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Resumo
Resenha de "Melanie Klein – Estilo e Pensamento" - Elisa Maria de Ulhoa Cintra e Luis Cláudio Figueiredo. São Paulo, Escuta, 2004.


Autor(es)
Alfredo Naffah Neto Naffah Neto
é psicanalista, mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica?- núcleo "Método psicanalítico e formações da cultura". Publicou vários livros e artigos sobre psicanálise e música.


Notas

1. Iluminismo sombrio designa aí, em Freud, a “...tênue divisória que separa o fascínio pelo não-racional da intenção de dominá-lo e esclarecê-lo”, num “jogo complexo entre sombra e luzes” (Loureiro, Inês O carvalho e o pinheiro – Freud e o estilo romântico, São Paulo, Escuta/Fapesp, 2002, p. 349.

2. Os autores revelam o quanto Melanie, em função de uma forte depressão, nunca conseguiu cuidar de forma satisfatória dos dois filhos mais velhos, Hans e Melitta (que ficaram praticamente abandonados por ela e confiados à avó materna), tendo somente realizado isso com o caçula, Erich. Isso pode lançar luz sobre várias questões: a morte (suicídio?) de Hans e o ódio invejoso com que sua filha Melitta a atacou durante anos a fio. Em mim, mobilizou, além disso, a impressão de que a tendência kleiniana em afirmar uma base constitucional para a inveja pode ter advindo, em parte, de uma dificuldade própria em reconhecer e elaborar o seu quinhão de responsabilidade na produção da inveja de Melitta (já que deu a Erich e à psicanálise um investimento amoroso que não pôde dar à filha). Nesse sentido, a teorização biologizante pode ter funcionado como um ótimo mecanismo de defesa contra a culpa. Conjeturas de um analista com fortes tendências winnicottianas, tenho de confessar...

3. Aliás, esse conluio entre Melitta e Glover – que era seu analista – na difamação de Melanie nos evidencia, já nessa época, o quanto analistas usavam de seus poderes transferenciais em lutas pelo poder.

4. Aí jaz, talvez, a maior diferença de Winnicott, para quem o recémnascido ainda não experimenta – por natureza – quaisquer transbordamentos ou conflitos pulsionais; apenas possui necessidades básicas que precisam ser atendidas e uma continuidade-de-ser que precisa ser preservada pela mãe suficientemente boa.



Abstract
By Alfredo Naffah Neto – review of Luis Claudio Figueiredo and Elisa M. Ulhoa Cintra, "Melanie Klein, Estilo e Pensamento" This recension emphazises the style of the book, whose authors present a clear introduction to Klein’s ideas from a general standing point that they name “somber Illuminism”. Lacan had called her, half jokingly, “la tripière inspirée” – “an inspired butcher” – alluding to the weight of archaic elements and of primeval violence in her description of the unconscious. This book, feels Mr. Naffah, gives a balanced perspective on Klein’s thought, exploring its internal logic and the origins of her concepts both in clinical practice and in a very personal reading of Freud.

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 LEITURA

Melanie Klein: a “tripeira inspirada” em versão iluminista

Melanie Klein: the “inspired butcher” in an Illuminist version
Alfredo Naffah Neto Naffah Neto


É comum se experimentarem algumas formas de resistência à leitura do texto kleiniano. Uma delas, mais explícita, deve-se ao que Smirnoff descreveu como carnificina, baile sangrento, em que o visceral – em suas diferentes versões – ocupa o lugar principal. Não foi, pois, por mero acaso que Lacan a batizou de tripeira inspirada. Outra – menos explicitada – deve-se à maneira como mistura, sem qualquer aviso prévio, descrições experienciais, clínicas e especulações metapsicológicas, confundindo bastante o leitor. “Não se distinguindo um plano do outro, a tendência é para certo dogmatismo, pois quase tudo o que Melanie Klein afirma aparece como totalmente fundado na observação – e esta seria indiscutível” (p. 53). No entanto, sua obra é leitura obrigatória para qualquer psicanalista sério, seja ele freudiano, de linhagem francesa, americana ou inglesa. Basta dizer que autores do porte de Winnicott e Bion, sem a passagem por ela, não seriam quem são. Melanie é, nesse sentido, quase tão essencial à psicanálise quanto o próprio Freud.

Entretanto, como poucos se dão ao trabalho de ler os seus textos com o cuidado necessário, disseminam-se as simplificações de seu pensamento. Assim, é corriqueiro tomar-se a sobreposição/dominância das posições por uma evolução linear (da esquizo-paranóide evolui-se para a depressiva, pura e simplesmente) e banalizarem- se os mecanismos de defesa primitivos (quando a noção de identificação projetiva, generalizada, perde a sua singularidade e rigor).

Também a clínica kleiniana é capaz de provocar narizes torcidos, desde o célebre relato do caso Richard (Narrativa da análise de uma criança) em que – sem a menor cerimônia e sem quaisquer mediações – na interpretação de Melanie, uma estrela do mar virava um bebê voraz e uma planta marinha, seios maternos (isso, apenas à guisa de exemplo). Lacan falava num greffe (enxerto), operado pela palavra do analista no psiquismo do paciente.

Numa vertente oposta, os analistas kleinianos sempre formaram um mundo à parte, num nível de ortodoxia beirando, por vezes, o fanatismo.

Esta é, talvez, a maior vantagem dos autores deste livro: não serem kleinianos. Tendo um trabalho teórico-clínico mais inspirado pelo Middle Group inglês (e nos últimos tempos por André Green, em sua tentativa de fazer a mediação desses autores com Freud), mas reconhecendo os méritos de Melanie, possuem um nível de distanciamento que lhes permite, além de uma pesquisa rigorosa de sua obra, sua avaliação destituída de partidarismos.

Mas talvez a sua maior riqueza seja de outra ordem: a capacidade de traduzi-la num estilo muito mais requintado, onde as misturas kleinianas são sempre temperadas por discussões esclarecedoras, seja da origem histórica do conceito, seja de sua articulação (e transformações subseqüentes) no todo da obra. Esse estilo – que prima pela capacidade de iluminar a obra kleiniana, buscando as razões de ser de cada conceito na construção teórico-clínica, sem permitir que essa racionalidade destrua as sombras imanentes ao pensar da autora – é que associo a um iluminismo sombrio (parodiando Inês Loureiro, ao descrever a obra freudiana)[1]. A alusão a Freud é aí proposital: é como se este livro nos permitisse apreciar a obra de Melanie Klein, num estilo muito mais próximo àquela elegância exibida pelo criador da psicanálise no desenvolvimento do seu texto. E, como os autores consideram Melanie “uma espécie de iluminista radical” (p. 173), é como se a sua teoria encontrasse, aqui, uma relação mais consonante entre conteúdo e forma (tal qual possivelmente seria, tivesse Melanie tido uma formação universitária). Isso possibilita um afrouxamento de todas aquelas resistências comumente produzidas pela obra kleiniana, além de lhe restituir uma complexidade e um rigor que permaneciam obscurecidos por tantas simplificações do seu pensamento.

O livro inicia-se com uma introdução de Elias Mallet de Rocha Barros, ressaltando as qualidades e articulações internas do texto. Seguem-se alguns esclarecimentos dos autores sobre o projeto de escrevê-lo, em que explicitam sua não-filiação kleiniana e, ao mesmo tempo, seu reconhecimento da grande importância da obra de Melanie, agradecimentos a colaboradores, etc.

“Melanie: algumas informações introdutórias” constitui uma pequena biografia de Melanie Klein, desde seu nascimento em Viena, em 1882, até a sua morte, em Londres, em 1960. Penso que a maior importância desse capítulo seja realizar uma articulação importante entre eventos da vida da autora e a sua produção. A aplicação do método psicanalítico em seu filho caçula Erich (numa época em que esse tipo de intervenção não era condenável), gerou o seu primeiro texto escrito, além do ingresso na psicanálise. A perda do filho Hans, em 1934, numa escalada de montanha (num tipo de morte que poderia ser interpretada como suicídio) funcionou como pano de fundo para suas elaborações teóricas sobre o luto. E não seria irmos longe demais – embora o livro não afirme isso, em momento algum – vermos na relação conturbada com sua filha Melitta (que, também psicanalista, atacou a mãe/rival de todas as formas possíveis) um ingrediente indispensável nos seus escritos sobre a inveja. No todo, ficamos com a impressão de alguém capaz de tirar proveito do sofrimento e de usá-lo de forma criadora, ainda que com algum viés inevitável [2].

“Melanie Klein, a psicanálise e o movimento psicanalítico internacional: dados históricos”, como o próprio título revela, descreve as várias etapas da obra kleiniana, pontuando a sua atuação pelas várias cidades que habitou (Budapeste, Berlim e Londres). Enfatiza, entretanto, a morada londrina: a oposição que sofreu dos freudianos (especialmente do grupo liderado por Anna Freud e da filha Melitta, aliada a Edward Glover); a formação do seu grupo de apoio e a difusão de sua obra pelo mundo [3].

“Apreciação introdutória do estilo de pensamento e de escrita” descreve-nos, justamente, as resistências inspiradas pelo estilo kleiniano (aquilo de que falei no início desta resenha), enfatizando, entretanto, a importância dessa psicanálise do infantil, reveladora dessa criança-presente-no-adulto “...com quem precisamos desesperadamente entrar em contato, não só como reserva vital, como fundamento de nosso idioma mais arcaico, precioso recurso contratransferencial que pode ser colocado a serviço de nossos pacientes” (p. 56).

“Pequena reconstituição da história dos sistemas kleinianos” constitui o capítulo central do livro, sendo, por isso mesmo, o mais longo. É percorrendo-o que percebemos toda a complexidade da obra kleiniana, aqui descrita por meio de diferentes sistemas que, através do tempo, compuseram-na.

Desde a década de 1920, Melanie preocupa-se com a desmesura da mente do bebê: excesso pulsional, voracidade lançada sobre os objetos e capaz – por um movimento reflexo – de produzir um superego precoce (o devorar retornando e internalizando-se como ser devorado). Trata-se de um recém- nascido, assaltado por violências pulsionais sem ter, ainda, um aparelho psíquico pronto para lidar com elas [4]. “Lei da selva” (em que predomina a pulsão de morte, destrutiva, devoradora), reino de objetos parciais a serem meramente consumidos, transbordamento libidinal de partes do corpo infantil sobre esses mesmos objetos, produzindo as primeiras relações simbólicas: complexidade desse universo de trocas incessantes, formado pelo bebê e seu mundo. Ódio e destrutividade (devoração) preponderando nas etapas pré-genitais, cedendo lugar, paulatinamente, ao amor e à consideração quando o bebê se torna capaz de reconhecer a mãe e, por conseqüência, um terceiro estranho (não-mãe), tendo origem a primeira triangulação e as relações do objeto total (com o cuidado e o desejo de reparação). E a mãe, vista como ego-auxiliar necessário, capaz de conter os transbordamentos pulsionais do bebê: quem disse que Melanie, à sua maneira, não considerava o ambiente?

Na década de 1930, acontecem – além das primeiras sistematizações sobre a técnica kleiniana – as teorizações sobre os dois tipos de angústia: a persecutória e a depressiva. O mecanismo de projeção passa a ser considerado o mecanismo principal de interação da criança com o ambiente, sua forma de distribuir amor e ódio sobre ele. Também é caracterizado o conceito de posição, que designa “uma nova colocação perante o objeto. Na posição paranóide, estar diante do objeto indicava o seu consumo e, inversamente (...), o medo de sua perseguição, pois as partes excluídas e maltratadas vinham a se tornar uma fonte de ameaças. Na posição depressiva, estar diante do objeto é antes de tudo reconhecêlo como alguém que desejo preservar e que posso perder” (p. 80). Mas o desejo de preservar e reparar os objetos danificados pode ser solapado pelas defesas maníacas, que desejam realizar isso magicamente, pela mera anulação dos ataques realizados. Pois, reparar o objeto danificado implica inserir os processos psíquicos no tempo e na transitoriedade, tornando necessária a elaboração do luto já que, com isso, sempre algo se perde e algo se ganha. O luto implica, nesse sentido, a “aceitação de uma morte e de algum tipo de renascimento” (p. 93). É pela necessidade de negar a morte que as defesas maníacas ganham espaço. E é pela firme introjeção de uma objeto bom, que a capacidade de amar e reparar da criança poderá sobrepujar as defesas maníacas e os retornos freqüentes à posição paranóide. Por objeto bom entenda- se “...o nome da experiência de satisfação introjetada e convertida em uma fonte de bem-estar e segurança..” (p. 84). Com o objeto bom firmemente introjetado, a estabilidade interna cria melhores condições para a aceitação da transitoriedade mundana.

Na década de 1940, a posição esquizóide recebe o seu nome definitivo: esquizo-paranóide, cunhando-se o conceito de identificação projetiva e ressaltando- se os mecanismos esquizóides e os paranóides. Na identificação projetiva, dada a violência das pulsões, partes insuportáveis do self (designando aqui um conglomerado egoid) são cindidas e projetadas no ambiente, para que este realize algum tipo de processamento desses aspectos não tolerados. Essas cisões separam o bom do mau, o amor do ódio, protegendo o ego frágil pelo isolamento (mecanismos esquizóides). Mas os aspectos maus projetados tendem a retornar de forma persecutória (mecanismos paranóides). As cisões do ego (ou excisões, melhor dizendo) criam um empobrecimento e um estado de desintegração egóica, podendo levar à esquizofrenia. É, novamente, o apelo à introjeção do objeto bom que irá garantir a possibilidade de gradativa integração egóica. Mais adiante será desenvolvida a idéia do entrelaçamento e sobreposição das duas posições: esquizo-paranóide e depressiva, durante toda a vida, sendo mais correto se falar em dominância alternada de uma delas, em diferentes períodos de vida.

Na década de 1950, ocorrem, finalmente as elaborações sobre inveja e gratidão. O conceito de inveja é aquele que mais enraíza o pensamento kleiniano na dimensão biológica, dada sua articulação à intensidade da voracidade infantil (que ela acha poder estar ligada ao metabolismo e ao equilíbrio hormonal do recém-nascido), bem como à descontinuidade entre vida intra e extra-uterina, por meio do nascimento (outro acontecimento constitucional), quando um estado de plenitude é perdido. A equação aí é: quanto mais intensa a voracidade, maior a insatisfação, com conseqüente ressentimento, ódio e desejo de atacar o objeto frustrante. Diferentemente de Freud, que descreve a inveja como inveja do pênis, para Melanie ela é, primariamente, inveja do seio, só posteriormente, e por deslocamento, passando a englobar a equação seio-pênis (como símbolos de vida). Com a maior integração do ego e o surgimento da culpa e do desejo de reparação, a inveja tende a ceder lugar à gratidão. Se a inveja estraga a fruição do objeto pelo desejo de destruí-lo, a gratidão é, ao contrário “...o fundamento da apreciação do que há de bom nos outros e em si mesmo” (p. 133).

“Considerações gerais sobre alguns aspectos do conjunto do sistema kleiniano” aprofunda a articulação entre os seus conceitos, nas transformações sofridas pela teoria, tecendo considerações sobre a grande importância do corpo na teoria kleiniana (as sensações corporais compondo o tecido mais arcaico da fantasia inconsciente), avaliando diferenças de Freud (posição central da inveja para um, do desejo para o outro; diferentes concepções do complexo de Édipo), de Winnicott e Bion, etc.

“A clínica kleiniana: estilo, técnica e ética” descreve a clínica do aqui e agora (o que isso significa, de fato) e as habilidades necessárias ao analista kleiniano, bem como os riscos que carrega de se tornar um clínica intrusiva e autoritária. Finaliza falando-nos sobre a introjeção do vínculo parental (finalidade maior da análise kleiniana), paradoxo da “aceitação de uma dependência fundamental dos objetos de cuja aliança se está sempre parcialmente excluído” (p. 187).

“O pensamento kleiniano sobre sociedade e cultura: vida institucional, ética, política e estética”, finalmente, aborda concepções do grupo kleiniano referentes à vida em sociedade, à ética do bem-estar comum e à estética (produções de obras de arte e bens culturais), garimpando uma bibliografia pouco conhecida e divulgada.

No final, temos a sensação de estar diante de um desses universos misteriosos, turbilhonantes, feitos de circunvoluções complexas, em que assistimos o caos pulsional gradativamente tomar forma, a partir de um fundo ilimitado. Caleidoscópio da vida.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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