1911-1912 meu trabalho com o Totem...” [7]).

Pelo menos no que diz respeito aos leitores, os Chistes... manteria por longo tempo essa condição, digamos, marginal: meio século depois, Jones tinha-o ainda na conta do livro menos lido de Freud, por ser aquele cuja “compreensão correta é a mais penosa” [8]. Talvez o seja ainda insuficientemente, a despeito da releitura aqui também operada por Lacan, ao afirmar, por exemplo, que uma mesma técnica é comum ao chiste e ao significante [9], ou ao considerar, como lemos nos matemas que nos servem aqui de epígrafes, as possibilidades heurísticas descortinadas pela ligação conceitual entre Witz, divisão do sujeito e interpretação.

E no entanto, mais do que uma produção voluntária, e em que pese algumas de suas particularidades, o Witz é um derivado (Freud) ou uma formação (Lacan) do inconsciente, como o fantasma, o sintoma, o sonho ou o lapso – logo, nessa condição, objeto de estudo por excelência da psicanálise. Nas Conferëncias..., de 1916-1917, uma vez mais Freud relata o que primeiro o levou ao estudo do jogo de palavras. Ocupava-se então dos efeitos do deslocamento no sonho, que permite à censura criar formações substitutivas como uma espécie de alusões a coisas que ela quer manter ocultas – mas alusões difíceis de reconhecer, já que entre um elemento latente e sua substituição manifesta as ligações resultam “as mais afastadas, as mais singulares, ora cômicas, ora aparentemente engenhosas”.

Foi essa “semelhança impressionante” entre o jogo de palavras e o sonho que o teria levado “a fazer noutro momento uma longa digressão, (obrigando-o) a submeter o próprio jogo de palavras a um estudo aprofundado” [10], repetindo assim o mesmo argumento, como vimos, de 1909 (a nota do livro dos sonhos). Seguido, em 1910, de uma versão diversa do evento (aqui referida mais adiante), ele será, enfim, melhor desenvolvido em 1925, para justificar o estudo desse “tema secundário”: buscando esclarecer o caráter espirituoso dos sonhos, teria verificado que a essência do chiste reside em seus meios técnicos; e estes são os mesmos empregados no “trabalho do sonho”, isto é, condensação, deslocamento, representação por seu oposto, pelo detalhe, etc.), etc. A semelhança (quando ela existe) entre o jogo de palavras e o sonho não se deve senão a esses mecanismos.

Distinguir o que é singular ou universal em cada uma das formações do inconsciente é mesmo um estudo (comparativo) muito promissor e mereceria antes, na obra freudiana, um estudo à parte (e, espero, alguns artigos no futuro). No que diz respeito ao chiste e ao sonho, pelo fato de não pertencerem a um mesmo domínio da vida psíquica, devem ser situados em lugares bem afastados um do outro. “O sonho persiste em ser um desejo (...), ainda que tornado irreconhecível; o chiste é um jogo desenvolvido” [11], cujo processo se desenrola de maneira automática.

Na verdade, o desvelamento do automatismo psíquico é uma das técnicas dos chistes e também do cômico – uma relação que Freud pretendera evitar, buscando o que realmente constitui a característica peculiar dos primeiros (p. 130). E esta característica consistiria, ao fim e ao cabo, em proteger os métodos de produção de prazer contra as objeções críticas que levariam ao fim deste mesmo prazer (p. 248).

Seja como for, Freud sublinha ser intencional de sua parte falar em “modo automático” e não em “modo inconsciente”, pois “este último qualificativo (nos) induziria ao erro” (p. 276). “Automáticos” seriam os processos que se desenvolvem no préconsciente, logo, sem o investimento da atenção que caracteriza a consciência; são inconscientes apenas descritivamente, e não em termos sistemáticos (p. 392). Ora, em momentos pontuais de sua obra, ele associa o automatismo psíquico (aliás, uma noção-chave na teoria janetiana) à idéia de desvio ou distração da atenção, aí encontrando uma explicação comum para uma série de eventos psíquicos. Eis, em ordem cronológica, algumas dessas referências.

Em 1895, ao tentar compreender o fator que então sustentava sua técnica, a “pressão da mão sobre a testa”, utilizada para fazer advir as lembranças, admite que esse procedimento corresponde a uma espécie de hipnose momentânea. Contudo, parecendo-lhe ainda enigmático o próprio mecanismo da hipnose, opta por lhe dar uma “explicação empírica”: “A vantagem do procedimento se deve ao fato de que, graças a ele, chego a desviar a atenção do doente de sua busca e de suas reflexões conscientes, em uma palavra, de todas as coisas que poderiam traduzir sua vontade; tudo isso lembra o que se passa quando fixamos um globo de cristal, etc.” [12]

Dez anos mais tarde, e mais uma vez no livro dos chistes, a noção de distração da atenção seria novamente retomada para sublinhar o grande interesse teórico em estudar uma série de técnicas auxiliares do Witz – isto é, aquelas que têm manifestamente a intenção de distrair a atenção do auditor do processo do chiste e de fazer com que este último se desenvolva de maneira automática (p. 276). Em 1921, em artigo publicado postumamente, escreve que o mesmo procedimento intervém em certos casos de leitura de pensamento: a atividade da cartomante, em seu “trabalho astrológico”, consiste apenas em distrair “suas próprias forças psíquicas, ocupá-las de maneira anódina”, de forma tal que, diz ele, “receptiva e permeável aos pensamentos do outro que age sobre ela, possa tornar-se uma verdadeira médium”. E conclui: “Temos conhecimento de agenciamentos similares, por exemplo, no chiste, quando se trata de assegurar a um processo anímico um encadeamento mais automático” [13]. Enfim, neste mesmo ano, mas em Psicologia das massas e análise do eu, insiste na idéia de que os procedimentos utilizados pelos hipnotizadores – a fixação num objeto brilhante ou a escuta de um ruído monótono – “não servem senão para distrair e cativar a atenção consciente” [14].

Assim é que a partir de uma mesma noção – a “distração da atenção consciente” (Ablenkung der bewussten Aufmerksamkeit) – Freud pretende explicar o que sobrevem em sua técnica da pressão, na transmissão de pensamento, na hipnose e na utilização de algumas técnicas do chiste. Ora, os três primeiros termos dessa série, mais ou menos próximos do vocabulário psicanalítico e do interesse de Freud, dão conta de ações clínicas cujo caráter sugestivo evidente (e, além disso, incerto, duvidoso, autocrático) apresenta toda incompatibilidade metodológica com o procedimento analítico – enquanto o chiste é seu modelo princeps. Não por acaso, em 1910, em suas lições americanas – e sob um ângulo diverso daquele aqui apresentado, como vimos acima, no livro dos sonhos, nas conferências na Universidade e em “Um estudo autobiográfico” – ele se recorda de que, “face aos problemas da técnica psicanalítica, (fui) também obrigado a me ocupar da técnica de formação do chiste” [15].

Esta seria então a variante clínica de uma questão de ordem teórica, que examinaremos a seguir levando em conta a premissa segundo a qual, na técnica de formação do chiste, Freud encontra efetivamente o modelo mais próximo da atitude objetiva do psicanalista, chamada “atenção eqüiflutuante” – regra que lhe permitiria descobrir as conexões inconscientes no discurso do paciente. Freud aprendeu esse modelo, pode-se dizer, no início da clínica propriamente psicanalítica, em vias de constituir e justificar a regra fundamental de seu novo procedimento, e na seqüência das tentativas fracassadas em utilizar o artifício de “pressão da mão sobre a testa do paciente” – cuja vantagem, como vimos, estava em desviar a atenção do analisando de suas reflexões conscientes.

Ora, essa vantagem será mantida no tratamento analítico quando, ao utilizar a técnica da formação do chiste como modelo de escuta, encontra assim um meio para que a livre associação do analisando possa se desenvolver de maneira... automática.

Das razões clínicas para estudar o chiste

Não haveria assim nada a questionar, como faz Jones, sobre as motivações que levaram Freud a mergulhar numa pesquisa “tão documentada quanto minuciosa”, de quase trezentas páginas, e que escreve ao mesmo tempo que Os três ensaios..., passando de um manuscrito a outro numa progressão simultânea de ambos os textos. Afinal, a pista já havia sido dada em seu livro fundador: para atingir seus fins, ou seja, obter uma representação que escape à censura, o trabalho do sonho “dá preferência aos produtos de transformação do material recalcado que possam também se tornar conscientes sob forma de chiste e de alusão, e existentes em grande quantidade em todas as fantasias dos neuróticos” [16].

Tais observações encontram uma seqüência importante em suas lições americanas, de 1910, e sempre à guisa de justificar o tempo gasto na tarefa marginal de estudar os chistes. Lembremos que Freud inicia a terceira lição chamando a atenção do público sobre um erro cometido logo no início da anterior (“Nem sempre é fácil dizer a verdade, particularmente quando devemos ser breves…”). Afirmara então que, renunciando à hipnose, e com a ajuda da livre-associação (deve-se notar, num enquadramento ainda quase experimental), havia incentivado seus pacientes a “comunicar-lhe de qualquer maneira o que lhes vinham à cabeça precisamente sobre o problema ali tratado”, realizando “efetivamente a experiência de que a primeira idéia incidente (...) fornecia o elemento justo, que se revelava como a continuação esquecida da lembrança”.

Eis, retifica, o que não seria totalmente exato: “Na realidade, apenas nas primeiras vezes podia ser verificado que o elemento se apresentava justamente por uma simples pressão de minha parte"; mas, continuando com o mesmo procedimento, eram antes “idéias incidentes” que lhes vinham ao espírito. Aparentemente, essas idéias nada tinham a ver com o elemento esquecido, que os próprios pacientes as rejeitavam como infundadas; e, quanto à pressão da mão sobre a testa, ela não trazia nenhuma ajuda suplementar. Podia-se aqui mais uma vez lamentar, diz ele, o abandono da hipnose.

Em estado de confusão, acrescenta dramaticamente – e num movimento similar ao da decisão fundadora de (re)escutar as cenas de sedução como realidade psíquica –, vale-se de um princípio, de cujo rigor esteve desde sempre convencido e cuja “legitimidade científica” fora demonstrada por Jung e seus alunos. Trata-se do determinismo psíquico, que lhe impediu de conceber essas idéias incidentes – além do mais, despertadas “num estado de tensa concentração” – como surgidas arbitrariamente na consciência e sem nenhuma relação com a representação esquecida. Propõe assim uma fórmula: essa aparente ausência de identidade entre a “representação esquecida” e a “lembrança procurada” podia ser explicada, de um lado, pelo esforço em reencontrar a coisa olvidada no inconsciente, e de outro, pela ação da resistência. Sendo esta nula ou tênue, aquela surgiria sem deformação – sendo o grau de deformação diretamente proporcional à força dispensada para impedir o aparecimento da representação esquecida pela consciência.

Isso posto, a representação que enfim alcança a consciência (a idéia incidente) tem o valor de um sintoma: é portanto uma formação substituta (nova, artificial e efêmera) para o recalcado, e na forma de uma alusão ou de um discurso indireto. Ora, o Witz surge antes de mais nada apoiado sobre uma alusão, procedendo daí a decisão de estudar a técnica de sua formação... em razão, vale repetir, dos problemas advindos da opção pelo método psicanalítico. }

O Witz: modelo para a escuta analítica

Eis aqui o Witz, de todos conhecido, mencionado a título de exemplo: um crítico de arte, examinando em público dois portraits, encomendados a um pintor muito célebre por dois comerciantes desonestos, limita-se a exclamar em inglês, indicando o espaço livre entre os quadros fixados na parede: “And where is the Saviour?” Pode-se aqui perceber facilmente que a interrogação, disfarçada, substitui com o mesmo valor e a mesma significação a injúria que não podia, sem maiores riscos, ser enunciada claramente.

Com certeza, o chiste não apresenta todas as condições presumíveis para o surgimento da idéia incidente nos analisandos, e Freud não quer senão chamar a atenção sobre o que há de idêntico entre um e outro caso: “Por que nosso crítico não diz diretamente aos dois bandidos o que ele gostaria de dizer?” Porque, responde, estão operando nele, ao mesmo tempo, seu desejo de lhes dizer na cara, em termos não velados, e ótimos motivos contrários para não fazê-lo.

Em uma palavra, pode-se encontrar nessa “alusão com omissão” (Anspielung mit Auslassung), utilizada pelo crítico de arte, “a mesma constelação (…) responsável para que (seu) paciente, em vez do elemento esquecido procurado, produza uma idéia incidente substitutiva (Ersatzeinfall) mais ou menos deformada”. Isso quer dizer que a formação do chiste e a livre associação adotam um mesmo modelo de formação de compromisso (Kompromissbildung) entre o recalcado e o consciente: representações-substitutivas que buscam ao mesmo tempo satisfazer, num mesmo compromisso, o desejo inconsciente e as exigências defensivas. Logo, não são senão as diferentes modalidades do processo defensivo escolhidas pelo Witz e pela livre associação que vão proporcionar os limites de parentesco entre um e outro – vale dizer, a deformação que torna desconhecidas as representações recalcadas, e disfarçadas em representações substitutas.

Pode-se aqui reconhecer uma mudança de paradigma no que diz respeito à escuta analítica: doravante será apenas por seu conteúdo alusivo que este discurso, fruto da situação analítica, resulta válido e produtor de sentido. Trata-se de um conjunto de representações, de um “complexo associativo” carregado de afetos que não pode ser atingido, senão sob a condição de estar presente um número elevado de associações.

Ora, às vezes o analisando pára de associar, e a continuidade dessa resistência põe em risco a razão mesma de ser da análise, que é a livre associação. Freud imagina que os julgamentos críticos recubram antes idéias desagradáveis a comunicar, que parecem não ser justas ao analisando, não fazer parte do resto, mesmo insensatas. Assim, são essas idéias incidentes, insignificantes, mas surgidas no momento em que fracassa a livre associação, que finalmente constituem o verdadeiro material para o psicanalista, “o mineral do qual retira, com a ajuda de técnicas de interpretação simples, o que ele contém de material precioso” [17].

Vale repetir: diante da impossibilidade metodológica de ter acesso (direto) às lembranças recalcadas, a clínica psicanalítica constituiu-se pela compreensão, por meio do exame da formação do chiste, de que essas idéias incidentes, insignifiantes, heteróclitas, aparentemente inúteis e absurdas que intervêm no discurso do analisando, são antes alusões e substituições para a coisa procurada. Logo, o exame do Witz adquire assim uma função clínica muito precisa e singular, e que vai além da pura demonstração teórica, ainda que exemplar, dos processos inconscientes.

Este privilégio acordado ao Witz – que, nas proporções possíveis de comparação, conserva do sonho, digamos, a densidade literária de uma novela e do ato falho e do sintoma, a concisão de um haïkaï – pode ser explicada pelo fato de ser ele “a mais social de todas as atividades psíquicas que têm por alvo um ganho de prazer” (p. 321). O sonho, por exemplo, é um produto perfeitamente associal (em que pesem os ditos “sonhos-presentes” dos analisandos) – no sentido de que “ele não tem nada a comunicar a um outro” (p. 320). O Witz, ao contrário, pela razão mesma de ser operado numa certa condição de inteligibilidade, exige, por definição, a presença de ao menos três pessoas: sua existência depende da participação de outrem no centro do processo psíquico por ele desencadeado. As condensações, em particular, e os deslocamentos nele utilizados não permitem deformações tais que não possam ser retificadas “pela compreensão da terceira pessoa” (p. 321) – ou seja, o público, o terceiro necessário, o interlocutor.

Dito de outra maneira, se é verdade que a essência do Witz reside em seus meios técnicos, que utilizam, também eles, os mesmos mecanismos encontrados no trabalho do sonho, a deformação resultante não pode ultrapassar as condições de inteligibilidade demandada pela terceira pessoa. O que de resto têm a ver com as possibilidades e os limites da própria linguagem: “… que com esse fim, escreve Freud, (…) todas as particularidades do vocabulário e todas as constelações do contexto (devem ser) utilizadas da maneira a mais hábil” (p. 243).

Essa terceira pessoa será sempre um suposto, é antes o Outro, e, sobretudo nessa “massa de dois”, constituída pelo analista e o analisando, é o simbólico que permite partilhar e usufruir das produções imaginárias comuns, pois só aparentemente se faz graça a dois depois do recalque. Seja como for, é essa condição de ser um produto psíquico mais próximo da vida social, ao mesmo tempo que uma formação do inconsciente, a principal razão pela qual o modelo teórico da formação do chiste serve originalmente a Freud como o mais tecnicamente propício à escuta (analítica) das tentativas em associar livremente de seus analisandos.

O sucesso dessa escuta não dependeria senão da habilidade do analista em “encontrar semelhanças entre coisas dessemelhantes, isto é, semelhanças escondidas” (p. 47), nas livres associações de seus analisandos, nos momentos de silêncio de seu discurso, na escolha das palavras, nas repetições, etc. – e isso diz respeito ao ato analítico (a interpretação), cuja particularidade essencial é a concisão. Na psicanálise, o processo equivale aproximadamente à condensação, um dos modos de funcionamento do processo inconsciente. Ora, “a concisão – teria dito J.-P. Richter, conforme Freud – é o corpo e a alma do chiste, mais ainda, é o próprio chiste” (p. 51).

Eis então o que torna tão próximos o Witz e a interpretação analítica [18], sobretudo se levamos em conta este fragmento de T. Lipps, autor cuja leitura também teria encorajado Freud a realizar seu próprio estudo: “O que diz o chiste nem sempre é em poucas palavras, mas é sempre em pouquíssimas palavras que ele o diz, isto é, com palavras que, levando em conta a lógica estrita ou a maneira comum de pensar e de falar, não são suficientes. Poder-se-ia mesmo afirmar (...) que (silenciando) ele consegue dizer” (p. 51). Um mínimo de palavras, quase silêncio: escuta flutuante, eis a maneira pela qual nos apoderamos desse instrumento que todos possuem no seu próprio inconsciente, e com o qual logramos interpretar as expressões do inconsciente nos outros. [19]

Escutar com o terceiro ouvido...

Em 1915, lê-se em Freud uma formulação mais judiciosa desse “fato incontestável” (em termos descritivos) segundo o qual, “contornado o Cs, o Ics de um ser humano pode reagir ao Ics de um outro”. A afirmativa mereceria, no entanto, “um exame mais aprofundado, em particular para saber o quanto da atividade pré-consciente pode então ser excluída...” [20]. Isso não quer dizer que se deva reduzi-la – como fizeram os partidários da utilização da contratransferência como meio técnico no tratamento – ao nível de uma mera compreensão empática. Campo de pesquisa contruído na linguagem, trata-se antes de levar em conta, na análise, essas representações incidentes do analisando, cujas deformações conservam um caráter de estranheza e espanto. Não se atinge a verdade senão por suas deformações, esta é a divisa (paradoxal) freudiana: na análise, o trabalho do Witz serve de modelo por levar em conta as “démarches de pensamento que se afastam do raciocínio normal (deslocamento e nonsense) como meios técnicos que permitam produzir a expressão espirituosa” (p. 128). Contornado o Cs, o Ics do analista pode reagir ao Ics do analisando.

Parece ser igualmente um justo modelo para a escuta flutuante do analista essa operação descrita como sendo uma seqüência de pensamentos pré-concientes que, abandonados por um certo tempo a uma elaboração inconsciente, emerge bruscamente na consciência sob a forma de um chiste (p. 303) – um jogo sutil com palavras e pensamentos, que permite outras formas originais de organizar o discurso, e cujo desenvolvimento “é regido por esses dois esforços, um que tende a evitar a atitude crítica, e outro que tende a encontrar um substituto no humor” (p. 240-241).

É verdade que o Witz não é necessariamente engraçado. Mas se ele faz rir – “ao colocar em dúvida verdades prontas e a nós próprios” [21], relativizando assim os absolutos – é porque ele cai bem (eis o que é essencial na interpretação analítica). Rimos, seres divididos que somos, porque nos deixamos confrontar com algo da ordem do Unheimlich: tomados pela surpresa e pelo logro, mesmo pela angústia diante do nonsense que conduz a um sentido inesperado, nada nos resta a fazer senão rir, logrando um ganho de prazer correspondente à economia realizada com o enfraquecimento da inibição ou do recalque (p. 225-226).

Freud sublinha um efeito “cômico” liberado ordinariamente em nós pela evidenciação das coisas inconscientes que retornam da “infância da razão”, e que são a própria “fonte do inconsciente (...) com exclusão de qualquer outro” (p. 306- 307). Chega mesmo a acrescentar em nota de rodapé: “Muitos de meus pacientes neuróticos em tratamento psicanalítico têm regularmente o hábito de atestar com um riso que se chegou a mostrar fielmente à sua percepção consciente as coisas inconscientes encobertas” (p. 307).

No tratamento analítico, talvez seja necessário dizer como Ulisses, em sua epopéia: “Ridendo castigat” – uma vez que esses analisandos freudianos “riem também nos momentos em que o conteúdo desvelado não o justifica de nenhuma maneira” (p. 307). Não há senão uma condição para o surgimento desse riso: que “os analisandos tenham se aproximado suficientemente dessas coisas inconscientes, para poder apreendê-las quando lhes foram apresentadas pelo analista” (p. 307).

Se a segunda parte da observação é de ordem metodológica, a universalidade (pois se o evento ocorre com alguns, nada impede que, teoricamente, aconteça com todos os pacientes neuróticos) dessa observação clínica permite também concluir que o assentimento (involuntário) do analisando em se deixar levar pelo dito efeito “cômico” no tratamento constitui um bom critério para julgar do valor ético e epistemológico da interpretação.

A título de conclusão

Durante muitos anos, pareceume sempre muito curioso não ter jamais encontrado na literatura uma menção a esses risos que acometem alguns dos pacientes freudianos em momentos pontuais e aparentemente inapropriados. Só recentemente vim a conhecer (em português) o ensaio de O. Mannoni sobre o riso (publicado originalmente em 1984, e em coletânea, em 1988) no qual a observação preciosa de Freud é resgatada. Certamente outros o fizeram – por exemplo, P.-L. Assoun, num artigo, que também não conhecia, publicado em 1994 [22]. Mas tantas foram as passagens freudianas, até mesmo menos curiosas ou importantes, que tiveram entre os analistas os seus repetidos quinze minutos de fama...

No mínimo, as reflexões de Mannoni, originais – e exemplares, por sua exploração das possibilidades heurísticas que se abrem com o exame freudiano dos chistes – impedem que o tema permaneça no limbo em que provavelmente analistas carrancudos e suas análises melancólicas o mantiveram encerrado. Eis sua conclusão final:

... no decorrer de uma sessão, no momento em que se revela o sentido de uma fala que libera alguma coisa do inconsciente, o riso do paciente ou o do analista pode ter muito sentido. É o sinal da eliminação de um obstáculo inconsciente. A angústia, o medo, a cólera, as lágrimas não fornecem, evidentemente, nada de tão valioso, embora também possuam seu sentido. E o sério que coloca o analista numa posição de controle, e o analisando, pode-se dizer, numa posição de expectativa ansiosa, não tem as mesmas virtudes... [23]

Foram as características do chiste, devidamente sublinhadas pelos autores ao longo dos tempos – a atitude ativa, a relação com o conteúdo de nossos pensamentos, o caráter de julgamento lúdico, a conjugação de coisas dissimilares, o contraste de representações, o nonsense, a sucessão de desconcerto e esclarecimento, a revelação do que estava escondido e, enfim, a peculiar brevidade do chiste (p. 52) – que estimularam Freud a se debruçar tão detidamente sobre a técnica de sua formação e sobre sua relação com o inconsciente. Seus estudos revelaram, para dizê-lo em uma palavra, o quanto essas características constituem o que há de mais próximo do discurso pretendido na análise: lembrando Althusser, a linguagem do inconsciente é “em sua essência derradeira, Witz, trocadilho, metáfora...” [24]. Significantes, como quer Lacan. Não fosse pela banalidade, seria bem o caso de recomendar com urgência aos analistas a (re)leitura dessa obra marginal (e magistral) de Freud.
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