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Resumo
É Beckett quem começa: “É o fim que é o pior, não, é o começo que é o pior, depois é o meio, mas depois no fim é o fim que é o pior, esta voz que, é cada instante que é o pior”.


Autor(es)
Dominique Fingermann
é psicanalista e diretora da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano – Fórum São Paulo.


Notas

1. S. Beckett, L’innominable, Paris, Minuit, p. 181.

2. Idem.

3. M. Blanchot, Thomas l’Obscur, Paris, Gallimard, p. 97.

4. S. Beckett, Cap au Pire, Paris, Minuit, 2001, Worstward Ho, Londres, Calder-London, 1983.

5. M. Blanchot, op.cit.

6. R. Barthes, Le Plaisir du texte. Paris, Seuil, p. 87

7. J. Lacan, “Hommage fait à Marguerite Duras”, Autres Écrits, Paris, Seuil, p. 192. “L’artiste toujours précède le psychanalyste, il n’a donc pas à faire le psychologue lá où l’artiste lui fraie la voie”

8. Ver nota 35.

9. M. Bousseyroux, Figures du pire – Logique d’un choix,ethique d’un pari, Psychanalyse &. PUM

10. S. Freud, “Le Créateur littéraire et la fantaisie”, Gallimard, Paris, p. 33, “Nous autres profanes, nous avons toujours été très curieux de savoir où cette singulière personnalité, le créateur littéraire, va prendre sa matière,.. et comment il parvient, par elle à tellement nous saisir, à provoquer en nous des émotions dont nous ne nous serions peut-être même pas crus capable.”

11. J. Lacan, Séminaire, 76-77, “L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre”, p. 119, “A l’aide de ce qu’on appelle l’écriture poétique , vous pouvez avoir la dimenson de ce que pourrait être l’interprétation analytique.”

12. J. L. Austin: Quand dire c’est faire, ( How do things with words), Seuil – Essais.

13. S. Freud, “L’inquietante étrangeté”.

14. M. Duras, Détruire – dit-elle, Paris, Editions de Minuit p. 34.

15. Idem, p. 60.

16. M.Blanchot Thomas l’Obscur, op. cit., p. 6

17. J. Lacan, Litturaterre, Autres Ecrits, p. 17

18. M. Blanchot, Thomas l’Obscur, op. cit., p. 114.

19. M. Blanchot, L’Espace littéraire, Folio essais.

20. Idem, p. 114.

21. M. Blanchot, Thomas l’Obscur, op. cit., p. 111.

22. Idem, p. 124.

23. Idem, p. 128.

24. Idem, p. 18.

25. Idem, p.107.

26. M. Blanchot, L’Espace littéraire , Folio Essais, p. 54.

27. S. Beckett, L’innominable, Paris, Minuit, p. 181.

28. S. Beckett, Cap au Pire, Paris, Minuit, 2001, p.7

29. E. M. Cioran, Cahiers de l’Herne special Beckett, Le Livre de poche biblio essais, p. 50.

30. S. Beckett, L’Innominable-, op. cit., p. 211

31. S. Beckett, Cette Fois , Paris, Minuit.

32. S. Beckett, L’Innominable , op. cit., p. 199.

33. M. Blanchot, Le livre à venir, , Folio Essais, p. 28.

34. J. Lacan, “Autres Ecrits”, Litturaterre, p. 11.

35. M. Blanchot, Le livre à venir, op. cit.


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 TEXTO

Os passadores do pior

Beckett, Blanchot, Duras: travessias


Dominique Fingermann


É Beckett quem começa: “É o fim que é o pior, não, é o começo que é o pior, depois é o meio, mas depois no fim é o fim que é o pior, esta voz que, é cada instante que é o pior. (...) é preciso continuar ainda um pouco, é preciso continuar ainda muito tempo, é preciso continuar ainda sempre...” [1]

Então, o pior ainda. E ainda, de novo, voltar ao pior, mas aí não ficar, passar. É isso que o título “Os passadores do pior” diz: a travessia é necessária. Ficar na pior é a pior das alternativas. O sertão se atravessa; é travessia. O sertão é deserto para todos, para quem quer que seja, para as almas vivas e as mortas. A moradia do ser – a linguagem – é também seu exílio. O sertão é a travessia sempre recomeçada, o ser tão perdido na linguagem se procura e se acha, e se perde de novo, de palavra em palavra, de exílio em exílio. Travessia. Passagem. Isso passa? Passo a passo: isso passa e não cessa de passar. “É preciso continuar ainda um pouco, é preciso continuar ainda muito tempo, é preciso continuar ainda sempre.” [2]

Tem impasse; mas é possível passar por cima, a não ser para quem fica na pior – e para quem fica nas piores das hipóteses. Desde o início, desde a primeira experiência de satisfação e sua mancada originária fazem- se hipóteses sobre o pior que ex-siste ao humano, suposições que enganam, ajudam, permitem que se creia, que se cresça e aconteça.

Blanchot explicita essas suposições como: “uma maneira tão grosseira de tratar o impossível” e como uma “infinidade de combinações para conjurar o vazio” que não evitam que “(…) o mal-estar seja pior...” [3] O problema não é a suposição, é a aderência: aderir às hipóteses do pior é pior para todos: neuróticos, psicóticos, perversos. Também é pior para o mundo e a civilização. A cada vez que a suposição do pior, em dimensão global e na proporção das massas, se fixa, se fetichisa, sado-masoquisa, extermina (do holocausto à bomba H), o pior se torna pior.

Assim, em cada análise, passo a passo, isso passa, repassa, impassa, compassa, para lá e para cá, extrapassa, no fim se ultrapassa. “O que passou? Como isso passa?”, pergunta-se um analisante ao cabo de uma transferência, ao final de uma análise. No passe, dispositivo que Lacan inventou para poder responder à essa questão, o destinatário da resposta se faz passador no tempo de um passe. O passador é o destinatário provisório do pior que passou para o sujeito chamado passante. A notícia da passagem do pior tem que poder passar para frente a fim de averiguar que houve o traspassamento da neurose e passagem ao analista. É isso que o dispositivo lacaniano se dispõe a verificar: provar a travessia do pior. Um pior que passou, mas que nunca mais vai cessar de passar, como um ponto de fuga que nunca se perde de vista.

Um passador é quem ajuda a franquear, ultrapassar um obstáculo, uma fronteira, o caminho da morte. O passador sabe do caminho – ida e volta – ele sabe que se passa de um lado para outro, ele sabe do sertão infinito e de sua travessia sempre recomeçada. Num eixo assintótico, o pior está na mira do passador, mantendo a direção, o sentido, sem jamais cair na tentação de ficar na pior, aderir a uma hipótese do pior, acreditar que já chegou lá, e dar um sentido ao pior. O passador não pode perder o pior de vista, caso contrário tropeça na sua travessia e não permite ao passante acertar o passo e passar.

Rumo ao pior [4] (Worstward Ho) é o último texto de Beckett. Podemos chamar Beckett e alguns outros autores de passadores do pior, porque os textos que produzem possibilitam encontros inéditos e, ao mesmo tempo, obscuramente familiares; encontros ainda inauditos até o exato momento em que tropeçamos numa frase, numa entonação, num tropo, que muda a nossa vida. Quem não passou por esta experiência? Blanchot assim fala de um encontro que poderia muito bem ter sido um encontro de um leitor com seu texto: “Em um único olhar ela se fundia em mim e nessa intimidade, descobriu minha ausência. (...) Ela perseguia perdidamente esse mistério. (...) Eu sentia que ela se encolhia para se jogar nessa ausência como em seu espelho. Doravante estava aí seu reflexo, sua forma exata, aí seu abismo pessoal. Ela se via, se desejava, se apagava, se rejeitava e duvidava inefavelmente de si mesma e cedia à tentação de se atingir aí onde ela não estava (...)” [5]

Alguns encontros com textos dão essa impressão de captura, de deslumbramento, de ser pego por um prazer do texto, como diz Barthes [6], ou, melhor dizendo, por um além do princípio de prazer do texto. Muitos são os textos arrebatadores que des-cobrem nossa ausência, e nos fazem ceder à tentação de se atingir aí onde não estava: Duras, Beckett, Blanchot, Lispector, Levi. E outros também.

Gostaria de poder transmitir, passar para frente, as vias do estilo de cada um para tornar transmissível o inominável, poder transferir como cada um fez e faz para sempre, para que a transcendência de seu texto produza essa passagem mágica pelo âmago do humano, tão propenso, em outras circunstâncias, a aderir às piores figuras (figurações) que se possa imaginar. Como produzem algo que mira no pior e acerta, fisga o humano? Cada passador tem uma maneira específica de produzir o silêncio, um silêncio profundo e irremediável, enlaçado com algo, que, sem ocultar nem abafar, realiza, atualiza e permite que se passe, permite a travessia. Se tivesse que adjetivar como leio o enlace de cada um desses silêncios com o humano, diria: Duras / o desejo que infinitiza e serena o desamparo; Beckett / o humor que fura o trágico irônico; Blanchot / a surpresa que furta o fado; Lispector / a doçura que espanta a solidão; Levi / a leveza que atravessa o horror.

Mas estas palavras são poucas para dizer desta mágica; os críticos literários teriam mais rigor para dizer disto, para explicar o estilo, para dizer como se faz este enlaçamento singular do humano em torno do melhor e do pior que a palavra produz.

O que pode ser dito a partir da psicanálise, de sua experiência e de sua teoria? É evidente que não se trata de fazer uma psicanálise aplicada ao texto literário, e extrair do texto interpretações que reduziriam o seu autor a um sujeito. É evidente, pois há muito tempo este equívoco não assombra mais as relações dos psicanalistas e dos literários. “O artista sempre precede o psicanalista, portanto este não tem nada que bancar o psicólogo ali onde o artista lhe trilha o caminho” [7], diz Lacan.

É ainda mais evidente no caso particular destes autores (especialmente Blanchot e Beckett) que dedicaram boa parte de sua empreitada literária a produzir um texto que não fosse pretexto de uma suposição do sujeito, mas pelo contrário uma prova de destituição subjetiva como condição da obra.

O que pode ser dito a partir da psicanálise, de sua experiência e de sua teoria?

Lembrar a deferência especial que os psicanalistas têm em relação à literatura. A questão de Freud e Lacan, entre outros, foi de tentar elucidar como algumas obras – passadoras do pior – chegam ao que a psicanálise pode chegar de melhor no fim? [8]

Evocar algumas das figuras do pior [9] que a ficção literária desses autores é capaz de proporcionar, e como se produz a travessia. Duras: Détruire – dit-elle – Blanchot: Thomas l’Obscur – Beckett: l’Innomable.

Finalmente, retomar a questão da finalidade e do fim de uma análise.

Os escritores criativos e os psicanalistas

A psicanálise e os psicanalistas têm uma deferência especial em relação aos escritores criativos. Freud assim anunciou em seu texto de 1908, “Os escritores criativos e a fantasia”: “Nós os leigos sempre tivemos curiosidade de saber onde esta singular personalidade, o escritor criativo, vai buscar a sua matéria-prima (...) e como ele consegue, por meio dela, nos fisgar de tal forma a nos provocar emoções das quais não acreditaríamos ser capazes.” [10]

Desde sua descoberta do inconsciente – a partir da doença transformada em texto através da virtude da associação livre – Freud se indagou sobre este passe de mágica dos criadores. Estes, com efeito, a partir da mesma origem da falta do objeto e dos mesmos recursos pulsionais, conseguem produzir as obras que nos afetam, deliciam ou espantam, ao passo que o neurótico, partindo do mesmo princípio, se arrasta no fardo e no fado de sua neurose, cuja criatividade enfadonha não tem graça nem para ele mesmo. Não é para nós uma questão apenas estética, mas também interesseira e ética. Interessa saber como orientar as análises para que no fim se reduza o texto da neurose à estrutura do conto – como diz Lacan. Interessa almejar que pela graça do desejo do analista que corta, talha e cala, a neurose ao final possa se deduzir e se reduzir ao matema e ao poema.

A partir da mesma falta radical e inicial, e a partir dos mesmos recursos pulsionais que na neurose, uma solução singular produz um efeito que alcança o outro e o enlaça (faz laço social, faz cultura). Produzindo seu mais íntimo/êxtimo, a letra fisga o outro no mais íntimo/ êxtimo. A letra, litter, literal, litoral – que desenha “a borda do furo no saber”, a letra, se for letra, “chega sempre a seu destino”: afeta, ativa, atua, “provoca em nós emoções das quais não nos acharíamos capazes.”

Temos aí mais uma lição da literatura para a psicanálise: sua incidência, sua eficácia, o poder da palavra, seu poder interpretativo: “Com a ajuda do que se chama de escritura poética, pode se ter uma dimensão do que poderia ser a interpretação analítica.” [11]

De ambos os lados (do analisante e do analista) a letra faz ato, é performativa, (lembrando o título de Austin: Quando dizer é fazer [12]) a performatividade desse enunciado é de designar, cingir a enunciação, fazer ser, letra, l’être, para além da instituição do sujeito pelo significante, o eu que pensa. Por isso precisa produzir uma subversão, uma ruptura do semblant, das significações geridas pelas leis do significante. A letra parte do pior, da falta, para contorná-lo, produzindo esse contorno que tanto baliza quanto assinala. A letra está para além da angústia; ela faz sinthoma, uma solução que não ignora o pior: antes o trança e trespassa. A letra, tangencialmente, borda o pior; isso explica que seus efeitos de Unheimlich sejam particularmente sensíveis nos gêneros poéticos fantásticos, como Freud o soube explicitar no seu ensaio de referência “Das Unheimliche”. [13]

Passagens do pior

Retomemos os passadores do pior que escolhi apresentar: Marguerite Duras, Maurice Blanchot e Samuel Beckett: eles dão boas lições para os psicanalistas, três lições do pior e de suas possíveis travessias. Chamo as três de passagens do pior: Duras, o jogo do desejo; Blanchot, o engodo do fantasma; Beckett, a ironia do sinthome. Apropriandome de uma obra de cada um, pretendo mostrar como demonstram em ato, no ato da escrita, a aporia humana que chamamos o pior. Duras, pelo jogo do desejo sempre Outro, encena dramaticamente a questão da impossível relação; Blanchot demonstra terrivelmente a travessia dos piores engodos do pior, e Beckett expõe ironicamente, para além da travessia, a passagem infinda pelo pior.

O jogo do desejo Détruire – dit-elle de Marguerite Duras [14]

Como qualificar a dimensão do pior na obra de Marguerite Duras? Será o desejo ou será a loucura? Talvez o termo “deslumbramento” (ravissement) condense os dois em sua eventual colisão, como nos apresenta O deslumbramento de Lol V. Stein e em quase todos os seus primeiros longos romances até seus últimos recados curtos e secos. O título Détruire – dit-elle evoca de início esta possível colisão. É um curto romance de 1958, escrito em estilo de roteiro cinematográfico. Teve uma versão filmada e contém indicações precisas da autora para a representação teatral. A narrativa é, portanto, teatral: possui descrições do cenário, dos movimentos de cena e dos diálogos. A cena, desde as primeiras linhas, é uma Outra cena, a cena do desejo, sempre do Outro, onde os protagonistas são: ele e ela, mas também ele e outra ela. Essas personagens têm nomes: Stein, Alissa, Max Thor, Elisabeth Alione (Elisa), mas o uso dos pronomes muitas vezes nos confunde e deixa incerto quem é quem, e sobretudo quem deseja quem. O desejo é o centro da questão em cena, mas poucas palavras, poucas declarações explicitam esse desejo. Ele circula de um a outra e volta para o primeiro, passando pelo outro e retornando para outra outra: ele circula, vai e vem, de um olhar para outro. Poucas vezes os olhares se olham, não se cruzam ou se completam; raramente se respondem. Pelo contrário, as bolas de tênis ressoam regularmente para lá e para cá, para lá e para cá nas quadras invisíveis que separam a cena da floresta, metáfora do trespassamento fatal do desejo. Jogos invisíveis, mas que cativam o olhar que fita um lugar sempre outro.

— “Então, haveria algo a dizer a respeito do tênis? – pergunta Alissa
— Sim. Sobre o tênis que é observado.
— Por uma mulher?
— Sim. Distraída.
— Pelo quê?
— Nada.”

“Ela contempla o vazio, diz Stein. É a única coisa que ela olha. Mas é isso! Ela observa atentamente o vazio. É isto, diz Max Thor, é o olhar que (...)” [15]

É o olhar que vislumbra o que não se pode ver, é o olhar que deslumbra e aspira num turbilhão o que não se pode dizer.

O eco surdo e repetitivo das trocas de bolas marca o passo do silêncio da outra cena onde, subentendidos, elipse e reticências dão o ritmo de um jogo outro. Parece uma partida, (uma partida de cartas bizarra é efetivamente encenada), uma partida de cartas em que não se sabem as regras de antemão, mas elas se descobrem a partir das jogadas dos outros parceiros que se regulam, por sua vez, nos lances dos outros jogadores. Um jogo no qual as teias do desejo tecido pelos olhares que não se olham, mas olham o desejo, precipita um frisson, uma fissura, um abismo: olhar o olhar dela perdido no nada – olhar eles fazendo amor – olhar a floresta obscura – olhar as quadras. Na teia do desejo tecido pelos olhares, algo se joga de uma maneira sub-reptícia e quase maligna, algo como uma partida de ou vai ou racha, sem saber por onde se vai. Alguns vão, a outra racha, o desejo deslumbra e pode ser devastador: o pior, é isso que parece que vai acontecer no fim para a Outra mulher, Elisabeth Alione, como para tantas outras mulheres das passagens do pior de Duras.

Duras é passadora do pior quando monta estas cenas nas quais, entre silêncios e olhares, palpita uma incógnita que de repente se precipita e perdidamente se acha no olhar do outro, que olha o vazio, embarca repentinamente nesta jogada e provavelmente se perderá na devastação do lance incerto baseado na suposição e no desespero da alma. É assim que a ausência íntima de um pode se perder no que falta ao Outro, é assim que se passa: a captura do desejo pelo desejo do outro. Passagem, quando é travessia. Devastação, quando o sujeito aí se prende e se exila.

O engodo monstruoso do fantasma em Thomas l’ Obscur de Blanchot


“Maurice Blanchot, escritor e crítico literário. Sua vida foi inteiramente votada à literatura e ao silêncio que lhe é próprio” [16] – anuncia a página que antecede o início do romance Thomas l’Obscur.

Se as críticas literárias de Blanchot são precisas e assertivas, os seus romances são esquisitos, inquietantes e estranhos exercícios de Unheimlich. L’arrêt de mort relata um trecho autobiográfico de Blanchot e começa como uma história (uma agonia e um luto), mas de repente a história se interrompe e quebra toda possibilidade de fechar uma significação (“rompe o significante” [17], diz Lacan) produzindo desamparo no leitor ao construir este abandono do sentido. Outra história prossegue (um encontro amoroso), e também ficará suspensa no incerto e no enigma de sua conclusão.

Thomas l’Obscur, seu primeiro romance, de uma certa forma retoma o mesmo enredo, mas compõe uma espessura mais densa para a história, como se explicitasse nas entrelinhas do sujeito o impensável, o outro lado do cogito blanchotiano: “penso, logo não sou” [18]. Cada capítulo começa tranqüilamente como uma história qualquer de um sujeito pensante qualquer: “Thomas sentou-se e contemplou o mar. Durante algum tempo ele permaneceu imóvel”, mas em seguida, sem mais transição, desenrola-se o outro texto: o texto do impensável, do “logo não sou”, além/aquém de Thomas (“essa nulidade indiscernível que ligava ao nome de Thomas”): o lado do Obscuro. (“Bem longe do pensamento que repele a obscuridade elementar.” [19]) Este texto relata a experiência do que ele chama de segunda morte, uma experiência do “não sendo” (“No centro de Thomas vivo, a proximidade inacessível de Thomas inexistente.)” [20]

Essa experiência tem vários momentos, que são atravessados em uma série de passagens cruciais. Há uma seqüência de momentos de passe que vão desde diversos encontros com a angústia, o desejo do Outro, a inconsistência da linguagem, a falta de relação, até as soluções, as astúcias que os personagens vão inventar: “para dar corpo ao nada” e “descobrir o ser no abismo vertiginoso em que não está”, para enfim passar, atravessando esse pior e sua “monstruosa substância” e deduzir que essa “ausência”, esse “não sendo” é “uma parte perdida num constante naufrágio à qual eu devo minha direção, minha figura, minha necessidade. Encontrava minha prova neste movimento em direção ao inexistente, a prova de que eu existia se fortalecia até à evidência.” [21]

Um dos encontros de Thomas com a ausência que constitui a linguagem, com seu silêncio radical e o fato de ele enunciar uma negação do ser, se produz num encontro particularmente medonho com as próprias palavras, que surgem fantasticamente do texto do livro que Thomas está lendo, para aniquilar, oprimir, sufocar o personagem e constituir Thomas como o próprio obscuro, opaco para si mesmo. Esta tortura das palavras vãs é figurada da pior maneira possível: as palavras devoradoras do ser se metamorfoseiam em um rato obsceno e feroz que será absorvido e incorporado por Thomas. (Não podemos aqui evitar lembrar tanto a metamorfose de Gregor Samsa, de Kafka, quanto a incorporação da barata pela GH de Clarice Lispector.) No silêncio do Outro, ausência de relação dos sexos, limite absurdo e absoluto da palavra, imagina- se uma forma “monstruosa, sem formas”, e pelo gesto primitivo da incorporação figura-se uma identificação oral ao resto. Identificação aniquilante ao que se supõe ser o dejeto do outro. É essa identificação que será atravessada ao longo do texto, identificação em que o pior é feito coisa consistente e permite identidade, relação monstruosa consigo mesmo. “Uma espécie de ser feito com tudo o que é excluído do ser, se oferece como objetivo para meus procedimentos” [22], e isso faz com que assim “eu te faço experimentar como uma relação, tua suprema identidade. Eu te nomeia e define.” [23] “Talvez ele pudesse ter interpretado essa sensação de uma outra maneira, mas ele precisava sempre ir do lado do pior.” [24]

A travessia dessas versões do pior termina com o esvaziamento da tentação desse “ideal funesto” [25]. No lugar esvaziado sabemos que Blanchot propõe o espaço literário, o espaço da letra, que permite que desde “este ponto irredutível”, centro enigmático operador da obra, que transporta o próprio leitor “até o infinito”. “Isto diz, mas não remete a alguma coisa por dizer, a algo de silencioso que lhe garantiria o sentido.” [26]

A ironia do sinthome em L’innominable de Samuel Beckett

Onde Blanchot termina, começa Beckett, e não pára mais, até hoje. Rumo ao pior, o texto de Beckett, continua a travessia: “É preciso continuar ainda sempre [27]” (“Encore. Dire encore. Soit dit encore.Tant mal que pis encore.”) [28]

Cioran comenta a seu respeito “desde a primeira vez que o encontrei, entendi que ele havia chegado ao extremo e que talvez ele tivesse começado por ali, pelo impossível, pelo excepcional, pelo impasse”. [29]

Beckett atormentado, torturado, errante, fazendo falar o silêncio por meio do falatório desses personagens que, de tão vagabundos e moribundos, indigentes, vermes, meio-gente, em suas últimas obras acabam por não ser nada: uma poça d’água, um monte de lixo, uma boca, uma voz. No entanto Beckett, em sua obra, não procura mais; ele acha, incansavelmente, acha e acha de novo, sem esperar mais Godot. Beckett, como Blanchot e Duras, de um texto para outro, diz sempre a mesma coisa. Diz que não tem mais o que esperar das palavras do Outro: “a palavra é o pior”, mas não existe nenhum outro jeito, há que continuar, pois “o silêncio é o pior”. Ao longo de vários de seus textos ele revela as astúcias, os artifícios para continuar, apesar da ausência total de garantia, de conforto, de contorno da situação. No entanto, o que se coloca no lugar do pior silêncio não é o jogo de escondeesconde com o que se supõe do desejo do outro que Duras representa, nem as soluções de fixação e ficção frente ao trágico do furo no Outro. Beckett não fixa, ele passa e repassa pelo pior. Subverte o pior numa derisão constante, num artifício que o explora, inventoria, desvia e contorna o tempo inteiro. Com sua ironia, a sua litter-rasura do pior, apesar do trágico extenso, o pior faz rir (du pire au rire).

O sujeito é destituído, sem nome. O inominável é, no entanto, feito de palavras e tem-se que dizer as palavras, já que se tem palavras; enquanto as temos. “Eu sou em palavras, eu sou feito de palavras, palavras dos outros. Eu sou todas estas palavras, todos estes estrangeiros, esta poeira de verbo. É preciso dizer palavras enquanto elas estão aí (...) é preciso tentar logo, com as palavras que restam.” [30]

Existem outros artifícios para resistir ao pior: uns personagens, umas lembranças, alguns objetos, algumas hipóteses e conjeturas. Os diversos personagens de Beckett usam estes artifícios de maneiras mais ou menos bem-sucedidas para ajudar a continuar: a sacola preta de pequenos bens no Oh les beaux jours, o armário em O Inominável, onde se buscam restos de objetos de um passado. Há também as diversos personagens que deambulam de um texto ao outro, pequenos outros, figuras bem precárias de diversão do pior. Isso é flagrante em Malone Meurt, onde Malone interrompe seu monólogo para contar algumas histórias de personagens sem graça, que ele mesmo denuncia como artifícios de diversão. “(...) uma dessas histórias que você ia inventando para comportar o vazio, como ainda uma dessas velhas fábulas para que o vazio não venha amortalhar.” [31]

Sobretudo, apesar de tudo, artifício precário porém incontornável, restam as palavras. Antes maldizer do que pior, o silêncio (“O silêncio, uma palavra sobre o silêncio. Sob o silêncio, é pior.” [32])

Então ele fala. Ele? Quem fala? Ele não tem mais nome, o inominável, as palavras que maldizem não servem para o nomear, servem para fazer existir um dizer que subsiste, insiste, apesar do maldito. Quem fala? Beckett? “Mas é ele quem fala? pergunta Blanchot – O que é este vazio que se transforma em fala na intimidade aberta daquele que nele desaparece?”[33]

Ao final, o que Beckett nos ensina é que, de palavra em palavra, de silêncio em silêncio, é preciso se “virar”, se débrouiller, dar um jeito, é preciso continuar: “Sim, em minha vida, posto que é preciso chamá-la assim, houve três coisas: a impossibilidade de falar, a impossibilidade de calar e a solidão física; claro que pra isso eu dei um jeito”. Com isso Beckett se virou bem com seu sinthome, com sua ausência de saída.

“Y allant tout droit de ce qu’on peut attendre d’une psychanlyse à la fin.”[34]

Esta é a lição da literatura para a psicanálise: no fim, uma psicanálise, passando pelo pior, pode fazer o melhor para o ser humano: transformá-lo em passador, rumo ao pior sem perder o humor. Concluindo, com Blanchot: “O escritor se encontra nessa situação cada vez mais cômica de não ter nada a dizer, de não ver nenhum modo de escrevê-lo e de ver-se constrangido por uma necessidade extreme de sempre escrever.” [35] É o que podemos esperar de melhor, por pior que pareça. Parafraseando uma frase de Blanchot28 sobre a literatura, eu diria: a psicanálise, se parece abrir para o homem uma saída e facilitar o sucesso de sua maestria, quando tudo for bem-sucedido (a psicanálise) descobre bruscamente a ausência de saída que lhe é própria.

Escrever serve... Duras diz,“à quoi ça sert d’écrire”? Pra quê?

“É ao mesmo tempo calar-se e falar”, responde ela.
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