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Resumo
Neste texto, o binômio intolerância/tolerân­cia é abordado a partir de conceitos freudianos: o narcisismo, a pulsão de morte e o amor ao objeto focado no enlace libidinal, especialmente na identificação. A economia libidinal também é considerada à luz de trechos de entrevistas com participantes de um trabalho de inclusão social – o que contribui para reflexões acerca de políticas de tolerância.


Palavras-chave
intolerância; tolerância; narcisismo; identificação; enlace libidinal.


Autor(es)
Mara Selaibe
é psicanalista, aluna do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em Psicologia Social.


Notas

1 F. Héritier, “Les matrices de l’intolerance et de la violence”, p. 343.

2 M. Sahlins, “Natureza em construção”, p. 4-6.

3 M. Selaibe, “Raízes da intolerância”.

4 S. Freud (1921) “Psicologia de las masas y analisis del yo”, p. 2583-5.

5 J. Birman, “O mal-estar na modernidade e a psicanálise”, p. 137.

6 A. Green, Narcisismo de vida, narcisismo de morte.

7 A. Green, op. cit.

8 S. Freud, (1914) “Introduccion al narcisismo”, op. cit.

9 S. Freud, (1918) “El tabu de la virgindad”, (1921) “Psicologia de las masas…” e (1930) “El Malestar en la cultura”, op. cit.

10 A. Green, op. cit, p. 22.

11 I. Bertazzo, Espaço e corpo: guia de reeducação do movimento, p. 37

12 O Projeto Dança Comunidade foi organizado e dirigido pelo coreógrafo e bailarino paulistano Ivaldo Bertazzo. Foi composto por um conjunto de propostas voltadas à educação pelo movimento e teve duração prevista entre 2004 e 2006, em parceria com o SESC SP. Incluiu um total de 39 jovens oriundos da periferia da cidade de São Paulo. O projeto criou dois espetáculos: Samwaad (2004) e Milágrimas (2005). Com eles promoveu, nacional e internacionalmente, muitas reflexões sobre as tensas relações entre estratos sociais diversos no que concerne ao acesso e à produção da cultura, à inclusão social e à educação, entre outros. A mim despertou interesse em conhecer o discurso desses jovens envolvidos diretamente, com seus corpos e suas subjetividades. Realizei algumas entrevistas com alguns deles. O presente texto resulta de minhas reflexões partindo dessa experiência que julgo importante.

13 C. Campelo, Tenso equilíbrio na dança da sociedade, p. 61. (Trata-se de Marleide, uma jovem, moradora da Cidade Tiradentes, região leste da cidade de São Paulo.)

14 Entrevistas concedidas à autora, em 16/11/2006. As gravações estão disponíveis em fita cassete.

15 Fabiano, jovem morador da Favela Pantanal, na União Vila Nova, região Norte da cidade de São Paulo. Integrante da ong Novo Olhar.

16 ong Projeto Arrastão.

17 Rubens, jovem morador do Jardim Saint Moritz, em Taboão da Serra, zona oeste da Grande São Paulo. Integrante do Projeto Arrastão.



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Selaibe M., “Raízes psíquicas da intolerância”. Disponível no site www.rumoatolerancia.fflch.usp. br

_____. “Intolerância precoce: a fome de zero a seis”. Disponível no site www.rumoatolerancia.fflch.usp. br

Varella D.; Bertazzo I.; Jacques P. B. (2002). Maré, vida na favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.





Abstract
This work discusses the conceptual couple tolerance/intolerance by means of the Freudian ideas of narcissism, death drive and object love, with special attention to the identification involved in the libidinal link. It also sheds light on the economy of the libido, examining sections of interviews with individuals who take part in a program of social inclusion. Policies that enhance attitudes of tolerance are also discussed.


Keywords
intolerance; tolerance; narcissism; identification; libidinal tie.

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 TEXTO

Enlace libidinal e tolerância

Libidinal tie and tolerance
Mara Selaibe


Localizando a questão


A antropóloga social Françoise Héritier, em seu texto “Les matrices de l’intolerance et de la violence”, cita o filósofo Paul Ricoeur: “A tolerância é uma virtude reflexiva à espera de reciprocidade”. E ela acrescenta: “Sem as duas (virtude reflexiva e reciprocidade), a porta está aberta a todas as violências imagináveis” [1]. No adjetivo reflexiva está presente a exigência do pensamento; já a reciprocidade pede correspondência mútua de palavras e atos. Ainda, e de modo implícito: o termo virtude reflexiva também confere ao sujeito psíquico e à alteridade a condição de estarem – ambos – envolvidos na ação afirmativa de acato às diferenças. O exercício da tolerância, mesmo que relativo, por vezes pontual e tantas outras vezes circunscrito a um ato de resistência, é, sem dúvida, uma conquista importante da cultura no transcorrer da história das civilizações com seus sistemas sociais variáveis. Conforme aprendemos com a antropologia cultural, os imperativos de nossa assim chamada natureza humana são obrigatoriamente culturalizados [2], portanto vividos no escopo de nossas definições simbólicas, de nossos códigos de valores. Assim se passa com a sexualidade e com a destrutividade: não há como serem praticadas absolutamente extrínsecas à cultura mesmo quando – na busca de um gozo que as rebata sobre o rótulo da pura pulsionalidade – sejam exercidas fora das leis e regras vigentes. A referência ao universo cultural estará presente ainda que sob a marca da transgressão e da negação.

O binômio tolerância/intolerância inscreve-se no interior das construções simbólicas humanas, circunscrito a cada modo cultural vivido. Se a antropologia encontra ferramentas para avançar diante de diferentes conjuntos de valores de sociedades cujas bases simbólicas são diversas e até mesmo díspares, muitas vezes contraditórias, a psicanálise, por seu turno, como fruto da cultura ocidental moderna, discute a tolerância tomando em conta os conceitos e as semióticas dessa época histórica.

Em texto anterior [3], preocupei-me em apontar os fundamentos psíquicos irracionais da intolerância, tal como Freud os descreveu. Naquela oportunidade, sublinhei a força da pulsão de morte na cultura, responsável pelo mal-estar que persiste em seus interstícios, tornando insolúvel o conflito básico entre a natureza pulsional e a cultura moderna. As práticas intolerantes – perpetradas pelo pior do Estado e também infiltradas no cotidiano dos cidadãos comuns – são exemplos das manifestações do mal-estar, em proporções e alcances distintos. Apesar de importante, essa análise não integra outro aspecto de decisiva interferência em tal conflito. Neste texto, portanto, concentro-me na pergunta: o que ocorre com o sujeito psíquico em termos do equilíbrio imprescindível entre investimento narcísico e os investimentos objetais na delicada aritmética entre o pacto edípico e o pacto social? Ou seja, meu foco será o enlace libidinal com o mundo, isso que sustenta toda produção simbólica e é responsável por uma espécie de política de tolerância.

Há um trecho escrito por Freud, em 1921, que uso aqui de maneira introdutória, uma vez que nele encontro os principais aspectos envolvidos nessa problemática, ainda tão atual. Ele escreve:

Conforme o testemunho da psicanálise, quase todas as relações afetivas íntimas de alguma duração entre duas pessoas – o matrimônio, a amizade, o amor paterno e o filial [Freud alerta para uma única exceção: o amor da mãe pelo filho] – deixam um depósito de sentimentos hostis, que precisa, para escapar da percepção, do processo de repressão. […] O mesmo fato se produz quando os homens se reúnem para formar conjuntos mais amplos. […] Duas cidades vizinhas serão sempre rivais […]. Os grupos étnicos afins se repelem reciprocamente; o alemão do Sul não pode agüentar o do Norte […] e o espanhol despreza o português. A aversão é mais difícil de dominar quanto maiores são as diferenças e, deste modo, já não achamos estranho o que […] os arianos [experimentam] pelos semitas e os brancos pelos homens de cor.

E alguns parágrafos adiante, ele completa:

Mas toda essa intolerância desaparece, rápida ou duradouramente, na massa. [Nela] os indivíduos se comportam como ajustados pelo mesmo padrão: toleram todas as particularidades dos outros, se consideram iguais a eles e não experimentam o menor sentimento de aversão. Segundo nossas teorias, tal restrição do narcisismo não pode ser provocada senão por um só fator; pelo enlace libidinoso a outras pessoas. O egoísmo não encontra um limite mais além do que no amor a outros, o amor a objetos. […] No desenvolvimento da Humanidade, como no do indivíduo, é o amor o que se revelou ser o principal fator de civilização, e ainda talvez o único, determinando a passagem do egoísmo ao altruísmo. E tanto o amor sexual […] como o amor dessexualizado por outros homens, homossexual sublimado; amor que nasce do trabalho comum [4].

Não vou seguir a rota da psicologia das massas e suas identificações com os líderes – caminho sobre o qual Freud muito nos ensina. Aponto para os elementos teóricos registrados nessa citação. Eles concentram uma direção para as políticas de tolerância que as coletividades têm conseguido promover, ainda que sempre de modo incompleto, e com resultados tão desiguais, porque, afinal, as práticas de sustentação da tolerância têm se mostrado variáveis historicamente. De toda maneira, a realização completa, em tudo que é humano, não corresponde à realidade.

Tratando conceitualmente a questão

Freud relacionou a intolerância e a tolerância a conceitos como por um lado o narcisismo e a pulsão de morte e, por outro, o amor ao objeto, ou seja, o enlace libidinoso e a identificação.

1. O narcisismo primário e a presença do outro

A conquista da tolerância – porque justamente trata-se de uma conquista – implica o problema inicial entre a formação do sujeito psicossexual e a sociabilidade que o acolhe com suas práticas afetivo-simbólicas de ordens estética, ética e política encarregadas da administração de seu desamparo. Por administração do desamparo deve-se entender as satisfações das demandas materiais, sim, – mas, especialmente, de sentido. Ao nascer, se não for cuidado fisicamente, o recém-nascido humano morre. Nosso destino, se entregues à natureza, é a morte. E se não for desejado e amado sofrerá agravos psíquicos que comprometerão ou inviabilizarão sua vida. Os pais, ou quem desempenha suas funções, serão, na qualidade de membros da cultura mais próximos de cada bebê, os portadores da missão de criar-lhe as condições para a vida. Entretanto, do ponto de vista do sujeito psíquico incipiente, esse acolhimento é vivido no modo do narcisismo primário, como uma temporalidade mítica, portanto não cronologicamente definida em sua extensão. Esse estado não inclui discriminação interior/exterior, sujeito/objeto, afeto/desejo/representação, uma vez que não há distância entre o ser e o ter, entre o desejo e a possessão do desejado; nesse estado, todas as vivências são experimentadas como oriundas de si mesmo, todas as experiências de satisfação são remetidas ao interior do próprio corpo e do eu-corporal. E será desse momento mítico, talhado na experiência do prazer, que se formará o ponto de partida da constituição do eu e, ao mesmo tempo, o foco maior de resistência e intolerância ao outro.

Esse amor narcísico em estado de completude fusional com o objeto não experienciado como tal será necessariamente rompido: o curso da vida impõe o reconhecimento do outro que, em alternâncias, também falta e frustra esse sujeito. Como lembra Freud, o seio, muitas vezes, quando não disponível, faz falta à criança… Sua ausência responde por uma quebra, uma descontinuidade que fere: desmorona-se o sentido de completude de seu mundo, traumatiza-se o sujeito pela ausência de sentido experimentada como excesso nascido de sua própria demanda interior não atendida. Isso obrigará ao reconhecimento do que lhe é exterior com sua correlata importância vital [6].

O psicanalista André Green [7] ressalta que as tensões entre o narcisismo fundante e as relações com o mundo serão sustentadas, em condições de equilíbrio, se a ferida perpetrada sobre a fantasia de onipotência infantil não atingir destrutivamente a imagem de unidade egóica, cuja base é o próprio narcisismo. Freud [8] afirmou que o eu se constitui a partir de um novo ato psíquico por ele denominado de narcisismo – o que implica o lugar do narcisismo no centro do eu. As relações entre o narcisismo e o eu, bem como entre o eu e os objetos são também a história dos variados laços da economia libidinal entre o sujeito e o mundo partilhado. Laços sem os quais a vida não se sustenta; mundo no qual repercutirão efeitos da presença interna do objeto externo e, por vezes, também da presença traumática resultante da ação de um objeto externo.

Green aponta que esse momento ideal de ruptura do idílio psíquico permite que os investimentos primariamente voltados a si se dividam. Uma parte seguirá auto-investida e impregnará todos os níveis da vida psíquica do sujeito fazendo-o sempre, em alguma intensidade, narcisicamente auto-referente e satisfeito consigo; outra parte investirá inicialmente na tentativa alucinatória de restabelecer o estado de plenitude narcísica anterior e, diante da impossibilidade de se satisfazer apenas com isso, terá de se confrontar com a falta de sentido e com a angústia decorrente. Está fundado o buraco/falta. O sujeito psíquico, ancorado na imaginação sustentada na repetição das experiências de satisfação, estabelece uma conexão entre o buraco e a falta do que lhe satisfaz. Esse será o berço da ambivalência dos afetos dirigida à alteridade de agora em diante. O objeto original foi cindido em bom (por prover) e mau (por privar); os afetos e desejos correspondentes também. O amor e o ódio estarão para sempre na base das ligações. E, a cada vez, o perigo se recoloca: atribuir o mau ao que está fora de si e o bom ao que está dentro de si. Esse é o aspecto central do que Freud desenvolveu como narcisismo das pequenas diferenças [9].

Tais bases sustentam uma posição atual quando se trata de considerar as implicações entre o eu e as pulsões de vida e de morte – envolvidas em dinâmicas de fusão e defusão variadas –, bem como todos os matizes entre o eu e o mundo, em especial as relações de identificação que o eu fará ao longo da vida. Mas o eu jamais poderá se auto-suprir num universo sem laços e relações. “O que se opõe ao narcisismo (escreve André Green numa expressão muito feliz) é, justamente, a irredutibilidade do objeto.” [10]

Se o narcisismo primário tem esse caráter importante gerador da matriz do eu, ele também, por sua natureza paranóica que julga o mau como algo que vem de fora de si, rejeitará, intolerante, a alteridade, a diversidade, a dessemelhança. Contudo, junto à ferida que se forma quando da quebra do estado de completude imaginária, duas situações se seguirão: a busca ininterrupta por reaver esse estado desde o princípio fadado à frustração e, também, a continuidade do processo de discriminação entre o eu e o não-eu.

As relações de objeto são decisivas para os limites do narcisismo. Elas promovem interferências de duas ordens opostas e complementares. São essas relações que regulam os limites do narcisismo justamente porque os objetos são irredutíveis; também fornecem a matéria-prima para as identificações que, em certa medida, são guardiãs imprescindíveis da formação do eu. Não fosse assim, o sujeito não se constituiria.

Essa dupla função das relações com o mundo alimenta as chances do eu frente à árdua e jamais completamente finalizada tarefa de separação e reconhecimento da alteridade. Elas formam decisivos traçados na construção das instâncias e das dinâmicas do psiquismo: a presença do objeto em relação ao mal equipado eu nascente lhe oferece matéria para fusão/identificação narcísica a qual, por sua vez, sustenta o eu. Ao mesmo tempo, secundariamente, a ausência do objeto de satisfação frustra as fantasias de onipotência e obrigam o sujeito a se reconhecer fora de seu próprio centro em busca de reencontro desse objeto capaz de lhe restituir a experiência estruturante de ser (imaginariamente) indiviso. Outra qualidade de identificação se impõe.

2. Sobre as identificações e a vida entre os homens

O que ocorre, especificamente, no processo de identificação tal como descrito por Green? A identificação pode ser entendida como a mais precoce ligação afetiva de que somos capazes em nossas vidas. Ela se pautará por um tipo de amor regido pela ambivalência em relação ao outro por ele ser capaz de suprir e privar. Trata-se, pois, de um enlace com o outro que restabelece, em certa medida necessária, a ilusão imaginária do centramento do eu. Essa ilusão é patológica quando busca neutralizar o objeto. Mas ela não é patológica e, sim, estruturante, quando fortalece a capacidade do eu de se manter nessa zona ilusória, mesmo que, concomitantemente e num outro nível, sabendo de sua dependência interna e externa dos objetos de suas relações. O caminho para o estabelecimento do pensar, do simbolizar, da criatividade se inicia pelo reconhecimento da falta e pela alucinação da satisfação negada por essa ausência que já foi presença.

Falar de identificação é falar do longo trabalho de discriminação entre eu e não-eu. Nossa singularidade e nossa humanidade são criadas pela via dupla da trama identificatória e da diferenciação/separação. Se tomarmos em conta o caminho básico para as identificações implicadas na formação do eu, lembraremos que a identificação inclui no eu uma parte, um traço, um algo do objeto, mas não ignora, concomitantemente, a existência dessa alteridade diferente do eu. Quando ocorre a identificação, duas coisas têm lugar: a ausência do objeto é admitida e, por conta dela, ocorre uma introjeção de algo do objeto no interior do eu. É assim que o objeto ausente torna-se objeto presente sem deixar de ser separado, apesar de estar introjetado parcialmente. Esse é o caminho da saída do narcisismo fundante.

Ao longo da vida – e esse aspecto é bastante relevante – o conjunto das identificações, estabelecido de maneira coerente, é o que compõe um sistema de relações que dá consistência e referência ao sujeito. Portanto, quando tentamos compreender algo do que opera nos interstícios da vida social, temos de retomar a idéia da identificação. Ela permite ao sujeito ampliar os domínios do eu pela introjeção de modelos coletivos civilizatórios. Inclusive os ideais da cultura serão introjetados por identificações, mesmo não sendo ideais que se componham entre si. Ainda assim, haverá, para o sujeito, coerência no seu sistema relacional constituído.

Ao mesmo tempo que se identifica, o sujeito passa a reconhecer-se como alguém separado dos outros com os quais se identificou. Se separado, então incompleto – incompleto diante da irredutibilidade de cada um e de cada situação que pode satisfazê-lo também parcialmente. O princípio da identificação é o enganche pulsional com uma ponta de mundo – ação crucial para que o sujeito produza algo que o implique junto e diante dos outros. E o que poderia definir o laço conectivo da pulsão com o mundo? Como isso deve ser entendido em relação à tolerância?

Se afirmássemos que a intolerância tem suas bases assentadas na natureza humana pulsional, seríamos levados a pensar que a tolerância, por sua vez, precisaria se desenvolver exclusivamente tendo a seu favor uma mudança na natureza do narcisismo e o uso do recalque da pulsão destrutiva. Entretanto, nos esqueceríamos, caso defendêssemos essa posição de jeito tão simplista, de que em inúmeras situações adversas ao exercício da tolerância o que se encontra presente são enormes combinatórias conflitantes de causas éticas e políticas agindo no cotidiano, nas relações micropolíticas, em dimensões capilares da gestão dos afetos. Quais os operadores da tolerância, sempre temporários, que valem para uma época em um determinado lugar? Quais as estratégias que cada meio de cultura engendra para com elas promover modos de sentir e agir tolerantes?

3. Pacto edípico e pacto social

Em 1983, o psicanalista brasileiro Hélio Pelle­grino publicou o artigo “Pacto edípico e pacto social”. Com suas referências psicanalíticas ancoradas em Freud e Lacan, Pellegrino parte do complexo de Édipo como o momento crucial no qual, por temor à castração, o menino recalca seu amor incestuoso acompanhado de seu impulso parricida; por medo à castração, sim, mas, especialmente, por ser amado e respeitado é que pode superar sua ligação primordial com a mãe, tornando-se capaz de internalizar a lei do incesto e identificar-se com os valores paternos. Essa passagem prepara o menino para, em tempo futuro, integrar a sociedade. A proibição do incesto internalizada será, mais tarde, por sua vez, o ponto aglutinador em condições suficientes para uma identificação com os ideais da cultura, estruturando o que Freud nomeou de ideal do eu. A lei do incesto interdita o incesto e autoriza todas as outras escolhas amorosas não-incestuosas. Dessa maneira o desejo ganha inserção no circuito das trocas sociais. A criança não fica condenada à concretude da ligação primitiva à mãe e adquire capacidade de sustentar seu modo singular de desejar. O Édipo deve ser entendido como o limite imprescindível promotor de uma abertura para além das fronteiras maternas. Eros é o regente dessa operação – o que permite afirmar que uma construção erótica está no fundamento do processo civilizatório. O pacto estabelecido pode ser traduzido assim: “eu, por vias inconscientes que não domino, renuncio aos meus impulsos sexuais primários e, em contrapartida, posso ser, tal como meu pai, incluído no mundo da cultura”. Pellegrino delineia o específico da interpretação freudiana sobre esse processo. Em 1930, Freud nos alerta para uma espécie de rancor à cultura que persistirá para sempre no interior de cada sujeito, constrangido, para integrar a civilização, a renunciar à satisfação plena e direta de suas pulsões sexuais e agressivas.

Quando apto às amplas trocas do mundo adulto, esse sujeito terá a oportunidade de reafirmar sua renúncia pulsional ao aceitar o princípio de realidade, articulando-se pela via do trabalho aos preceitos da cultura. Em torno do trabalho se organiza o pacto social que poderia ser enunciado mais ou menos assim: “eu, que por vias inconscientes, assumi a renúncia pulsional colocada na qualidade de condição para ser aceito como membro desta sociedade, renuncio agora, pelas mesmas vias, ao princípio do prazer ao oferecer meu trabalho e minha competência. Em contrapartida, espero que se cumpra, por parte da sociedade, meu direito de receber o que preciso para manter minha integridade física e psíquica”.

A relação entre os dois pactos é muito íntima. Se o primeiro não se estabelece ou, em decorrência de conflitos familiares, estabelece-se de modo prejudicado, condutas anti-sociais poderão surgir. De outra perspectiva, se a sociedade não cumpre sua parte conforme o necessário no pacto social, isso terá força para ameaçar ou mesmo romper o pacto edípico instituído no inconsciente do sujeito psíquico. Nessa hora o fundamento da cultura, o pacto edípico, que exigia do sujeito um recalque de seus impulsos pulsionais sexuais e agressivos, será lesado. Como conseqüência, a volta do recalcado trará à tona impulsos delinqüentes parricidas, homicidas, incestuosos. Essa tese de correspondência entre os dois pactos é lançada por Pellegrino para colaborar no entendimento da violência nos grandes centros urbanos brasileiros já na década de 1980.

A violência e a intolerância são práticas coexistentes. E para tecer considerações que contribuam para a conquista e a sustentação da tolerância em nossas sociedades, não se devem separar os aspectos individuais dos coletivos, sob o risco de criar uma dificuldade intransponível para esse entendimento.

Toda teoria psicanalítica afirmará a necessidade do pacto edípico: de uma parte a presença da coerção interior, levada a cabo pelo superego, herdeiro do complexo de Édipo, para impedir os desejos incestuosos e o parricídio. De outra parte, a possibilidade do exercício da sexualidade e da agressividade no contexto de um ideário forjado e contido pelo grupo social que acolhe o sujeito. Isso não deriva apenas dos movimentos psíquicos de cada qual submerso em seus traços e cartografias inconscientes como se se tratasse tão somente de uma construção individual. Cabe à cultura a contrapartida do investimento pulsional para, assim, regular as trocas e sustentar as ofertas. A economia libidinal precisa ser atendida e as formações ideais do eu, como instância psíquica, têm de encontrar condições coletivas de conexão e ancoragem. Apesar do conhecido alerta de Freud de que mesmo diante dos esforços realizados pelas construções civilizatórias algo sempre permanecerá pulsando silenciosamente – sem nome, sem representação, sem simbolização, pronto a emergir oriundo do território de nossos confins, do mal que nos compõe e se espalha na cultura; desse mal radical inerente ao desamparo do qual não nos livramos em definitivo e que somos obrigados a administrar a vida toda – ainda assim a função conectiva da cultura permanece essencial.

O trabalho cotidiano de criar laços, fazer ligações, estabelecer e sustentar relações e dessas práticas construir valores, projetos com desdobramentos, realizações que contribuem é o único caminho que pode instaurar a tolerância entre os homens. Nas relações estão implicadas as identificações. Quando temos laços de identificação com o outro, podemos reconhecê-lo como semelhante a nós e, ao mesmo tempo, separado e diverso de nós. No leque das tantas possibilidades identificatórias, esse tipo de identificação, sustentada naquilo que a cultura tem a oferecer ao sujeito psíquico, é importante para
a constituição do ideal do eu.

Intolerância / tolerância

A tensão entre a natureza humana pulsional e o processo civilizatório pede incessantes elaborações porque não é possível encontrar sua superação derradeira. As políticas de tolerância dependem do melhor entendimento dessa máxima. A travessia desde o narcisismo paranóico fundante, sempre pronto a se manifestar, até as relações de objetos que implicam nas identificações, depende do atendimento que será oferecido à economia libidinal vida afora. E não diz respeito apenas ao período da infância. No mundo psíquico, nada é ultrapassado e descartado ou superado para sempre. Tudo se mantém como que em estado virtual e pode se atualizar se condições se apresentarem. Portanto, o Estado e a sociedade em geral devem saber que as políticas implementadas nas áreas social, de saúde e de educação não se restringem à economia financeira e, sim, são comunicantes com a economia libidinal. É fundamental levar em conta que economia libidinal e economia financeira estão amalgamadas na política desde o princípio. O engano, ou quem sabe, o descaso para com essa verdade humana não faz com que ela seja menos verdadeira nem sequer diminui a influência mútua de suas forças. Apenas despreza um fator decisivo na condução do cotidiano da coletividade. Os psicanalistas, encontrem-se na universidade ou nos institutos de psicanálise, precisam fazer ecoar a ligação entre essas economias (libidinais e financeiras), colocando seu saber à disposição das instituições interessadas.

Uma maneira simples e contextualizada de explicar tal postura pode ser encontrada na frase escrita pelo bailarino e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, cujo trabalho de inclusão social com jovens da periferia de São Paulo tem sido reconhecido em várias partes do mundo:

Meu objetivo […] é mostrar aos educadores de todo o Brasil, como a organização do movimento [corporal] no espaço, complementada e acentuada por atividades no plano verbal e musical, pode auxiliar o desenvolvimento intelectual, afetivo e artístico dos adolescentes [11].

Ou seja, proporcionar ao sujeito psíquico uma ponta de mundo compartilhado para que ele o utilize em prol de si e em prol da coletividade. Essa dinâmica é essencial para o trato com as pulsões fundamentais inerentes ao humano.

Uma das jovens bailarinas, participante do grupo Dança Comunidade [12] criado por Ivaldo Bertazzo, diz numa entrevista: “Você fica em casa sentada, o tempo passa e nada muda…” [13]. Algo muda quando ela inicia sua participação no projeto desse grupo. Ali encontrou uma possibilidade de investir a partir das fantasias e desejos próprios, e um campo de realização possível acontece no tempo e no espaço reais compartilhados. Mesmo que seja apenas a chance de, a chance de alguma coisa mais interessante e realizadora, alguma coisa que acolha o impulso libidinal capaz de criação e participação e com o que o circuito pulsional se configura. A chance é a idéia encarnada de que algo diferente do “nada muda” possa ser experimentado. A chance é chance de se ligar com o mundo que se oferece para que o sujeito se enganche e teça uma experiência ao mesmo tempo interna/subjetiva e partilhada/intersubjetiva. Numa chance como essa ocorre um trabalho constante de constituição e sustentação da subjetividade pela via da continência social. O campo social opera como a alteridade que sustenta o circuito pulsional para o sujeito psíquico.

Outros dois rapazes, também integrantes desse grupo, numa outra oportunidade de entrevista conjunta [14], afirmam a respeito da importância, para eles positiva, de participar de projetos coletivos. Neste trecho consideram o risco de se envolverem em situações ilícitas por não terem algo produtivo com o que se ligar:

Se você fica sem fazer nada… […] Tinha de fazer alguma coisa. Ferro velho… Ganhava R$5,00 por semana… humilhação… R$5,00… Daí dava vontade de pegar alguma coisa de lojinha escondido. Tipo no bolso, quem vai ver? Começa assim. Vai pegando bolacha, coisinha assim e depois você vai querer roubar uma coisa maior… [15].

O segundo deles completa:

No meu caso, eu acredito que seria muito fácil eu sair e dispersar porque a minha mãe trabalhava na casa de família e ela só vinha de 15 em 15 dias. […] Quem segurava a onda era minha irmã mais velha que também trabalhava, fazia faculdade à noite e… Então a gente ia pra escola de manhã, chegava à tarde arrumava a casa e o restante você é livre pra fazer o que você quiser. Então, se não tivesse esse encaminhamento até a ONG [16]… porque, por mais que talvez não fosse o que eu queria naquele momento, me ocupava de alguma coisa. Então tava sempre te ocupando, sempre te ocupando até entrar na sua cabeça: “Putz!, aqui na ong a gente tem vários campos” assim… eu comecei a enxergar vários campos. Então é por isso que eu falo que, se não tivesse a ong, eu estando em casa todos os dias, seria muito fácil eu ter umas idéias… [17].

O acolhimento referido por esses jovens está pautado por uma engenhosidade coletiva: cada integrante de cada proposta realiza com ela um laço de atenção, afetos e ofertas que abraçam cada jovem, fazendo-o sentir que sua existência importa aos que estão ao seu redor. Esse investimento, micropolítico, incorporado à reserva narcísica, permite o trabalho psíquico de integração do eu. O investimento libidinal que a coletividade faz no sujeito constrói para ele a certeza de estar sendo visto e reconhecido como humano. Os grandes programas de atendimento social revertem em maior grau de tolerância na vida cotidiana apenas quando atingem as pessoas envolvidas com chances de, retomando Ricoeur, reflexão e reciprocidade: sem assistencialismo, sem ofertas avessas ao desejo dos sujeitos.

É sabido: a intolerância está diretamente relacionada com o narcisismo, que busca eliminar tudo que não reconhece como gerado e nascido no próprio eu, por sua vez idealizado no seio da onipotência infantil. Mas não contraditoriamente, a intolerância deve também ser pensada como um tipo de resposta violenta diante do trauma que sofre a onipotência infantil, cuja dor advém da carência do narcisismo agora entendido como o investimento necessário e positivo na constituição do eu. Uma coisa é o narcisismo alimentado a partir de um fechamento do eu sobre si mesmo. Outra coisa é o narcisismo derivado do investimento que o mundo faz no sujeito por suas criações e elaborações, dotando-o, assim, de sentido.

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