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ÍNDICE TEMÁTICO 
41
Presença do psicanalista
ano XXI - dezembro de 2008
160 páginas
capa: Renina Katz
  
 

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Resumo
Resenha de Fátima Milnitzky (org.), Narcisismo: o vazio na cultura e a crise de sentido, Goiânia, Dimensão, 2007.


Autor(es)
Alessandra Monachesi Ribeiro
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.


Referências bibliográficas
Birman J. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Blissett L. http://www.lutherblissett.net/
Freud S. (1911/1996). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xii.
_____ (1914/1996). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xiv.
_____ (1917 [1915]/1996). Luto e melancolia. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xiv.
Krauss R. E. (1999). The destiny of the informe. In: Y.-A Bois; R. E. Krauss, Formless: a user’s guide. New York: Zone Books. p. 235-52.
Ming Wu. http://www.wumingfoundation.com/Por uma outra utopia



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 LEITURA

Narcisismo ou sua ausência na contemporaneidade?

Narcisism or its absence in our time?
Alessandra Monachesi Ribeiro


Resenha de Fátima Milnitzky (org.), Narcisismo: o vazio na cultura e a crise de sentido, Goiânia, Dimensão, 2007.

Um livro a respeito do narcisismo, a partir do enfoque psicanalítico, não pode se furtar a dois movimentos: o primeiro, ao realizar uma análise da contemporaneidade a partir das implicações que o narcisismo – entendido aqui como base para o individualismo e o hedonismo crescentes – traz para o existir humano. O segundo, ao referir-se à alteridade, ao outro imprescindível para a constituição do eu e aos modos como esse outro é considerado em nossos tempos. Narcisismo, eu, outro e os contextos sociais e culturais que lhes facilitam ou não o encontro e a ultrapassagem. Narcisismo: o vazio na cultura e a crise de sentido não escapa a esse duplo movimento.

No âmbito da análise da cultura, o narcisismo é pensado como a possibilidade de constituição de sujeito que vigora nas relações cotidianas, marcadas que estão pela falência da função paterna, ausência de um referente que estruture psiquismos e organize o campo social através da oferta de um lugar e um sentido sabidos para cada ente humano – quer a partir de uma concepção religiosa, quer por meio da lei dos homens – ineficiência da linguagem e do simbólico como possibilitadores de representação, sentido e, no limite, criação de marcas psíquicas.

Referências a Bauman, Lasch, Lipovetsky e mais um número de pensadores contemporâ­neos afirmando à exaustão a falência dos sustentáculos que apoiavam o homem moderno (ou pré-moderno, a depender de que se conceba que estaríamos agora em uma modernidade ou em uma pós-modernidade) em sua inserção no mundo, na rede de relações e, até, na constituição de algo como uma noção de si. Nada disso opera mais e, em parte considerável dos textos, os autores desse livro encarregam-se de retomar tal constatação.

Fazê-lo a partir do referencial lacaniano – como Fátima Milnitzky e Christian Dunker em seu texto que parte do corpo áureo matemático para discutir o corpo do homem como medida da perfeição das formas – traz um risco interessante na medida em que coloca em discussão a experiência de um corpo próprio unificado como base para a formação de um eu. A experiência dessa unidade, marcada pelo olhar espelhado por um outro, afirma o narcisismo como algo que gira em torno do olhar, remetendo o leitor à imagem e ao imaginário lacaniano para pensá-lo.

A leitura de um primeiro Lacan advogou esse imaginário marcado pelo olhar, que pacifica e tampona a falta, subsumido a um simbólico que é necessário implementar, interessado que estava em restaurar a figura do pai e o fundamento da lei como organizadores de um psiquismo capaz de representação e sentido. De outra feita, Joel Birman (2006) escreveu um excelente ensaio sobre o momento em que Lacan propõe essa restauração do pai como resposta à falência incontornável. Movimento de retorno a certo estado de coisas no qual o simbólico faria sentido como norteador para o psicanalista frente à cultura do narcisismo, marcada pela importância do corpo perfeito como centro da cena contemporânea. Mas a que serviria esse enfoque orientado pela inscrição simbólica e pela articulação no campo da linguagem ao debruçar-se sobre a cultura e o indivíduo contemporâneos ditos narcisistas? Voltemos ao livro.

É no campo das artes, mais precisamente das artes visuais das quais trata o texto de Vladimir Safatle, que essa tensão entre a leitura da cultura do narcisismo como vazio e crise de sentido e a proposta lacaniana de uma saída pelo simbólico se mostrará mais contundente e instigante. Já no título, o texto traz a delicada questão de como a psicanálise pode se aproximar de artistas e do fazer artístico sob a ameaça de, por vezes, reduzi-los a produtos e provas de determinada configuração subjetiva, como se produções e artistas pudessem se tornar “casos” sob o olhar do psicanalista ou do filósofo marcado pela psicanálise. É como se Cindy Sherman e Jeff Koons oferecessem testemunho de seus narcisismos individuais e do narcisismo da cultura. Não é disso que se trata, felizmente. É o olhar psicanalítico que enxerga nessas produções artísticas a condição de uma interlocução e de falar a partir do que elas lhes suscitam.

Os trabalhos de Cindy Sherman não são autorretratos. Ainda que seja a artista sempre a modelo de suas fotografias, e, como ela não se cansa de afirmar nas diversas ocasiões e contextos em que fala a respeito da própria obra, justificando-a a partir da rica e irônica discussão que faz de seu próprio meio, o campo da arte. Abordagem da problemática da imagem de si a partir do corpo próprio – tema que, de resto, atravessa toda a discussão a respeito do narcisismo proposta ao longo do livro – é, dessa maneira, uma aposta interessante feita por Vladimir Safatle como chave para a leitura das obras de Sherman.

Como a representação do corpo próprio se desfaz em despersonalização e no informe e o quanto tal possibilidade de uma experiência não-narcísica de objeto – proposta de certa arte contemporânea – já estaria cooptada pela lógica do consumo. Despersonalização e informe não consistindo, assim, em alternativa à ilusão narcísica da unidade do eu, da identidade, da expressão subjetiva quer na realização do objeto de arte, quer na constituição de um psiquismo. Haveria alternativa para a cultura do narcisismo como culto de si?

Curiosa a escolha de Cindy Sherman e Jeff Koons para apoiar esse mergulho no informe e a alternativa à constituição narcísica, já que o livro sobre o qual se baseia Vladimir Safatle, Formless – a user’s guide, de Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois, é precisamente aquele no qual Krauss desconstrói a aproximação das obras de Sherman com o informe, no sentido da remissão que se fez durante muito tempo das obras da artista a um desmascaramento e um desnudamento que levariam à verdade última do feminino como lugar da castração, da mulher como ferida ou, se seguirmos os passos de Safatle, do corpo como libra de carne. O informe não teria como vincular o real ao fantasma, estando fora do campo do simbólico e dizendo exatamente disso que lhe escapa. Assim, o trabalho de Cindy Sherman diria precisamente da falência da lógica fálica que sustenta a atribuição de um sentido último, sendo esse o que está posto em questão em suas produções. Não se chega ao informe, nem à castração. Talvez se chegue à carne, como quer Safatle, sendo carne aquilo que escapa ao corpo, à fetichização da mercadoria, ao imaginário que sustentaria a ilusão de uma identidade, mas sem que a mesma garanta uma remissão do real ao campo do simbólico.

Sem um tom apocalíptico, o narcisismo é olhado como narcisismo secundário, esse da impossibilidade de entrada de um outro, do fechamento sobre si ou, como quer Maria Laurinda R. Souza, do Narciso que, encantado com a própria imagem, não pode desviar de si o olhar. Novamente o olhar e a imagem.

O investimento maciço na própria pessoa – antes movimento de defesa por meio do qual o sujeito enlutado, melancólico ou psicótico se retirava do mundo a fim de se refugiar no objeto perdido ou na criação de um mundo próprio, como queria Freud no caso Schreber (1911), no texto sobre o narcisismo (1914) e naquele sobre luto e melancolia (1917 [1915]) – deixa de lado sua dimensão defensiva para tornar-se, quase que somente, condição constitutiva de sujeitos trôpegos, ensimesmados, encerrados em seus corpos, em suas aparências e em seus desejos pervertidos de necessidades.

Não mais o narcisismo constitutivo, nem o narcisismo defensivo, mas as patologias narcísicas, as novas patologias que – ilustradas pelo minuciosíssimo texto de Maria Helena Fernandes sobre os transtornos alimentares, a participação da alimentação e do corpo que se alimenta naquilo que seria o mal-estar contemporâneo – apontam para a ação e o corpo como os campos de batalha desse psiquismo impossibilitado de representação e de simbólico. O corpo fetichizado recoloca a centralidade do corpo, agora no campo das patologias contemporâneas. Narcisismo como patologia em uma cultura da sensação que recusa a castração em jogo na realidade do corpo, no tempo e na morte. Haveria, retornando ao texto de Maria Laurinda R. de Souza, uma impossibilidade de passagem da totalidade narcísica do amor infantil para o vazio, a solidão e a distância presentes na medida em que a alteridade é considerada.

As novas patologias, serão elas narcísicas ou, ao contrário, decorrentes da falta de narcisação? E os sujeitos atuais, serão eles narcisistas ou imensos eus fechados em si mesmos como carapaça que protege um indivíduo fragmentado, dissolvido, frágil? Pois que para haver um eu que se fecha sobre si é necessário que haja uma ilusão de identidade, de forma, de contorno, uma idéia de eu e de outro. E estaria essa substancialidade verdadeiramente garantida para os seres humanos na atualidade a ponto de podermos pensá-los a partir do narcisismo?

Leonor Rufino e Paula Francisquetti nos lembram dessa imprescindibilidade do outro para que haja um eu. É o que nos mostra o espelho lacaniano e a mãe como espelho winnicotiana. Outro que conforma um rosto, que se faz espelho e olhar desse que se imagina eu. Sem esse olhar e esse rosto, como supor a garantia dessa ilusão que permitiria, até, ao sujeito se constituir narcisicamente?

As patologias narcísicas talvez sejam patologias de ausência de narcisismo; o homem contemporâneo, talvez fruto dessa ausência e o narcisismo da cultura, talvez desespero da falta de narcisação.
Eis as hipóteses desta que aqui escreve. E para não ficarmos apenas no estéril choro por nossos tempos difíceis em referência a tempos melhores existentes apenas como um ideal passado e futuro – como bem consideraram Fátima Milnitzky e Christian Dunker ao apontarem a maneira como as instâncias ideais e o narcisismo inserem o tempo no campo do psíquico muito para além da discussão espacial calcada no perfeito da imagem – talvez seja interessante perscrutar os modos e meios pelos quais tal cultura narcísica e seus produtos – os indivíduos – criam possibilidades de subjetivação.

O rosto único, as faces sem rosto, seriam elas marcas da cultura do narcisismo na contemporaneidade? Ou, mais ainda, seriam as possibilidades criativamente elaboradas de uma constituição subjetiva que corre marginalmente a essa propagação do indivíduo em permanente gozo sem barreiras? Basta lembrarmos dos importantes movimentos que se dão na atualidade nos meios artísticos, em que coletivos de artistas sem rosto e sem nome promovem criações plásticas, sonoras ou literárias conjuntas, ou na radicalidade de experiências como as de Luther Blissett e Wu Ming que são, na literatura, autores sem rosto e sem forma, palavras das quais qualquer um pode se apropriar como sendo autor, nomes sob a alcunha dos quais qualquer um pode escrever. Um rosto único para muitas palavras. Palavras sem rosto algum. Qualquer um pode ser Luther Blissett. Haveria, então, uma possibilidade para as subjetividades contemporâneas naquilo que o narcisismo lhes impossibilita? Novamente ao livro.

Pois que surgem, com os textos de Rodrigo Blum, Maria Laurinda R. de Souza e Mário Eduardo Costa Pereira, considerações que retomam eu e outro imbricados, considerando a alteridade e o encontro com a mesma como possibilidades para um eu no qual o narcisismo seja doador de forma e de corpo, não patologia. O humor como triunfo do narcisismo que relaxa e erotiza o superego, a hospitalidade como disponibilidade ao estrangeiro absolutamente outro, a palavra em análise como o que emerge do vazio, criando espaço para o desdobramento de uma outra cena associam-se à construção do rosto, em texto de Paula Francisquetti, na criação de lugares e meios de encontro com a alteridade. O narcisismo como possibilidade apenas naquilo em que se dispõe ao outro, condição de sua origem.
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