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41
Presença do psicanalista
ano XXI - dezembro de 2008
160 páginas
capa: Renina Katz
  
 

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Resumo
Na experiência de supervisão, algo de nossa clínica nos interroga através do que falamos conscientemente do caso – e o caso em questão não é o paciente e sim o próprio tratamento. A possibilidade de escutar os impasses que nos escapam quando somos envolvidos pela transferência faz da supervisão um instrumento fundamental para a preservação do lugar do terceiro no processo da análise.


Palavras-chave
supervisão; transferência; formação; posição do analista; escuta; atenção flutuante.


Autor(es)
Lúcia Barbero Fuks
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1 L. B. Fuks, “Formação e supervisão”, p. 80.

2 J. Lacan, “Proposição do 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, p. 19.

3 U. T. Peres, Mosaico de letras: ensaios de psicanálise, p. 173.

4 D. Ropa, “As três dimensões da supervisão”.

5 S. Freud, “Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico”, p. 109.

6 D. Ropa, op. cit.



Referências bibliográficas

Fuks L. B. (2002). Formação e supervisão, Psicanálise e Universidade, n. 16, p. 80.

Birman J. Entre a cura e o estilo, Cadernos de Psicanálise spcrj, n. 12.

Freud S. (1996). Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, v. 12.

Lacan J. Proposição do 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, citado por Vegh, I.

Ropa D. As três dimensões da supervisão, Percurso – Revista de Psicanálise, n. 5, p. 55.

Peres U. T. (1999). Mosaico de letras: ensaios de psicanálise. São Paulo: Escuta.

Vegh I. A análise de controle, Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 29 , p. 19.





Abstract
During supervision, something in our clinical practice interrogates us through what we talk consciously about the case – and the case in question is not the patient, but the treatment itself. The possibility clarifying aspects that we do not apprehend when immersed in transference renders supervision an essential instrument in order to preserve the role of third in psychoanalytic process.


Keywords
supervision; transference; formation; position of analyst; hearing; evenly-suspended attention.

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 TEXTO

Atualidade da supervisão

Relevance of supervision
Lúcia Barbero Fuks


Com o objetivo de tecer considerações em relação à atualidade da supervisão, talvez seja pertinente começar citando os chamados impasses da psicanálise. Em um trabalho a esse respeito, Joel Birman propõe considerar tais impasses a partir de dois pontos de vista: o registro das estruturas psíquicas e o registro da experiência analítica.

Na primeira perspectiva, os impasses são representados teoricamente, uma vez que a psicanálise se defronta com o suposto campo de objetividade das estruturas psíquicas e com seus limites técnicos para lidar com essas estruturas. Assim, estes podem ser chamados de impasses da psicanálise.

Na segunda perspectiva – a do registro da experiência analítica –, é o agenciamento do espaço analítico que se impõe como problemática fundamental para que se possa tematizar qualquer questão a respeito das dificuldades na escuta e na intervenção sobre as estruturas psíquicas. Esses outros podemos chamar de impasses na psicanálise.

No primeiro caso, o que se apresenta são os impasses da psicanálise diante do desafio de certas estruturas mentais. No segundo, o que se destaca são as condições de produção e reprodução do espaço psicanalítico face às diferentes estruturas psíquicas.

Tudo isso se apresentou de maneira evidente na interpretação dos obstáculos surgidos na experiência analítica com as perversões, as psicoses e as doenças psicossomáticas. Durante todo um período, os anos 60-70, a problemática da analisabilidade foi construída tendo como suporte teórico a suposta objetividade das estruturas psíquicas.

Entretanto, se transportamos a questão do confronto com a postulada objetividade das estruturas subjetivas para o contexto, concreto e vivo, da experiência da análise, veremos que o paradoxo da situação do analista é a dificuldade em que se encontra para achar uma posição cujo equilíbrio entre a observação e a participação não seja a todo instante ameaçado. Ciência de observação alguma sobreviveria às condições em que está posicionado o analista. Ele deve, ao mesmo tempo, observar e saber utilizar os meios do raciocínio científico para tirar proveito de sua observação. Deve participar, estar implicado emocionalmente, mas também permanecer neutro. Às associações livres do paciente tem de juntar sua atenção flutuante que lhes é complementar, para deixar surgir, diante do material inconsciente trazido pelas associações do paciente, seu próprio fundo inconsciente.

A psicanálise constitui uma modalidade especial de experiência clínica centrada na transferência e na linguagem, sendo a escuta o instrumento fundamental do ato psicanalítico. A experiência analítica tem na figura do analista – e naquilo que designamos como o lugar do analista – a condição necessária para o estabelecimento do espaço analítico.

Contudo, se afirmamos também que o analista não detém qualquer saber absoluto sobre o analisando, assim como nenhum poder igualmente absoluto sobre as vicissitudes da experiência analítica, isso se deve também ao reconhecimento de que o analista está submetido, como acabamos de ver, ao impacto do processo analítico no seu psiquismo.

Há um desequilíbrio no encontro dos dois inconscientes na situação analítica: um se deixa estruturar livremente na transferência, enquanto ao outro se impõem as limitações estritas da contratransferência – sem que este possa sequer pensar seriamente tê-la eliminado, nem mesmo estar certo de ganhar algo ao conseguir fazê-lo. Tal encontro demonstra bem qual o coeficiente de incerteza a que está sujeita a descoberta do sentido na situação analítica – sem que estejamos em condições de imaginar uma demonstração eficaz. Então, para o analista, a experiência analítica é, também, uma aventura subjetiva marcada pela incerteza e pela reabertura de enigmas.

Podemos afirmar a importância e/ou a necessidade, na trajetória de formação de um psicanalista, de que outros analistas – além do que ele próprio procurou para analisar-se – participem desse percurso de formação. Como mostramos num trabalho anterior, a diversidade de estilos e de escuta, os diferentes cruzamentos transferenciais, possibilitam “uma formação em que a identificação não seja com o analista ou com o supervisor, mas com a psicanálise” [1].

Isso supõe uma posição em relação aos princípios, à teoria e à ética psicanalítica na qual o sujeito se inclui e se diferencia ao mesmo tempo, construindo seu próprio estilo. Inclui-se porque faz parte de uma série, herda um legado e uma dívida de transmissão, e se diferencia porque está desde o início implicado pelo ponto em que se encontra em seu percurso de formação. A forma como sustentará e dará mostras desse percurso será necessariamente única, singular.

A supervisão, para chegar enfim ao tema em questão, se constitui como instrumento fundamental para preservar o lugar do terceiro no processo de análise. Essa necessidade fica clara na situação do par analisando/analista, não só pela escuta de impasses que percebemos em determinada situação ou caso clínico, mas principalmente pela escuta de impasses por nós despercebidos, que nos escapam quando a transferência nos envolve. O lugar do terceiro é importante em relação a esse par e também em relação à tendência à identificação com seu próprio analista.

Na experiência de supervisão, algo da nossa clínica nos interroga, através do que falamos conscientemente do caso – e o caso em questão não é o paciente, e sim o próprio tratamento. Algo nos interroga, também, através dos lapsos, das repetições inadvertidas, dos brancos da angústia ou da emoção que nos atinge naquele momento: tudo isso é trabalhado no espaço da supervisão no nível da relação transferencial, mas não deixa de provocar desdobramentos na própria análise do supervisionando, produzindo efeitos de formação.

Em supervisão, falamos da clínica, e ao falar da clínica é nossa análise que fala ali. Não que falemos como analisandos: o caso é que não falamos a partir da posição de analistas, e sim da posição de deixar falar o analisando através de nós, através de nossa transferência. Trata-se de uma tripla transferência com o analisando, com o supervisor e com nosso próprio analista. Falamos a partir de um ponto de ignorância em relação ao saber inconsciente, e é justamente aí que o processo de análise e a prática de supervisão confluem, produzindo efeitos de formação analítica.

Esse entrecruzamento necessário de espaços e essa multiplicidade de transferências nos remetem, de alguma maneira, à problemática dos marcos institucionais operantes na formação e no desenvolvimento de um analista. Lacan já dizia: “Que a prática da supervisão ou análise de controle não seja obrigatória não quer dizer que não seja necessária” [2].

Urânia T. Peres aporta para essa questão um pensamento interessante: “A psicanálise” – ela diz – “é uma prática do singular, e a instituição psicanalítica, assim como o espaço da supervisão, deve ser um lugar para abrigar essa singularidade. Como o psicanalista, a instituição também deve manter um estilo e, por isso mesmo, é fundamental que ela não se universalize e que possamos, cada um, fazer o percurso solitário do encontro consigo próprio. Porém, é pelo reconhecimento do terceiro que esse encontro se materializa em descoberta” [3].

A que se refere o relato do analista? Refere-se ao dizer, ao fazer e ao sentir de seu paciente – e talvez até pudéssemos acrescentar aí que se refere também ao pensar: Lacan dizia, afinal, que pensar é um dizer interiorizado. O analista relata o dizer, o fazer e o sentir de seu analisando possivelmente para formular sua própria pergunta, algo que no relato lhe chega como interrogação. À medida que avança em sua experiência, a formulação de sua pergunta vai se tornando mais acessível, mais realizável. Quando se é iniciante isso é mais difícil, e nesses casos em vez da pergunta enunciada irrompe uma pergunta em ato, sob a forma de um tropeço.

Durante a supervisão, é prudente que, ainda que o supervisando traga ou evoque algum fragmento de sua própria história, o supervisor intervenha pondo o foco no relato do analisando, como uma manifestação transferencial que não vai ser denunciada em função da história nem das marcas do analista, mas situada no relato do analisando.

A melhor resposta é ajudar o supervisando a descobrir que, na medida em que é sensível ao discurso do analisando, traz nele as respostas que custa a reconhecer. É bom convidar o analista, ali no ponto em que possui uma teoria de seu paciente, a exercitar-se na flexibilidade de sua certeza – “será assim?” – para que possa, dessa maneira, revisar suas teorias sobre o paciente.

Se a supervisão propõe respostas e receitas, só obterá o fracasso. Porque não se trata de transmissão do conhecimento, e tampouco de um ensino artesanal de um savoir-faire, mas sim de um saber fazer ali.

D. Ropa [4] considera que existem várias dimensões na supervisão, não sendo possível reduzi-la a nenhuma delas isoladamente. Cada uma desdobra efeitos específicos que, conforme sua incidência e utilização, poderão facilitar ou bloquear o andamento do processo – seja o analítico com o paciente, o da formação do analista ou o da transmissão e a re-elaboração de uma teoria. O êxito de uma supervisão dependerá da capacidade que terão os protagonistas de circular por entre essas três dimensões.

A análise do analista é o eixo privilegiado dessa formação, devendo permitir, como Freud afirmou, que “o analista seja capaz de se servir de seu próprio inconsciente como de um instrumento” [5]. Mas a supervisão é também um espaço propício para despertar efeitos analíticos de abertura do inconsciente.

Esse espaço de uma terceira escuta em que, por meio de um relato clínico, o analista tem a possibilidade de se ouvir escutando o seu paciente coloca-o em situação privilegiada para perceber seus próprios movimentos defensivos, pontos cegos e resistências. Pode-se dizer que os analistas em supervisão colocam mais ou menos em evidência suas questões, seja sua indecisão diagnóstica, sua desconfiança quanto à eficácia terapêutica, a sensação de impotência ou várias outras.

Qual seria, por sua vez, o ponto cego da supervisão? É possível que surjam questões referentes à formação ou decorrentes da própria análise. E é possível também acabar por se estabelecer uma inibição do ato, já que se trata de analistas excessivamente prudentes, neutros, distantes, o que aparentemente os preserva de um desejo próprio. Apesar de evidenciar esses efeitos, a supervisão, como vimos antes, não é o lugar onde essas questões podem ser aprofundadas. O trabalho de sensibilização ao processo analítico propiciado pela supervisão é bem diferente daquele de uma análise.

Cabe reiterar, então, que o foco da supervisão deve se debruçar sobre o ato analítico com o paciente, e não sobre o questionamento da posição do supervisionando em sua experiência de análise pessoal. Ainda assim, não se pode deixar fora de consideração o fato de que o espaço da supervisão é freqüentemente atravessado por alguma forma de demanda analítica.

A experiência de um espaço próprio e separado para a supervisão é fundamental no processo de formação de um analista. Pelas múltiplas transferências que pressupõe, ajuda a desfazer idealizações e possíveis seqüelas transferenciais. Também neste caso (e não somente na relação do analista com seu paciente) o supervisor funciona como um terceiro, permitindo que o analista em formação se apóie na experiência da supervisão para empreender o complexo processo de des-identificação ao seu analista e a elaboração do término de sua análise. É nesse sentido que falávamos da busca por um estilo, por uma técnica e uma interpretação da teoria que lhe sejam verdadeiramente próprias.

Não existe mestre que possa ensinar o que é, ou como ser um psicanalista, pois jamais o mesmo material interpelará dois analistas da mesma maneira, variando segundo a história pessoal e a análise de cada um. Cada análise é um processo singular, único e irrepetível, e transcorrerá de modo inteiramente diferente conforme cada analista e cada paciente. O analista – esteja ele em formação, em análise ou em supervisão – está de fato sozinho com o seu paciente.

A solidão do ato, as incertezas diante da incessante mobilidade enigmática do inconsciente, o fugidio mal-entendido das palavras submetem a duras provas o narcisismo do analista. Isso pode levar à busca de certezas ou garantias, seja num saber técnico, seja num outro que mascare sua própria angústia. Uma das funções do supervisor seria, então, ajudar o analista a suportar a angústia de não-saber e a sustentar a espera necessária para que haja revelação ou elaboração dos processos inconscientes.

Por meio de sua dupla escuta, das associações do paciente e das do analista, o supervisor deve poder indicar os momentos em que se deu um fechamento do processo inconsciente, ou seja, quando um saber foi colocado como barreira.

Devemos valorizar, finalmente, a dimensão de uma transmissão teórica que o supervisionando procura para ter uma melhor compreensão do diagnóstico, da estrutura, dos mecanismos e do funcionamento psíquico do paciente. O caminho da descoberta freudiana leva ao entrelaçamento da teoria com a clínica, numa teorização flutuante [6].

A supervisão é um lugar privilegiado na formação clínica do analista: se a análise pessoal é o que faz emergir o desejo do analista, a supervisão contribui para o seu amadurecimento. Constitui-se, assim, como um elo fundamental na corrente de transmissão da psicanálise e um dispositivo relevante para a ampliação da sensibilidade à escuta, promovendo no supervisando uma relação mais responsável com sua formação.


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