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Resumo
O texto parte de uma rápida apreensão da crise da função terapêutica da psicanálise, atual e histórica, circunscreve a relação dessa crise com a presença do analista, para discutir o cotidiano das análises, os modos, usos e costumes dos analistas. Sugere-se a abstinência como a noção fundamental para essa discussão, na medida em que se a toma como conceito e não somente, ou nem mesmo, como recomendação.


Palavras-chave
psicanálise; terapêutica; crise; analista; abstinência.


Autor(es)
Luiz Augusto M. Celes
é doutor em Psicologia clínica, PUC-Rio, Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília.


Notas

1 Trabalho originalmente apresentado na Mesa “Mo­-
dos, usos e costumes do psicanalista”, no ii Con­gresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e viii Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fun­damental, realizados em Belém, de 7 a 10 de setembro de 2006. Para esta versão, foram introduzidas modificações.

2 Em C. Winnicott, R. Shepherd e M. David (eds.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott, p. 372.

3 Nesse momento, nem mesmo colocamos em discussão a que psicanálise clássica Winnicott está se referindo, mas tomamo-la imediatamente como sendo a freudiana. Não é objetivo desta apresentação discutir os impasses entre os psicanalistas e suas posições ou saídas no afã de reabilitar a psicanálise para os tempos modernos e contemporâneos. Assim, não tem muita importância para assegurar a legitimidade do argumento que aqui queremos sustentar o fato dessa injustiça ou desonestidade com autor tão proeminente e importante para o desenvolvimento da psicanálise como o foi Winnicott.

4 Carta de Freud para Fliess de 21/08/1897, in J. M. Masson (ed.), A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904, p. 265.

5 S. Freud, “Linhas de progresso na terapia psicanalítica” (1919), in J. Strachey (ed.), Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.17, p. 201.

6 S. Freud, “Conferências introdutórias sobre psicanálise” (1916-17), op. cit., v. 15-16, p. 526.

7 S. Freud e J. Breuer, “Estudos sobre a histeria” (1895), op. cit., v. 2.

8 Cf. S. Freud, “Fragmento da análise de um caso de histeria” (1905), op. cit., v. 7, p. 5-119.

9 Para uma apreensão das diversas faces do outro em análise, veja-se E. R. Versiani e L. A. M. Celes, “Alteridade na clínica psicanalítica”, p. 60-70.

10 Veja-se L. A. M. Celes, “Psicanálise é trabalho de fazer falar, e fazer ouvir”, p. 25-48. Em outra perspectiva, veja-se também L. A. M. Celes, “‘Dora’ contemporânea – e a crise terapêutica da psicanálise”, p. 137-54.

11 S. Freud, “Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II)” (1914), op. cit., v. 12, p. 193-203.

12 S. Freud, “Construções em análise” (1937), op. cit., v. 23, p. 291-304.

13 L. C. Figueiredo, “Pensar, escutar e ver na clínica psicanalítica. Uma releitura de ‘construções em análise’”, p. 81-9.

14 S. Freud, “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (1912), op. cit., v. 12, p. 149-59.

15 Idem, p. 150.

16 Idem, p. 150.

17 Idem, p. 152.

18 Idem, p. 152.

19 Cf. idem, p. 153.

20 J. B. Pontalis, “Bornes ou confines”.

21 P. Fédida, “A fala e o pharmakon”, p. 29-45.

22 J. Lacan, “Intervenção sobre a transferência”, p. 214-25.



Referências bibliográficas

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_____ (1919/1976). Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In: Strachey J. (ed.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: v. 17.

_____ (1912/1969). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Strachey J. (ed.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 12.

_____ (1914/1969). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise ii). In: Strachey J. (ed.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 12.

Lacan J. (1998). Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Masson J. M. (ed.) (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago.

Pontalis J. B. (1974). Bornes ou confines. Nouvelle Revue de Psychanalyse, v. 10, Paris.

Versiani E. R.; Celes L. A. M. (2006). Alteridade na clínica psicanalítica, Revista Brasileira de Psicanálise, v. 40, n.3, São Paulo.

Winnicott C.; Shepherd R.; David M. (eds.) (1994). Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas.





Abstract
This essay starts from a brief apprehension of the crisis of psychoanalysis’ therapeutic function, current and historical. It circumscribes the relation of this crisis with the presence of the analyst and discusses the everyday of analysis, the ways, styles and customs of analysts. Abstinence is suggested as being the fundamental notion for this discussion, in so far as it is taken as a concept and not only, or not even, as a recommendation.


Keywords
psychoanalysis; therapeutic; crisis; analyst; abstinence.

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 TEXTO

Crise terapêutica da psicanálise e presença do analista [1]

The therapeutic crisis of Psychoanalysis and the presence of the analyst
Luiz Augusto M. Celes


Entre presença e neutralidade, pessoalidade e
impessoalidade, constrói-se o lugar do analista como
abstinência.

Talvez tenham razão as críticas dirigidas à psicanálise freudiana, que, como Winnicott, afirmam a “inaplicabilidade da técnica psicanalítica clássica [2]” para atender às novas demandas dirigidas à clínica psicanalítica. Estamos tomando muito ligeiramente Winnicott, até mesmo fazendo-lhe injustiça, ao destacar tal compreensão do conjunto de sua obra [3]. No entanto, evocamos sua frase simplesmente como representativa de um certo consenso entre alguns grupos de psicanalistas da atualidade sobre a ineficácia da psicanálise tal como fora construída por Freud para a clínica dos chamados estados borderlines, casos limites e psicóticos, ou mesmo, de uma maneira geral, para o que se convencionou chamar de clínica contemporânea. Assim, não seria muita irresponsabilidade afirmar que essa crítica da sua ineficiência se estende aos hoje proeminentes estados deprimidos, narcisistas ou esquizóides, dos quais se faz uso para caracterizar os privilegiados modos contemporâneos de subjetivação.

A crítica representada pela assertiva winnicottiana não está desprovida de razão porque, segundo queremos propor, atinge o cerne, o coração da psicanálise, não sendo de hoje que ganha sentido. Ela vale ao menos desde meados do século passado, quando se justificou certa re-volta no movimento psicanalítico para recuperar a eficácia da psicanálise que parecia inalcançável para as configurações subjetivas que, então, tomaram vulto como demandas à sua clínica. A crítica à psicanálise para tratar, manter e cumprir seu valor como “intencionalidade terapêutica” (é expressão freudiana), isto é, a crise da psicanálise como clínica terapêutica fez-se presente, verdadeiramente, muito cedo. Presidiu os primeiros esforços de sustentação e de manutenção do ganho da psicanálise freudiana para o tratamento das neuroses – seu início é datado: 1897.

Não sem motivo, costuma-se destacar o impasse teórico do início da psicanálise, expresso no abandono da “neurotica”. A questão que lá se constituiu efetivamente abriu o desenvolvimento da psicanálise e de sua compreensão de subjetivação com os basilares e fundamentais conceitos de inconsciente e sexualidade infantil. O magistral alcance teórico do inconsciente e da sexualidade infantil, que se seguiu ao colapso da neurótica, talvez fosse suficiente para ofuscar a crise com respeito à eficácia da psicanálise como terapêutica. No entanto, a ineficácia terapêutica da psicanálise foi apresentada por Freud como uma das razões de sua descrença com a nascente teoria da neurose. Esta razão, lembremos, deveu-se à frustração de Freud com os fracassos dos tratamentos – “O desapontamento contínuo em minhas tentativas de levar uma única análise a uma conclusão real […] a debandada de pessoas […] a falta dos sucessos absolutos com que eu havia contado e a possibilidade de explicar […] os sucessos parciais à maneira habitual” [4]. Foram motivos fortes o suficiente para afastar Freud, durante certo e significativo período, das investigações com respeito à neurose e seu tratamento – dirigindo seu interesse para o empreendimento da Interpretação dos sonhos. Somente em 1905, com a publicação do Caso Dora, Freud novamente traz a neurose para o centro de suas preocupações. Por sua vez, a publicação do tratamento de Dora renova a crise da qual Freud se queixara em 1897, senão a conduz ao seu paroxismo.

Muito rapidamente em sua história, viu-se desvanecer-se a intenção terapêutica da psicanálise, escorrer-se por entre os dedos das mãos de Freud e de seus seguidores o trunfo com o qual Freud justificou a psicanálise, precisamente, o seu valor como tratamento da neurose [5]: a dificuldade de concluir satisfatoriamente o empenho terapêutico, qual seja, a inépcia deste para então atender a demanda, supostamente neurótica, hoje considerada de fácil acesso, supostamente apta ao tratamento psicanalítico, não obstante as resistências. As mesmas resistências que não seriam impedimento de psicanálise, mas sua matéria, seu objeto de tratamento, seu alvo, pois, nas palavras de Freud, a psicanálise procura “desfazer as resistências internas” [6], portanto tem-nas como objeto de seu tratamento.

Entretanto, a noção de resistência interna, de que fala Freud, carrega em seu bojo uma transformação na compreensão das resistências em comparação, por exemplo, com as que se opunham ao tratamento nos Estudos sobre a histeria [7]. Nessa obra, a resistência, se a compreendia como resistência ao trabalho de recordação do que fora expulso da consciência. A nova resistência, qualificada como interna, deriva-se da com­preensão da neurose como uma estrutura subjetiva (uma estruturação psíquica) e não mais ou não simplesmente como um caso circunstancial que seria o do isolamento (recalcamento) de uma representação ideativa insuportável. O conceito de inconsciente consolida esta nova concepção: não se trata mais de complexos reprimidos que se buscam descobrir e verbalizar para torná-los conscientes, pela fala em associação livre, mas de estrutura psíquica ou subjetiva de caráter universal, isto é, uma condição antropológica propriamente, sendo o humano concebido como tal estruturação (o que permite entender que Freud e a psicanálise se afastam da idéia de enfermidades, afastam-se das considerações psicopatológicas, embora não as eliminem e permaneçam ainda hoje privilegiadas em certos meios psicanalíticos). Portanto, o tratamento agora teria de ser entendido como tratamento do sujeito, não de uma enfermidade neurótica (como era o caso), não de uma psicopatologia mais ou menos grave. A estrutura subjetiva do humano, que significa aquilo que o caracteriza – aqui mal representada pela palavra sujeito (por falta de uma outra, mas não estamos sozinhos nisso!) –, impõe uma nova perspectiva ou nova condição para a análise. Pois, parafraseando de memória um Lacan já distante, não há como curar o sujeito. Com isso, a psicanálise começa a adotar uma atitude, uma intencionalidade menos, senão muito pouco, terapêutica: doravante, como já observara Freud, a cura dos sintomas torna-se um ganho subsidiário, um ganho secundário, decorrente da elaboração psíquica pela fala como discurso associativo, em profunda e mesmo essencial dependência da escuta do analista [8].

A mútua dependência entre fala e escuta no trabalho de psicanálise – que não mais cura, mas elabora – assinala a implicação incontornável do psicanalista, a impossibilidade de sustentar sua evasão na atitude da neutralidade técnica. Também não se sustenta o analista como se ele fosse o gerente de uma travessia ou o diretor de uma cena, a cena da análise. A neutralidade do psicanalista, que agiria com a frieza de um cirurgião, para o que Freud, vez ou outra, incita, perde sentido; o analista não age mais em busca de extirpar um mal, uma enfermidade, uma afecção – que seria uma lembrança recalcada ou esquecida por força de seu caráter intolerável. O sujeito substitui a neurose, a enfermidade ou a contemporânea doença mental. A psicanálise, com sua regra fundamental da associação livre, vendo perder-se de seu valor terapêutico, coloca em vertiginosa tensão o seu propósito técnico, a objetividade de seu tratamento e, junto com isso, a doença de que cuida, a patologia de que faria objeto de tratamento. Talvez se possa afirmar que a associação livre ela mesma destitui-se de valor técnico, embora permaneça e ganhe relevo o seu valor de regra fundamental, traçando assim toda a especificidade da psicanálise, sendo a associação livre o que se busca alcançar para se elaborar (embora não-mais se curar). O que se elabora, associando-se, diz respeito ao humano, ao inconsciente, este que é, de mais a mais, sua condição essencial.

A associação livre como critério de elaboração terá de se confrontar com a capital dificuldade da análise que em seguida recebe o nome de transferência. Se sugerimos que no caso Dora a crise terapêutica da psicanálise alcança seu ápice, talvez seja porque aí ela ganha um entendimento que está além da resistência do sujeito da análise e além da resistência própria do humano, no confronto consigo mesmo, sendo ele essencialmente inconsciente. O caso Dora re-situa o empecilho terapêutico do trabalho de psicanálise com a consideração da presença do outro [9]. Não se está sugerindo a simetria de posições entre analista e analisando como definidora de sua crise, embora esse não deixe de ser um risco da análise em transferência, ao lado de outros. Diz-se, diferentemente, ser da implicação do falar e ouvir na constituição da elaboração em associação livre [10]. A crise, nomeia-se-a, então, transferência. Como também se chama transferência a relação que seria a terapêutica em análise (ou talvez e exatamente a não-relação terapêutica).

Dessa forma, esvaem-se mais radicalmente as pretensões técnicas no trato analítico. Particularmente, desvanece-se a eficácia das recomendações técnicas, das regras ditadas e dos aconselhamentos que tenham a intenção de asseverar caminhos precisos, intervenções e atos adequados que apresentem efeito terapêutico. Os usos e costumes dos analistas, em geral ou particularmente, escapam, assim, da descrição e da intenção recomendatória. Então, como pensá-los, uma vez que a psicanálise se recusa (embora se avizinhe) a ser uma prática de caráter iniciático? Como delimitar o lugar do analista no que diz respeito à sua prática cotidiana, aos seus usos, hábitos e costumes?

Sugiro que se compreenda a abstinência como a noção adequada para tal apreensão do lugar do analista, profundamente vinculada à noção de atenção flutuante. A abstinência substitui a neutralidade, mantém o analista numa estranha forma de impessoalidade na presença pessoal, o que o distancia da pessoalidade imaginária, dual, empática etc., e da neutralidade técnica, da aderência a recomendações sem flexões e sem reflexão e da frieza do cirurgião de que já falou Freud. As noções da abstinência e da atenção flutuante, conquanto não definem comportamentos específicos, têm a vantagem dos conceitos, que assim o sendo, facilitam, viabilizam e traçam caminhos para a reflexão.
Tais conceitos sugerem ao analista escapar-se do frisson do aprimoramento técnico ou da aprendizagem, particularmente em se tratando de analista iniciante, e escapar-se da empáfia da experiência acumulada, do ditador de regras, em se tratando do analista de longa data. A abstinência constitui a condição na qual se sustenta a atenção flutuante, aquela que, como a define Freud, busca escutar, escutar o que o analisando diz, melhor, escutar o que diz a fala do analisando, que é o modo de ouvir capaz de constituir da narrativa do analisando o discurso associativo. Ouvir em atenção flutuante, propiciado pela abstinência, é a condição necessária para se fazer da fala do analisando uma associação livre. A escuta balizada pela abstinência e atenção flutuante retira do analista o empenho de alcançar algo, mesmo que seja uma lembrança. Essas noções desmontam, elas mesmas, o propósito técnico da psicanálise que buscaria a segurança de um tratamento clínico de efeito terapêutico.

O discurso associativo que se define em relação à abstinência e à atenção flutuante é o processo ou o movimento elaborador ele mesmo. Não foi sem razão que Freud abandonou a busca de uma recordação como solução da enfermidade. Atitude freudiana que se inicia em Recordar, repetir e elaborar [11], onde a lembrança é questionada pela repetição, e que termina em Construções em análise [12]. Em Construções… – cujo texto e argumento não se submetem ao princípio da razão, como já o foi mostrado por Figueiredo  [13]– a lembrança perde quase tudo de sua importância, sendo substituída pela emergência da pulsão; e, no ouvir do analista, a intenção de fazer surgir a lembrança fica substituída pela escuta da pulsão emergente. O analista detém-se na colheita dos rastros do infantil deixados pela fala do analisando, isto é, faz acontecer a associação livre. Por fim, e no limite, a lembrança é substituída por uma atitude anímica, que Freud nomeia de convicção. Por nosso lado, propomos entender a convicção de que fala Freud como elaboração realizada ou resultado de elaboração, sabendo-se que jamais se fecha tal resultado, tampouco se realiza em completude a elaboração.

Não constitui entendimento isento de controvérsias sugerir a abstinência e a atenção flutuante como conceitos que permitem a reflexão da psicanálise em seu acontecer cotidiano. Poder-se-ia contestar tal entendimento tendo por base, por exemplo, a nomeada obra técnica de Freud. Particularmente, o texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise [14] aparentemente se caracteriza como um texto de recomendações. São, no entanto, recomendações negativas, por outras vezes hesitantes, portanto, não são apresentadas como regras técnicas. No mais, as recomendações sugeridas de caráter negativo se justificam em considerações que não são nesse texto desenvolvidas por Freud, mas que são assinaladas. São considerações, dizíamos, de outra natureza: orientadas para fora do setting analítico – para a teoria. Não como se a prática fosse sua aplicação, mas, sim, sua justificação, sua reflexão, seu entendimento, que se realizam, é oportuno lembrar, em condições especiais. Por exemplo, diz Freud: “Não se deve esquecer [como argumento para se adotar regras frouxas, por assim dizer] que o que se escuta, na maioria, são coisas cujo significado só é identificado posteriormente” [15]. Ora, posterioridade é em psicanálise um princípio teórico (e não técnico ou prático) que permite a compreensão e o entendimento do trauma da experiência sexual que se realiza em dois tempos (desde sua teorização no Projeto para uma psicologia científica). E depois, como seria possível estabelecer regras positivas de condutas se não se tem nem mesmo o significado do que importa, que somente se abrolha posteriormente!

No mesmo passo, Freud sugere que o analista deve “abandonar-se inteiramente à ‘memória inconsciente’” [16]. Além do conceito de memória inconsciente aí explicitado, justificando a regra negativa da escuta sem influências conscientes, isto é, sem juízos, o mesmo inconsciente ainda mais impede a adoção de regras: ele tem suas regras próprias independentes das atitudes conscientes. Em seguida, Freud afirma que “relatórios de histórias clínicas psicanalíticas são de menor valor do que se poderia esperar” [17], o que já deveria deixar desanimado qualquer um que seja ávido por técnicas, precisões e por sabedoria do comportamento alheio e próprio. Mas Freud completa avaliando que tais “relatos psiquiátricos” são “fatigantes para o leitor e ainda não conseguem substituir sua [do leitor, suposto analista] presença concreta em uma análise” [18]. Para não nos estendermos demasiado nessa aferição, somente ainda observamos que Freud retoma a teoria para precisamente descartá-la, com o intuito de habilitar-se a ouvir as surpresas sem quaisquer pressuposições, destituindo de valor a intenção que seria oposta, a saber, que pretenderia, contrapondo-se a adoção tecnocrática em análise, isto é, de seu poder de técnica, tomar, ao inverso, a prática analítica como aplicação de teoria [19]. A psicanálise não se presta a ser apreendida como uma tecnologia (um saber de técnica) nem como uma teoria que guia e justifica a prática. A teoria é mais bem entendida se tomada como uma reflexão da prática. Assim, a teoria mantém com a prática (com seus fundamentos técnicos, suas estratégias, e com o cotidiano das análises) modos próprios de relações, o que significa modos reflexivos de relações.

Uma avaliação já ligeira desse texto de Freud, que, por outro lado, carrega a aparência de recomendações, mostra a compreensão aí implicada da desesperança com a intenção técnica e, conseqüentemente, terapêutica da psicanálise – talvez até mesmo se trate de uma compreensão desesperada do limite terapêutico da psicanálise. Essa compreensão dos limites técnicos e terapêuticos da psicanálise não se reproduz de todo nem em todos os sentidos entre os psicanalistas contemporâneos. A história da psicanálise é testemunha das reviravoltas técnicas que se empreenderam sob a justificativa de atendimento a demandas que não seriam adequadas à técnica freudiana. Embora seja razoável considerar-se alterações na técnica em benefício do trabalho de psicanálise, certamente não se justificam mudanças que acabem por descaracterizar a regra fundamental da psicanálise, que todos sabem ser a associação livre. Ainda que se tracem diversos entendimentos sobre regra fundamental, a base do “discurso associativo” como sendo o que conduz ao inconsciente é inalienável da psicanálise, essa base a sustenta e a justifica como prática de tratamento. A descaracterização da associação livre e, portanto, da intenção fundamental da psicanálise, implica a descaracterização da própria psicanálise. Sob certo aspecto, isso não constitui nenhum problema, pois podem-se estabelecer psicoterapias que se distinguem da psicanálise. No entanto, nosso âmbito de interesse é a psicanálise e seus limites. Limites esses, como já o sugeriu Pontalis [20], que se apreendem nos confins do tratamento. Portanto, limites móveis, senão movediços. Em muitos setores da psicanálise contemporânea, ela se revela ávida da cura, buscando restabelecer procedimentos técnicos muito próximos de uma atitude humanista do acolhimento e da reconstrução do eu ou do self. O imediatismo das interpretações não raro transforma a sessão analítica numa mal disfarçada elucidação das relações entre analista e analisando, numa tarefa muito mais fenomenológica que psicanalítica, da qual o inconsciente se exclui. Por outro lado e por vezes, como entendimento de base da atitude fenomenológica, a psicanálise contemporânea se aproxima da medicina, melhor é dizer, da ideologia médico-psiquiatra que se impôs em nossos tempos, segundo a avaliação de Fédida [21], de modo inflexível. Isso se caracteriza em psicanálise pela retomada, por exemplo, de uma excessiva preocupação psicopatológica, seja se justificando sobre a suposta necessária multidisciplinariedade para a abordagem da complexidade contemporânea, seja porque a psicanálise, ela mesma, propõe-se recuperar os sujeitos para a difícil vida nas multifacetadas culturas contemporâneas – das síndromes (de pânico), às anorexias e bulimias, passando-se pelas depressões e outros quadros, a intenção recuperativa guia os atendimentos, justificando-se os engajamentos, as recomendações e as regras.


Concluindo

É pertinente retomar a idéia de que a compreensão da abstinência como recomendação não é certamente gratuita. A associação livre, da qual deriva, foi proposta como regra técnica fundamental de análise, situando-se inicialmente, ela também, no plano das recomendações, o que quer dizer dos usos e costumes na condução das psicanálises em seu cotidiano.

No entanto, a associação livre mostrou-se rapidamente insuficiente como regra técnica, na precisa medida em que ocorreu o acolhimento da escuta do analista como sua condição de acontecimento, o que significa o assentimento da presença do analista na forma da abstinência como condição da estrutura mesma da análise. A sujeição – recíproca, embora de modos distintos, cujo esforço decisivo de articulação na obra de Freud se deu em Construções em análise, de 1937 –, a sujeição, repito, do discurso associativo à escuta em abstinência mostra a necessidade da articulação conceitual que retire tais noções do âmbito das recomendações. A multiplicidade e singularidade dos impasses da associação livre na resistência e da abstinência no desejo e nos “preconceitos” (no sentido sugerido por Lacan [22]) do analista revelam a impossibilidade de apreensão da associação livre e da abstinência na forma de recomendações.

Os usos e os costumes dos analistas estão sujeitos a considerações, inclusive em suas particularidades e singularidades, de modo mais legítimo (além das auto-reflexões posteriores do analista) nas situações similares à psicanálise a que chamamos supervisões. Dentre seus múltiplos aspectos, as supervisões podem ser compreendidas como prática de teoria, isto é, como uma atitude de reflexão e de apreensão em palavras da experiência do analista, numa segunda situação de fala e escuta – fala do analista e escuta do supervisor. Conduzidos pela literalidade da palavra supervisão, pode-se sugerir que nela o analista dá a ver em suas palavras o que o supervisor pode contemplar escutando-as. Nomear dessa forma os usos e costumes do analista será tanto mais frutífero, o que quer dizer, de potencialidade analítica, quanto mais se busca, na série constituída pelas supervisões, narrativas dos casos e teoria, uma aproximação sempre retomada (e renovada) dos registros conceituais. Pois assim se constitui a prática como modo de pensar e de refletir, distanciando decisivamente a psicanálise de práticas iniciáticas e da suposta frialdade dos cirurgiões.
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