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Resumo
Este trabalho pretende relatar os fatos que marcaram a viagem de Freud aos Estados Unidos, assim como os que antecederam o convite de Stanley Hall, professor da Clarke University de Manchester, em Massachussets. Mostra, também, a importância da viagem para a difusão da ainda desconhecida psicanálise, para o estabelecimento de relações, futuros encontros, trocas e alianças. Evidencia que, de certa forma, as Cinco lições de psicanálise -- conferências que passaram desde então a ser traduzidas em diversos idiomas -- garantiram que os fundamentos da nova ciência fossem amplamente divulgados. Fala também das inquietações freudianas a respeito de como a psicanálise estaria sendo absorvida pelos americanos e dos desdobramentos nos Estados Unidos decorrentes da viagem.


Palavras-chave
história da psicanálise; psicanálise nos EUA; transmissão e popularização da psicanálise.


Autor(es)
Myriam Chinalli
é psicanalista do Instituto Sedes Sapientiae, editora e escritora.


Notas

1 E. Jones, Vida e obra de Sigmund Freud, p. 385.

2 E. Jones, op. cit., p. 388.

3 G. Ricci, Giancarlo. As cidades de Freud, p. 135.

4 E. Jones, op. cit., p. 407.

5 E. Jones, op. cit., p. 408.

6 E. Jones, op. cit., p. 408.

7 R. Roudinesco; M. Plon, Dicionário de psicanálise, p. 195.

8 G. Ricci, op. cit., p. 135.

9 E. Jones, op. cit., p. 403.

10 E. Jones, op. cit., p. 412.

11 G. Ricci, op. cit., p. 139.

12 G. Ricci, op. cit., p. 141.

13 G. Ricci, op. cit., p. 145.

14 E. Jones, op. cit., p. 413.

15 E. Jones, op. cit., p. 411.

16 E. Jones, op. cit., p. 414.

17 E. Jones, op. cit., p. 414.

18 E. Jones, op. cit., p. 414.

19 R. Ricci, op. cit., p. 143.

20 R. Ricci, op. cit., p. 144.

21 V. Di Matteo, A infl uência fi losófi ca no pensamento freudiano, p. 35.

22 V. Di Matteo, op. cit., p. 46.

23 V. Di Matteo, op. cit., p. 43.

24 G. Ricci, op. cit., p. 143.

25 G. Ricci, op. cit., p. 144.

26 G. Ricci, op. cit., p. 145.

27 G. Ricci, op. cit., p. 145.

28 G. Ricci, op. cit., p. 146.

29 E. Jones, op. cit., p. 415.

30 E. Jones, op. cit., p. 413.

31 G. Cocks, em G. Ricci, op. cit., p. 147.

32 E. Roudinesco; M. Plon, op. cit., p. 201.

33 E. Roudinesco; M. Plon, op. cit., p. 199.

34 E. Roudinesco; M. Plon, op. cit., p. 200.



Referências bibliográficas

Di Matteo V. (1983). A infl uência fi losófi ca no pensamento freudiano. Revista Simposium, v.24, n.2.

Jones E. (1979). Trad. Marco Aurélio de Moura Mattos. Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Guanabara, p.385 - 415.

Ricci G. (2005). Trad. Eliana Aguiar. As cidades de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 131 -43.

Roudinesco E.; Plon M. (1998). Trad. Vera Ribeiro, Lucy Magalhães. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 195 -201.





Abstract
This work’s main objective is to expose the facts that marked Freud’s voyage to the USA, even before Stanley Hall’s invitation, the professor from Clarke University in Manchester, Massachussets. Show its relevance for the diffusion of psychoanalysis, as a vector to the stablishment of relations, posterior meetings, exchanges and alliances related to it. And it points to the fact that, in a certain way, the Five Lessons of Psychoanalysis – the conferences that came to be translated to various languages – guaranteed that the foundation of the new science was extensively publicized. Also refer to the Freudian’s inquietudes about how psychoanalysis was absorbed by the Americans and its development in the USA caused by the voyage.


Keywords
Psychoanalysis’s history; Psychoanalysis in USA; transmition and popularization of Psychoanalysis.

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 TEXTO

A chegada da peste

Cem anos da viagem de Freud aos EUA (1909 -2009)


The landing of the pest
A hundred years of Freud’s trip to USA (1909 -2009)
Myriam Chinalli

Em 1886, quando comecei a exercer a profi ssão, pensava em fazer uma tentativa de apenas dois meses em Viena; se o resultado não fosse satisfatório, pensava em transferir -me para a América e fazer minha vida lá, chamando minha noiva de Hamburgo para tomar parte dela. Mas as coisas (infelizmente) correram tão bem em Viena que resolvi fi car e no outono do mesmo ano nos casamos. Eis que agora, 23 anos depois, me toca ir à América, mesmo que não seja por dinheiro, por um reconhecimento honorífi co! Dessa viagem e de todas as consequências possíveis para a nossa causa, ainda haveremos de falar muito… [Carta de Freud a Jung, 9 de março de 1909.]

Em 1909, Freud fez um importante deslocamento, uma viagem ao Novo Mundo, na companhia de Ferenczi e de Jung. Nesse período, suas ações trouxeram a marca de um estratagema para garantir a difusão da psicanálise: fugir da censura e do antissemitismo. A viagem aos Estados Unidos destacou a importância do internacionalismo, abrindo horizontes diferentes da Velha Europa, quase sempre crítica ou indiferente às ideias freudianas. O itinerário de Freud – Nova York, Worcester e Cataratas do Niágara – nos deu pistas do quanto ele estava atento à política que faria sobreviver a psicanálise, mas também do valor que ele deu à experiência e à observação das belezas naturais e artístico -culturais dos Estados Unidos, bem como de suas limitações históricas.

Veremos que o esforço da viagem foi valioso. Durante a vida de Freud, as conferências proferidas em Worcester, as Cinco lições de psicanálise, foram publicadas em muitas outras línguas, além do alemão e do inglês: polonês (1911), russo (1911), húngaro (1912), holandês (1912), italiano (1915), dinamarquês (1920), francês (1921), espanhol (1923), português (1931) e japonês (1933).

Freud permaneceu pouco menos de um mês nos Estados Unidos, de 27 de agosto a 21 de setembro de 1909. Enquanto outros psicanalistas, como Jung, por exemplo, retornaram várias vezes aos Estados Unidos, Freud não mostrou interesse por outras viagens além -mar. Até sua morte, ele expressou cuidado extremo com as ideias e as ações norte -americanas.

Pré -história do convite

Ernest Jones, biógrafo oficial de Freud [1], deixou a Grã -Bretanha no início do século, para se instalar em Toronto, na província de Ontário e, entre outros motivos, para divulgar a psicanálise. Durante sua permanência no Canadá, Jones também foi aos Estados Unidos, organizou congressos e encontros e fundou em 1911 a American Psychoanalytic Association (apsaa) – única associação regional da Internacional Psychoanalytical Association (ipa).

Durante vários anos, as obras de Freud foram ignoradas nos periódicos alemães ou, então, comentadas de forma desdenhosa. Algumas resenhas feitas em países de língua inglesa, no entanto, traziam um caráter cordial e respeitoso, embora não indicassem qualquer tipo de aceitação mais aprofundada de suas ideias.

Em 1896, Mitchel Clarke, um neurologista de Bristol, nos eua, havia publicado uma exaustiva resenha sobre os Estudos sobre a histeria, no Brain, um periódico para o qual o próprio Freud havia escrito um estudo neurológico alguns anos antes. Dois leitores levaram essa resenha bastante a sério. Um deles foi Havellok Ellis. Dois anos mais tarde, ele publicou um ensaio num periódico americano no qual fez um levantamento dos Estudos, concordando com os pontos de vista de Freud acerca da etiologia sexual da histeria. O outro leitor foi Wilfred Trotter, um famoso cirurgião, que chamou a atenção de Ernest Jones para a resenha feita por Clarke.

James J. Putnam, professor de neurologia na Universidade de Harvard, publicou, em fevereiro de 1906, o primeiro artigo em inglês especialmente sobre a psicanálise, e o primeiro relato correto sobre o assunto nessa língua.

Em Nova York, dois psiquiatras suíços imigrantes, Adolf Meyer e August Hoch, acompanhavam os escritos de Freud e, certamente, mencionavam aos seus discípulos algumas ideias psicanalíticas.

De acordo com Jones [2], “Pouca coisa de tudo isso, no entanto, havia chegado ao conhecimento de Freud por essa ocasião. Antes de 1906, os únicos acontecimentos de que estava a par fora de Viena se referiam às breves e mordazes notas nos periódicos alemães de neurologia e psicologia, e algumas tentativas elementares para pôr à prova suas ideias iniciais”.

Além disso, em 1904 e em 1906, Pierre Janet fez uma viagem de conferências na Nova Inglaterra e obteve grande sucesso, oferecendo aos americanos o prestígio da cultura europeia, o que não era muito comum naquela época. Certamente, esse foi um dos fatores que abriu o caminho para que Freud fi zesse sua famosa viagem, em 1909.

Em 1908, Jones realizou ali alguns colóquios aos quais dezesseis ouvintes estiveram presentes. O mais interessado foi J. J. Putnam, que já havia escrito sobre as ideias freudianas. Depois, em maio de 1908, houve um importante congresso em New Haven, no qual Putnam e Jones leram seus trabalhos, que provocaram bastante discussão.

Dessa forma, em dezembro de 1908, registrou -se o acontecimento que introduziria a personalidade e a obra de Freud em círculos bem distantes do Velho Mundo. Ele recebeu de Stanley Hall, presidente da Clark University de Worcester, uma carta que dizia: “consideramos que nesse momento é extremamente oportuna uma exposição concisa de seus resultados e de sua visão, que poderia marcar, em certa medida, uma época na história desses estudos em nosso país”. A ocasião celebraria o aniversário de vinte anos da universidade. As despesas de viagem seriam pagas, e Freud receberia três mil marcos.

Depois de muita hesitação, Freud decidiu aceitar o convite: “O Mediterrâneo nós podemos visitar a qualquer ano. A América não voltará tão cedo”. Suas considerações também incluem: “É o primeiro reconhecimento ofi cial da psicanálise”. Ou ainda: “Para nossa grande surpresa, constatamos que os personagens daquela pequena mas respeitável universidade, sem preconceitos, conheciam a fundo a literatura psicanalítica” [3].

Freud convidou Ferenczi para acompanhá- -lo. O irmão de Freud, Alexandre, também expressou o desejo de ir, embora isso não tenha ocorrido. Ferenczi começou a estudar inglês e encomendou livros sobre a América, para que todos pudessem ter orientações mais seguras a respeito do “misterioso país”. Freud, no entanto, não pôde dedicar -se a essas leituras, mas fi - cou sabendo por meio de um livro sobre Chipre, que estava lendo, que a melhor coleção de antiguidades cipriotas estava em Nova York, e fi cou animado para conhecê -las. Também tinha muita vontade de ver as cataratas do Niágara.

Ferenczi perguntou a Freud se teria ou não de levar uma cartola [símbolo do Tio Sam] mas Freud lhe disse que seu plano consistia em comprar uma delas nos eua e, na viagem de volta, jogá -la ao mar [4].

Em meados de junho de 1909, Freud soube que Jung também havia recebido um convite. Combinaram viajar juntos.

A partida

Em 20 de agosto de 1909, Freud, Jung e Ferenczi embarcaram em Bremen no transatlântico George Washington. Freud havia passado uma noite difícil no trem de Munique a Bremen – fato que parece ter sido responsável por um incidente curioso. Durante o almoço que realizaram em Bremen, ele e Ferenczi persuadiram Jung a abandonar a abstinência e acompanhá -los no vinho. No entanto, enquanto conversavam, Freud desmaiou. Esse foi o primeiro de dois ataques desse tipo na presença de Jung [5].

Durante a viagem, os três analisaram os respectivos sonhos – primeiro exemplo de análise de grupo? Posteriormente, Jung contou a Jones [6] que os sonhos de Freud pareciam relacionados, em sua maioria, com preocupações a respeito do futuro de sua família e de sua obra. Freud, por sua vez, disse a Jones que havia encontrado o cabineiro de bordo lendo Psicopatologia da vida cotidiana, o que lhe pareceu o primeiro sinal de que um dia poderia a ser famoso.

Sete dias depois chegaram a Nova York, onde eram esperados por Ernest Jones e Abraham Brill.

Nova York e o cinema

Ao avistarem a Estátua da Liberdade no porto de Nova York, Freud teria dito a célebre frase: “Não sabem que estamos lhes trazendo a peste!”. A frase hipotética tornou -se pública décadas mais tarde, em 1955, numa conferência proferida em Viena por Jacques Lacan, que declarou tê -la ouvido da boca do próprio Jung. A partir da frase – interpretada como a referência de Freud ao “espírito subversivo” da psicanálise –, Lacan comentou o engano de seu autor: “ele havia acreditado que a psicanálise seria uma revolução para a América, e, na realidade, a América é que tinha devorado sua doutrina” [7].

Jones anotou [8]: “há uma ignorância monumental por aqui”. Na semana que passou em Nova York, Freud mostrou -se incansável, como demonstra o relato de Jones [9]:

Brill conduziu os três amigos a um passeio pela cidade. Primeiro o Central Park, depois o bairro chinês e o gueto de Lower East Side; tarde em Coney Island, um “Prater visto com lentes de aumento”. Na manhã seguinte visitaram o Metropolitan Museum, que Freud desejava ver mais do que qualquer outra coisa por causa das antiguidades gregas lá expostas; depois Brill levou -os à Columbia University. No dia seguinte, juntei -me eu também ao grupo e, depois de jantarmos no terraço do Hammerstein, fomos todos ao cinema para ver um daqueles fi lmes rudimentares de então, cheios de cenas de caçada feroz. Ferenczi excitou -se como uma criança, enquanto o divertimento de Freud era mais comedido: para ambos, trata -se do primeiro fi lme que viam.

As entrevistas com a imprensa deram pouco trabalho. Apenas um dos jornais matinais de Nova York informou a chegada do “Professor Freund (sic) de Viena” [10].

Worcester e as Cinco lições de psicanálise

Em 4 de setembro, os cinco viajantes – Freud, Ferenczi, Jung, Brill e Jones – partiram de barco em direção a Fall River, onde aportaram na manhã seguinte. No mesmo dia, passando por Boston, chegaram de trem a Worcester, no estado de Massachussets, sede da Clark University. Na tarde de 10 de setembro, no auditório da universidade, Freud recebeu a láurea honoris causa em leis – detalhe curioso, se pensarmos que os estudos de jurisprudência foram a primeira hipótese na orientação dos estudos do jovem Freud. O texto ofi cial: “A Sigmund Freud, da Universidade de Viena, fundador de uma escola de pedagogia já rica em métodos e novas aquisições, hoje mestre entre os jovens de psicologia sexual, psicoterapia e análise, doutor em leis…” [11].

Apesar desses equívocos, a “Nova Inglaterra” não estava despreparada para ouvir as novas doutrinas de Freud. A sua chegada era aguardada e a acolhida foi cordial, até mesmo entusiasta. As adesões não faltaram – entre elas a de James J. Putnam, primeira verdadeira abertura às ideias psicanalíticas no ambiente médico, foi reafi rmada publicamente.

“Para nossa surpresa”, escreveu Freud, “descobrimos que os homens desprovidos de preconceitos daquela pequena mas respeitável universidade pedagógico -filosófica tinham conhecimento de todos os trabalhos psicanalíticos e referiam -se a eles em suas aulas. Na América era possível, pelo menos nos círculos acadêmicos,discutir livremente e tratar cientifi camente tudo aquilo que na vida era reputado indecente” [12].

Freud disse ao grupo que não sabia exatamente sobre o que discorrer e, a princípio, ia aceitar a sugestão de Jung para escolher como tema das conferências os sonhos. Mas Jones o aconselhou a falar de temas mais amplos. Depois de alguma refl exão, Freud concordou que os americanos pudessem considerar pouco prático o assunto dos sonhos. Dessa forma, decidiu oferecer informações mais generalizadas sobre a psicanálise, conforme Stanley Hall solicitara em sua carta. Cada conferência foi estudada e estruturada durante meia hora de caminhada ao lado de Ferenzi.

As conferências, pronunciadas por Freud em alemão, suscitaram grande interesse. Foram realizadas em tom de conversação. É possível lê- -las ainda hoje, nas Cinco lições de psicanálise (1920), exposição resumida dos resultados teóricos e práticos obtidos pela psicanálise. A Freud não faltou generosidade, como por exemplo quando iniciou a primeira conferência com as seguintes palavras: “Se é um mérito ter dado vida à psicanálise, o mérito não é meu”. Referia -se a Breuer – mas foi a última referência ao companheiro de estrada que colaborou com ele até o desenvolvimento do método da associação livre. Freud afi rmou, numa nota em 1923: “… declaro -me, sem reservas, responsável pela invenção da psicanálise” [13].

Um momento emocionante verifi cou -se quando Freud disse que ser tratado com honra, após tantos anos de ostracismo e de escárnio, parecia um sonho. Comentou: “Este é o primeiro reconhecimento ofi cial dos nossos esforços” [14].

William James, respeitado fi lósofo americano daqueles anos, compareceu às conferências. Ele conhecia bem o alemão e acompanhou os eventos com grande interesse. Durante um passeio com Freud, James sofreu um repentino ataque de angina. “Morreu dessa doença um ano depois”, anotou Freud em 1924, “e desde então sempre desejei poder demonstrar, à aproximação da morte, uma força de ânimo semelhante à sua”. James declarou que esperava que “Freud e seus discípulos levassem suas ideias até os limites extremos, de modo que se pudesse saber do que se trata” [15].

Stanley Hall, fundador da psicologia experimental da América e autor de um trabalho exaustivo sobre a adolescência, foi amável tanto com Freud como com Jung.

Worcester foi a cidade em que Freud iniciou a internacionalização da psicanálise, a partir daquele que ele mesmo chamou, nas frases iniciais da primeira conferência, de Novo Mundo.

Cataratas do Niágara

Ao visitar as cataratas do Niágara, Freud as “achou ainda mais grandiosas do que imaginava” [16]. Relatando essa visita, Jones fala de um curioso episódio:

na Gruta dos Ventos, Freud aborreceu -se porque o guia, empurrando para trás os outros viajantes, mandou que deixassem passar primeiro o velho. […] Freud sempre foi um pouco suscetível às referências à sua idade; afi nal não tinha mais que 53 anos [17].

Antes de retornar para a Europa, Freud, Jung e Ferenczi, passando por Buff alo, permaneceram por quatro dias na casa de Putnam, nas montanhas Adirondacks, perto de Lake Placid. Lá, Freud teve um ataque de apendicite. Não comentou com ninguém a ocorrência, pois não queria causar preocupações ao anfi trião ou a Ferenczi. Foi uma estada alegre, animada por canções entoadas por Jung [18].

Em 2 de setembro os viajantes embarcaram no Kaiser Wilhelm der Grosse, de volta à Velha Europa.

O retorno

Desembarcando na Europa, em 29 de setembro, Freud escreveu de Bremen para a fi lha Mathilde: “Estou muito feliz por estar de volta e ainda mais feliz por não ter que viver na América”. Todavia, a impressão deixada pela experiência foi forte:

“Na Europa, sentia -me como um proscrito, enquanto na América os melhores recebiam -me como um de seus pares. Quando subi à tribuna em Worcester […] pensei estar assistindo à realização de um inverossímil sonho de olhos abertos. A psicanálise já não era mais uma construção delirante, tornara -se, bem ao contrário, uma parte da realidade que tinha um seu valor”. Não faltaram refl exões sobre a vida americana: “A América é o mais gigantesco experimento que o mundo já viu, mas temo que não seja destinado ao sucesso”, escreveu a Sachs. A Jones: “Sim, a América é colossal, um erro colossal” [19].

Depois de seu retorno da América, Freud escreveu a Pfi ster sobre Stanley Hall:

Uma das fantasias mais agradáveis é imaginar que em algum lugar bem distante, jamais visto por nós, existem pessoas decentes que procuram afi nar -se com nossos pensamentos e com nossos esforços e que fazem sua repentina aparição. É o que me aconteceu em relação a Stanley Hall. Quem poderia ter adivinhado que lá na América, apenas a uma hora de distância de Boston, houvesse um respeitável ancião em impaciente espera pelo próximo exemplar do Jahrbuch, tudo lendo e compreendendo, e que, então, como ele próprio se expressou, “dobraria os sinos em nossa homenagem”? [20]

Pouco tempo depois do retorno de Freud a Viena, Jones conseguira que Hall aceitasse o cargo de presidente da nova Associação Psicanalítica Americana, mas o interesse dele pela psicanálise não durou. Alguns anos depois tornou -se seguidor de Adler, notícia que muito chocou Freud. Em 2 de outubro de 1909, Freud retomou seu trabalho em Viena, a única parte do chamado “mundo civilizado” que nunca o reconheceu.

Inquietações freudianas

Depois dessa viagem o antiamericanismo de Freud assumiu, no curso dos anos, tons fortes. Por exemplo, ao relatar sua viagem aos Estados Unidos, lembrou o encontro com os fi lósofos James e Putnam. Nada disse Freud sobre a fi losofi a de William James. Quanto à Putnam, foi descrito como “homem estimável”, mas Freud observou: “a única coisa inquietante nele era sua inclinação para vincular a psicanálise a um sistema fi losófi co particular e para fazer dela serva de objetivos morais” [21].

Em 1914, ao relatar a história do movimento psicanalítico, lembrando o encontro com Putnam, comentou Freud que “mais tarde, entregando -se demais à acentuada inclinação ética e fi losófi ca de sua natureza, Putnam fez o quese afi gura a uma exigência impossível – esperava que a psicanálise se colocasse a serviço de uma concepção fi losófi co -moral particular do universo – mas continua a ser a coluna -mestra da psicanálise em sua terra natal”[22].

Possivelmente, Freud se referiu ao que aconteceu no Congresso Internacional de Psicanálise, em 1911, em que Putnam proferiu a conferência de abertura: “Importância da fi losofi a para o desenvolvimento futuro da psicanálise”. A conferência gerou certo debate entre os participantes, que não viram necessidade de atrelar a psicanálise à fi losofi a. Freud comentou mais tarde com Jones: “A fi losofi a de Putnam lembra -me uma peça decorativa de uma mesa; todo mundo a admira, mas ninguém a toca”[23].

Em 1930, Freud escreveu, a pedido de Dorian Feigenbaum, uma brevíssima nota para a revista americana Th e Medical Review of Reviews:

Psiquiatras e neurologistas servem -se com frequência da psicanálise como de um método terapêutico, mas normalmente demonstram escasso interesse por seus problemas científi cos e seu signifi cado cultural [24].

Em 1937, nas primeiras páginas de Análise terminável e interminável, Freud faz referência à “prosperidade americana” e à consequente tentativa de “adequar o ritmo da terapia analítica à agitação da vida americana”. Em 1926, a propósito da situação nos Estados Unidos, Freud escrevia:

A resolução de nossos colegas americanos contra a análise conduzida por não médicos, tomada essencialmente com base em motivos práticos, parece- -me realmente pouco prática, dado que é incapaz de modifi car um só dos elementos fundamentais da situação. Seu valor é mais ou menos aquele de uma tentativa de recalque [25].

Além de afirmar que a psicanálise não se resumia a uma psicoterapia, Freud repetiu várias vezes que, para a formação do psicanalista, não era indispensável o diploma de medicina, posição da qual os americanos discordavam radicalmente.

O ensino analítico deveria compreender também matérias estranhas aos médicos e com as quais estes não têm nenhuma ocasião de entrar em contato no exercício de sua atividade: história da civilização, mitologia, psicologia das religiões, literatura. Sem uma boa orientação, o psicanalista se vê perdido nesses campos, diante de grande parte de seu material.

O juízo de Freud era claro:

Não desejamos de fato [escreveu em 1926] que a psicanálise seja engolida pela medicina e acabe encontrando lugar nos tratados de psiquiatria, no capítulo terapia, entre aqueles procedimentos – como a sugestão hipnótica, a autossugestão e a persuasão – que, nascidos de nossa ignorância, devem sua efêmera efi cácia apenas à inércia e à fraqueza das massas humanas. Ela merece um destino melhor e espero que o encontre [26].

Num artigo de 1913, intitulado “O interesse científi co da psicanálise”, Freud passou em revista algumas “ciências não psicológicas” que representavam um campo de interesse para a pesquisa psicanalítica. A cada uma delas dedicou algumas páginas: a linguística, a fi losofi a, a biologia, a ontogênese, a história da civilização, a estética, a sociologia, a pedagogia.

Freud expressou uma ideia bastante crítica dos Estados Unidos, malgrado o reconhecimento, o interesse e até o entusiasmo com que foi recebido. Sem dúvida, o convite para ir a Worcester foi um reconhecimento ofi cial da psicanálise. Mas provavelmente foi isso que inquietou Freud: ele temia que o sucesso obtido nos Estados Unidos fosse proporcional a certa banalização da psicanálise. Possivelmente, considerava perigoso que ela fosse adaptada ao way of life americano, com as simplifi cações e as distorções que disso derivam [27].

Quanto mais sucesso a psicanálise fazia, mais Freud sentia o risco de que ela viesse a ser englobada e engessada numa psicologia normatizante. Com efeito, foi o que aconteceu no continente americano: a psicanálise perdeu quase todo o interesse pela pesquisa e pelo confronto com ciências e saberes diferentes. Depois de esquecer suas raízes culturais e históricas, difundiu -se em extensão afi rmando -se apenas como moda [28]. A prática do psicanalista tornou -se eminentemente uma profi ssão, com todos os sacramentos que pertencem a outras especializações médicas. Os motivos históricos dessa desnaturação do pensamento e da prática freudianos são vários e complexos. Dentre eles, podem ser destacados: a infl uência do puritanismo e do pragmatismo na cultura e na vida social americanas, a tradução desviante do texto de Freud, os fatos históricos que determinam a afi rmação, proporcional à denegação da psicanálise, do conceito de psicoterapia.

Sob as aparências de sucesso e de reconhecimento ofi cial, Freud pareceu dividido: de um lado, a surpresa e a satisfação pessoal ao ver suas pesquisas acolhidas; de outro, a suspeita – provavelmente a certeza – de que a aventura da psicanálise poderia encalhar em praias totalmente estranhas para ele. É possível dizer que a América foi o berço no qual, sob a insígnia de uma possível cura do inconsciente, proliferaram inúmeras técnicas de psicoterapia.

Segundo Jones [29], Freud manteve, desde o início, interesse especial pelo desenvolvimento da psicanálise nos Estados Unidos. Desde 1908, estabeleceu correspondência contínua com Brill, Jones e mais tarde com Putnam também. Muitas vezes achava graça das histórias que estes lhe contavam de lá. Por exemplo, numa conferência sobre a teoria dos sonhos, Jones mencionou a característica da egocentricidade. Uma mulher se levantou indignada e protestou dizendo que isso podia acontecer com os sonhos em Viena, mas ela estava certa de que os sonhos americanos eram altruístas.

Certa vez, um psicólogo americano insistiu em que as associações do paciente dependiam da temperatura do ambiente e, uma vez que Freud se esquecera de assinalar esse importante detalhe, suas conclusões não tinham valor científi co. Freud contava esses relatos com prazer ao grupo de Viena [30].

A despeito de certas distorções, os países de língua inglesa tiveram importância fundamental no acolhimento e na transmissão da psicanálise. “Com o advento de Hitler, Berlim e Viena deixaram de ser os principais centros internacionais da atividade psicanalítica, papel que foi assumido por Londres e por Nova York” [31].

Desdobramentos na América do Norte

A partir de 1910, depois da viagem de Freud, abriram -se por toda parte nos Estados Unidos discussões sobre o estatuto da famosa libido. Sempre muito práticos, os americanos procuraram medir a energia sexual, provar com estatísticas a efi cácia dos tratamentos freudianos e fazer pesquisas sociológicas para saber se os conceitos freudianos eram aplicáveis empiricamente aos problemas psíquicos dos indivíduos. Nessas condições, podemos dizer que a psicanálise tornou -se, no continente norte -americano, um instrumento de adaptação do homem à sociedade.

Segundo Roudinesco e Plon [32], foi antes uma visão terapêutica da psicanálise que invadiu o campo da cultura e da medicina, atribuindo- -se menos importância a seu sistema de pensamento do que a seu poder de cura. A psicanálise se mostrou, assim, como novo ideal de felicidade, capaz de dar solução à moral sexual da sociedade democrática e liberal: o homem não estava condenado ao inferno de suas neuroses e de suas paixões. Pelo contrário, podia curar -se delas.

O sistema freudiano invadiu todo o campo da psiquiatria. No entanto, a palavra psicanálise tornou -se sinônimo de psiquiatria, num país em que a noção de análise leiga não tinha nenhum signifi cado. Entre 1910 e 1917, a psicanálise se organizou em um movimento corporativo, em torno de várias instituições. Em 1911, Brill criou a New York Psychoanalytical Society. Em 1914, Putnam fundou a Boston Psychoanalytic Society.

Roudinesco e Plon [33] informam que a apsaa reúne diversas sociedades psicanalíticas ditas “fi - liadas” (affi liate societes), das quais dependem os institutos de formação (training institutes). Essas sociedades foram reconhecidas pela ipa por meio de sua fi liação à apsaa. Somaram um total de 40, havendo entre elas cinco grupos de estudos (study groups). A elas se juntaram 19 institutos distribuídos pelas principais cidades dos Estados Unidos e quatro sociedades norte- -americanas provisórias, que não fazem parte da apsaa mas estão diretamente ligadas à ipa: o Institute for Psychoanalytic Training and Research, o Los Angeles Institute and Society for Psychoanalytic Studies, Th e New York Freudian Society e o Psychoanalytic Center of California.

Decorridos noventa anos desde sua fundação, a apsaa continuou a ser a maior potência freudiana da ipa, com cerca de 3.500 psicanalistas para 263 milhões de habitantes, isto é, pouco mais de um terço do efetivo global da ipa, ou uma densidade de 13 psicanalistas por milhão de habitantes. A eles se somaram os psicanalistas norte -americanos de todas as tendências que não fazem parte da ipa, e que são aproximadamente oito a nove mil [34].

Depois da Segunda Guerra (1940 -45), os psicanalistas da Europa se exilaram nos Estados Unidos, na Grã -Bretanha e na Argentina. Apesar de tantas contradições teóricas e metodológicas, sem a potência norte -americana e sem essa imigração maciça da quase totalidade dos terapeutas da Alemanha, da Áustria (Viena), da Hungria, da Itália e da Europa Central, a psicanálise jamais teria atingido seu prestígio na história mundial.

A despeito dos posteriores descaminhos da psicanálise em território norte -americano, no mínimo a viagem de Freud em 1909 contribuiu para a internacionalização da quase desconhecida psicanálise e, depois, para a abertura futura dos braços norte -americanos ao acolhimento dos psicanalistas europeus.


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