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Resumo
A partir de um caso que envolve como exemplos uma dissertação e uma interação clínica, o autor argumenta que no estado atual das coisas a pesquisa idiográfi ca não apenas é aceitável, como ainda se revela mais adequada para testar uma teoria psicodinâmica que os métodos nomotéticos.


Palavras-chave
pesquisa qualitativa; caso individual; pesquisa idiográfi ca; pesquisa nomotética; interpretação; paraprofi ssional; tratamento em residência abrigada.


Autor(es)
Hal Reames


Notas

* Percurso agradece ao autor a gentileza de ter esclarecido o sentido do termo residential treatment. Trata-se da colocação de adolescentes em casas abrigadas ou em instituições de saúde mental, nas quais convivem com outros jovens, com “pais adotivos” e com outros profissionais não diretamente envolvidos em seu tratamento psicoterápico. Estes últimos são designados como paraprofessionals, termo que traduzimos com o neologismo “paraprofissionais”; para os locais nos quais trabalham, utilizaremos a expressão “residência abrigada”.

1 Ver nota 1.

2 E. Levenson, The fallacy of understanding/The ambiguity of change.

3 E. Hirsch, Validity in interpretation.

4 Chapter II: “Purpose, method, and procedure”, in Hal Reames, The functioning of the psychiatric case worker in interactions with adolescents in residential treatment.

5 op. cit., p. 84.

6 op. cit., p. 93-4.

7 R. Collingwood, The idea of history.

8 H. Hart, J. McNaughton, “Evidence and inference in the law”, in Evidence and inference.

9 R. Erickson, “The nature of clinical evidence, p. 67, 91-2.

10 J. Benjamin, “Methodological considerations in the validation and elaboration of psychoanalytic personality theory”, Am. J. Orthopsychiatry, 20, p. 139-56.

11 D. Lerner, “Introduction: on evidence and inference”, in Evidence and inference.

12 P. Ricoeur, Da interpretação: ensaio sobre Freud. [Em inglês: Freud and philosophy: an essay on interpretation, 1970, Yale University Press.]

13 P. Ricoeur, op. cit., p. 150.

14 P. Ricoeur, op. cit., p. 405.

15 P. Ricoeur, op. cit., “É somente quando cada interpretação parece contida na outra que a antitética já não é simplesmente o choque dos opostos, mas a passagem de uma para a outra”, p. 399-400.

16 P. Ricoeur, op. cit., p. 146-7.

17 Paris, Aubier-Montaigne, 1978. Tradução brasileira: Como a interpretação vem ao psicanalista,

18 Uma discussão das diferenças e semelhanças entre interpretação talmúdica e interpretação psicanalítica pode ser encontrada no capítulo IV de R. Mezan, Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, Rio de Janeiro, Imago, 1995, intitulado “Processo primário e interpretação” [Nota dos revisores].

19 T. McCormick, R. Francis, Methods in research in the behavioral sciences.

20 G. Haddad, L’enfant illégitime: sources talmudiques de la psychanalyse. Nota do autor: Em “Seis autores em busca de um personagem”, Renato Mezan apresenta uma importante discussão deste livro. Cf A vingança da Esfinge, p. 338-85 [Nota do autor].

21 Major, ibid., cf. Aulagnier, p. 17-38.

22 Major, ibid., cf. Viderman, p. 210 (O sentimento trágico da interpretação).

23 A. Krohn, M. Mayman, “The prediction of early memory content based on psychodynamic theory” e “Object representations in dreams and projective tests”, Bulletin of the Menninger Clinic, 38: 5, pp. 445-66.

24 B. Tuchman, The march of folly: from Troy to Vietnam.

25 G. Rosenwald, R. Ochberg, Storied lives – the cultural politics of self understanding.

26 A. Carvalho, “O ofício do psicanalista”, Percurso, Revista de Psica­nálise, ano xix, n. 37, 2006, p. 17-26.

27 S. Freud, “Análise terminável e interminável”, p. 247-87.



Referências bibliográficas

Benjamin J. (1950). Methodological considerations in the validation and elaboration of psychoanalytic personality theory, Am. J. Orthopsychiatry 20.

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Lerner D. (1959). Introduction: on evidence and inference. In: Evidence and inference. Glencoe: The Free Press of Glencoe.

Levenson E. (2005). The fallacy of understanding/The ambiguity of change. East Sussex, UK: The Analytic Press.

Major R. (1995). Como a interpretação vem ao psicanalista. São Paulo: Escuta.

Mayman M. The prediction of early memory vontent based on psychodynamic theory (inédito).

Mezan R. (1988) Seis autores em busca de um personagem. A vingança da Esfinge. São Paulo: Brasiliense.

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Reames H. (1975). Chapter ii: Purpose, method, and procedure. In: The functioning of the pychiatric case worker in interactions with adolescents in residential treatment. Ann Arbor: University Microfilms.

Ricoeur P. (1965). Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Rosenwald G.; Ochberg R. (1992). Storied lives – the cultural politics of self understanding. New Haven: Yale University Press.

Tuchman B. (1985). The march of folly: from Troy to Vietnam. New York: Ballantine Books.





Abstract
Using a single case involving one dissertation and one clinical interaction as illustrations, the author argues that with current technology ideographic research is not only acceptable, but is still more appropriate for testing psychodynamic theory than are nomothetic methods.


Keywords
qualitative research; single case; ideographic; nomothetic; interpretation; paraprofessional.

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 TEXTO

Uma interpretação e uma tese

justificativas para o estudo de casos individuais


An interpretation and a dissertation
justifying individual cases studie
Hal Reames


Tradução: Regina Maria Gonzaga dos Santos
Revisão: Eliana Borges Pereira Leite e Renato Mezan

No outono de 1976, iniciei meu mestrado em Psicologia em uma universidade do meio-oeste americano, conhecida na época como a “Meca do behaviorismo”, para onde a comissão Fulbright havia me mandado na esperança de que ali eu me curasse definitivamente da minha crescente desilusão com as teorias behavioristas, mesmo com aquelas que fundamentavam as chamadas “terapias comportamentais de amplo espectro”, e, quem sabe, me reconciliasse com elas para voltar ao Brasil e lecionar a cadeira de Psicologia Experimental na Universidade Federal de Minas Gerais. Voltei ao Brasil depois de concluído o mestrado, mas não foi possível me reconciliar com o behaviorismo.

Anos depois vim a compreender que uma das razões para essa ruptura definitiva foi o fato de ter cursado a única disciplina que me interessou na insípida grade curricular do programa então oferecido: “Human behavior” [“Comportamento humano”] era o nome dela. O professor, Hal Reames, um recém-doutor e graduado em Psicologia pelas Universidades de Yale e Michigan, mas já com grande experiência clínica, viria a me mostrar uma outra visão sobre o sofrimento humano, completamente incompatível com o modelo behaviorista e que, para minha alegria, fazia coro com as minhas suspeitas sobre a importância dos processos que se escondem atrás do, digamos, outro lado da lua do adoecer psíquico. Quis o acaso que eu tivesse o privilégio de ter sido sua aluna naquele que viria a ser o seu único semestre ali, pois, como logo se tornou evidente, lá não haveria lugar para Hal Reames, estranho no ninho behaviorista daquele ambiente acadêmico.

Em suas aulas ele privilegiava, com sensibilidade e segurança, os aspectos que o terapeuta deveria levar em consideração em sua escuta para captar o inconsciente no trabalho clínico. Assim, sem que ele soubesse, recebi através de suas palavras o incentivo que faltava para que minha experiência acadêmica de apenas um semestre naquele grande centro behaviorista terminasse por consolidar meu interesse pela Psicanálise.

Só trinta e um anos depois, em 2007, é que tive o privilégio de ler a tese de doutorado que ele havia defendido no ano anterior àquele semestre em que fui sua aluna. Constatei, surpresa, que nesse estudo – cujo pretexto era examinar o trabalho dos acompanhantes terapêuticos, a fim de avaliar a qualidade e os efeitos das interações entre eles e grupos de adolescentes – Hal Reames oferecia formulações (tais como a especificidade da noção de interpretação no contexto do trabalho clínico) que, pela sua pertinência, passadas três décadas de sua redação, continuavam atuais e relevantes para o trabalho clínico realizado fora do setting tradicional, e também para um debate sobre a metodologia da pesquisa em psicoterapia e em Psicanálise.

O leitor familiarizado com as idéias da Psicanálise não terá trabalho para reconhecer a inspiração teórica que alimenta essas formulações, mas estranhará a ausência de referências psicanalíticas na bibliografia da tese apresentada em 1975. Não será difícil deduzir que isso reflete as dificuldades encontradas pelo autor quando optou por não ceder de suas convicções diante da pesada tradição positivista reinante no ambiente acadêmico, ao mesmo tempo que procurava transmitir suas idéias de modo que fossem respeitadas. Não custa lembrar que o predomínio da experimentação de cunho positivista, já vigorando na época em que Reames terminava seu doutorado, em seguida passaria a banir cada vez mais a Psicanálise do campo das ciências, nos Estados Unidos. Infelizmente, essa tendência contribuiria para que sua tese, intitulada The functioning of the psychiatric case worker in interactions with adolescents in residential treatment* [“O funcionamento do acompanhante psiquiátrico de adolescentes em tratamento residencial”], embora tivesse sido aprovada com louvor, não fosse publicada.

Em minhas conversas recentes com Hal Reames, ficou claro que as formulações construídas sobre as observações apresentadas no estudo de 1975 haveriam de sustentar todo o trabalho clínico desenvolvido durante mais de trinta anos com famílias, toxicômanos e crianças vítimas de abuso sexual, que ele atendeu tanto individualmente em sua clínica particular como nas chamadas “residências abrigadas”, em Michigan, nos Estados Unidos.

Seria correto dizer que o programa clínico de Hal Reames o aproxima da Psicanálise porque se fundamenta sobre o princípio ético do respeito à singularidade e sobre a escuta do inconsciente. Disso decorre que o ritmo dos processos em um tratamento psicoterápico não pode ser pré-definido por nenhum parâmetro extrínseco ao seu campo. Curiosamente, são esses aspectos que colocaram o seu programa na contramão das regras generalizantes que, em seu país, comandam o exercício da psicoterapia, cuja eficiência é medida pelo número cada vez mais reduzido de sessões _ tal como é estabelecido, por exemplo, pelos planos de saúde, que ignoram as particularidades de um atendimento clínico dessa natureza.

Escrito no verão de 2008, em um momento em que o autor se encontra aposentado e dedicando-se à sua carreira literária, o artigo ora publicado por Percurso não deixa de ser uma reflexão retrospectiva sobre os frutos desse trabalho. Pela sua mão firme de escritor que, além da fonte clínica, bebeu também da teoria da literatura e da arte, Hal Reames se dedica a mostrar a importância do respeito à singularidade que caracteriza a postura ética do psicoterapeuta não só no contexto clínico, mas também na maneira como pesquisamos nesse campo. Como se isso não bastasse, também renova a relevante questão da validade de uma interpretação, ao indagar: se não se pode ter a pretensão de imaginar um “gabarito de correção” das interpretações produzidas no contexto de uma sessão, como medir a pertinência do que falamos para o nosso paciente? Qual é o papel da teoria na produção de uma interpretação? Como acessar os efeitos do que dizemos no contexto clínico?

Se essas perguntas são relativas ao campo da teoria da técnica psicoterápica em geral e psicanalítica em particular, elas aludem também a um campo mais vasto de interlocução em que comparecem, de um lado, o grupo daqueles nostálgicos de que os dispositivos das ciências experimentais pudessem oferecer alguma certeza sobre o que fazemos, e, de outro, o grupo daqueles que, mais acostumados à inexatidão, se inquietam o suficiente para, corajosamente, continuar indagando.

O presente artigo, assim como os livros The upside-down hill (2008), The fall alone – fictionalized memoir of a clinical psychologist (2007), Unscored upon (2003), Among the ravening sharks: mastering fear in the trading pit (2001) e The red dragon turns to gold – travels in China during the fiftieth anniversary of the People’s Republic (2000), mostram que, felizmente, Hal Reames faz parte deste segundo grupo.

ANA CECÍLIA CARVALHO

 

Nada acontece entre eles: apenas
conversam.
[Freud, A questão da análise por
não-médicos]

Em 1974, um estudante de pós-graduação na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, queria estudar as interações entre adolescentes internados em residências abrigadas e as pessoas que trabalhavam na instituição. Entretanto, depois de ter estudado estatística no curso secundário, no de medicina e na pós-graduação, e de ter lecionado a disciplina “Métodos de pesquisa”, ele achava que a coleta de dados numéricos e a aplicação de testes não lhe diriam o que queria saber. Em vez disso, queria utilizar o “juízo clínico” para determinar o valor terapêutico dessas interações – mas ninguém com quem falava conseguia se lembrar de o Departamento de Psicologia Clínica ter jamais permitido métodos qualitativos numa tese de doutorado.

“Fale com George Rosenwald”, disseram-lhe.

Uma conversa difícil

O estudante nada sabia sobre o professor George Rosenwald, e supôs que, de algum modo, precisaria convencê-lo da validade de usar a interpretação clínica numa pesquisa acadêmica. Sentou-se na sala dele e começou a falar sobre o tratamento de adolescentes, mas o Dr. Rosenwald disse: “Tenho certeza de que isto é importante para você, mas tenho pouco interesse nesse assunto. O que me interessa é o seu método. Você não quer fazer um experimento para testar uma teoria?”

O silêncio foi longo e desconfortável.

“Não”, foi a resposta.
“Por que não?”, indagou o professor.

O estudante explicou que tinha abordado um jovem docente interessado no tratamento de adolescentes, a quem descrevera sua idéia para a pesquisa. O professor respondera: “Isso seria então um passo preliminar? Você estaria fazendo observações para gerar hipóteses capazes de serem experimentalmente testadas?”

Ele percebeu que o jovem professor estava questionando se suas idéias estavam suficientemente desenvolvidas, ou se a sua proposta metodológica era suficientemente científica, para merecer um doutorado em Psicologia Clínica. Para o estudante, segundo uma definição, “ciência” era o corpo de conhecimento ensinado em aulas de ciências (exceto nas regiões dos Estados Unidos que ensinavam a evolução a partir do Gênesis). De acordo com outra definição, que ele tinha tanto aprendido como ensinado, o “método científico” consistia em observar, formar uma hipótese, conceber experimentos, fazer previsões, usar os experimentos para testar tanto a hipótese quanto as previsões, e chegar a uma conclusão.

Entretanto, o estudante não tinha experimentos em mente, pelo menos não no sentido usual. Encarando a morte acadêmica no escritório do Dr. Rosenwald, sua futura vida profissional passou num relance diante de seus olhos, e ele procurou se defender com o seguinte – e ousado – discurso:

“Trabalhos experimentais mostraram que os programas de internação em residências-abrigo com regras rigidamente impostas e com sistemas de recompensa e castigo produzem resultados melhores no que se refere a respeitar normas do que settings menos estruturados. A hipótese oposta foi rejeitada com nível 0,05 de significância. Sei que isso é verdade, mas não é nisso que estou interessado: trabalhei na equipe de uma instituição, e sei que fiz mais que simplesmente impor regras. Também ajudei nas tarefas escolares, falei com os garotos na hora do jantar, designei tarefas, às vezes os ajudei nelas, e em outras preferi não fazê-lo. Joguei jogos, ri com eles, ou optei por não rir do que achavam engraçado.”

“Nem todo o meu comportamento pode ser descrito como medicamentoso. Parecia que eu estava sempre tomando decisões sobre qual comportamento seria mais útil para o adolescente, mas ninguém na administração jamais reconheceu que um paraprofissional [1] poderia ter uma função terapêutica. Ninguém jamais discutiu sobre como ele poderia saber quando ser acolhedor e quando ser exigente. Ninguém jamais nos disse que diferença faria para a criança. Agora que trabalho como terapeuta, acho que este trabalho é por vezes mais fácil que o do paraprofissional, porque o terapeuta tem um repertório de comportamentos mais limitado, e necessita tomar menos decisões sobre como interagir.”

Alto e calvo, o Dr. Rosenwald continuou a olhar para o desesperado estudante através de seus pequenos e grossos óculos. Obviamente, ele ainda não tinha ouvido uma resposta satisfatória. O estudante continuou:

“Imagine que eu proponha a seguinte hipótese: interações que envolvem 1) um paraprofissional que pareça estar impondo as regras, mas na verdade esteja demonstrando carinho e preocupação; 2) um adolescente que se rebele contra a autoridade e dê a impressão de ser anti-social, mas na verdade se sinta mal-amado e queira que alguém se preocupe com ele, e 3) um ato de cuidado embutido no exercício de autoridade – tais interações fazem com que o adolescente se sinta cuidado, e reduzem sua rebeldia.”

“Quanto tempo teria que procurar para descobrir interações desse tipo? E como saberia quais as necessidades não-atendidas ocultas por trás da atitude desafiadora do adolescente? E como saberia que o adolescente está reconhecendo cuidado onde outros veriam somente autoridade? Será que por causa dessa única interação o adolescente necessitado de atenção sairia de sua rebeldia como Lázaro do caixão, e iria para o mundo como alguém responsável? E se fosse, o que teria o paraprofissional aprendido a partir desta única interação? Seria a lição: “imponha as regras, mas demonstre afeto, e esse grupo de adolescentes será curado de seu comportamento anti-social?” Não é tão simples assim. Esta seria apenas uma entre a miríade de possíveis interações úteis.”

“Então você não está testando nenhuma teo­ria?”, perguntou o professor, sério.

“Não no sentido habitual” respondeu o estudante. “Mas, começando com Freud, a cada vez que um terapeuta acha que um caso se desvia das previsões da teoria o que subjaz à sua ação, nasce uma nova teoria. O fracasso dele no caso do próton pseudos da histeria fez com que desistisse da sua primeira teoria da neurose, e produzisse os conceitos de sexualidade infantil e de realidade psíquica diferente da realidade externa. Mais recentemente, a experiência com pessoas que parecem entrar e sair da psicose produziu a noção de psicose borderline.”

“Quero perguntar aos terapeutas dos adolescentes do Instituto de Neuropsiquiatria (npi) o significado das interações observadas. A maioria das explicações usará algum tipo de teoria psicodinâmica. Os paraprofissionais provavelmente usarão uma explicação baseada no senso comum; e quem sabe o que dirão os garotos? Quero selecionar as interações em que todas as três explicações se combinem numa visão forte e convincente sobre o valor da interação. Em outras palavras, a teoria está sendo usada, e portanto testada, mas não estou fazendo o estudo com este propósito.”

O estudante continuou:

“Imagine que as pessoas desenvolvam sua personalidade ao longo do tempo, em grande parte graças a interações com outras pessoas, cujos detalhes estão esquecidos há muito tempo. Imagine que um paciente possa interagir com o terapeuta de modos que permitam apreenda novas coisas sobre si mesmo e seus possíveis relacionamentos com outros. Já leu Levenson?” perguntou ao professor, em meio a um turbilhão de idéias. “Ele argumenta que o analista faz muito mais do que ‘comunicar compreensão’, especialmente compreensão da transferência.” [2]

“É mesmo? O que mais ele faz?” perguntou o professor, trocando de papel com o estudante.

“Eles entram em uma relação influenciada pelas formas de interação do paciente. O analista acaba por perceber que foi seduzido a dançar a dança do paciente, e se livra dela, ensinando assim ao paciente uma dança diferente. Assim, aquele aprende a se relacionar de uma forma diferente.”

“E provavelmente o analista também se modifica”, observou o professor.

“Sim, e pelo que li de Whitehead, estou inclinado a ver meu objeto de estudo na interação, ou na dança de Levenson, e não como constituído por cada componente do par. Imagine que esta reaprendizagem poderia acontecer nas interações entre o adolescente internado e um paraprofissional com pouco treinamento, com quem aquele interage durante o dia. Talvez esse tipo de interação seja terapêutico; se for este o caso, o que faz com que seja?”

“Então você rejeita as mônadas isoladas de Leibniz?”, perguntou o professor, dando seu primeiro sorriso.

“Não o perdoei pela sua participação na invenção do cálculo infinitesimal”, disse o estudante, meio de brincadeira. “Assim, estou tentando descobrir qual é o papel destas interações no tratamento. Estou selecionando interações em que a teoria se mostra útil, e usando-as para definir uma forma de terapia. Tanto minha definição do papel do paraprofissional como a teoria psicodinâmica subjacente serão testadas mediante seus usos futuros, da mesma forma que os terapeutas testam suas teorias aplicando-as. Quando deixar de guiar, ou de explicar, a teo­ria terá de ser alterada. Mas não acho que o estudo controlado de grandes grupos proporcionará o nível de magnitude, detalhe e precisão que quero.”

“Hum”, murmurou o professor, “este é um argumento interessante contra a pesquisa nomotética. Você vai pedir a um terapeuta, a um paciente e a um paraprofissional para interpretarem o significado de suas interações, e não terá nenhuma outra medida da eficácia delas exceto sua própria síntese dessas interpretações? Você diz que uma pesquisa nomotética não seria suficiente. ‘Por que não?’, alguém perguntará. Você responde: “porque não me importo com o adolescente estatisticamente normal internado em residências-abrigo – aquele com a média de todas as qualidades dos adolescentes internados no terceiro andar do npi.”

“Um estudo nomotético examinaria classes gerais, mas não daria o grau de especificidade que você está buscando. Você não pressupõe, nem busca estabelecer, qual classe de interações mais freqüentemente ajudará o maior número de pacientes. Você busca uma explicação idiográfica: o paraprofissional tem diante de si uma pessoa real com quem deve interagir, e pode e deve adaptar seu comportamento e esse paciente. É isso que pessoas não-autistas fazem ao interagir.”

O contexto acadêmico: pesquisa idiográfica e nomotética


“Idiográfica”: o estudante nunca tinha ouvido aquele termo. Ter um rótulo dá um ar de respeitabilidade. Se houvesse um nome para o modo como ele estava pensando, talvez fosse permissível pensar desse modo.

Em 1975, quando aquela dissertação foi proposta, a psicologia acadêmica estava receosa de defender os métodos empregados por Freud, então considerados não-científicos. Os professores universitários concordavam com a crítica de que as teorias dele eram inúteis, porque não podiam ser testadas, assim como as previsões de Einstein de que a gravidade podia curvar a luz (ou, mais precisamente, curvar o espaço) não puderam ser testadas até que certos eventos cósmicos permitiram um experimento natural. Einstein pensou a respeito da inconsistência entre a relatividade geral e a mecânica quântica, refletiu sobre a teoria do Big Bang, e percebeu – sem nenhuma experimentação – que havia algo de errado com elas. Os recálculos da teoria de Einstein feitos por Alan Guth foram aceitos pelos físicos não por causa da experimentação controlada, mas devido à sua capacidade de explicar o que já aconteceu. A teoria astrofísica das supercordas só apareceria dez anos mais tarde, e até hoje não pôde ser testada por experimentos: é aceita somente por sua consistência interna e por seu valor explanatório.

Da mesma forma, durante mais de um século não havia como observar a repressão, até que a neuro-imagem pôde demonstrar que as conexões neurais entre os lobos frontais e os centros de memória ficam muito ativas quando a pessoa está esquecendo alguma coisa. De acordo com a epistemologia, isto não provou que Freud estava certo sobre como as coisas são ativamente esquecidas, mas o estudo não conseguiu rejeitar a hipótese freudiana, e até sugeriu caminhos neurais para a repressão.

“Talvez”, pensou o estudante, “a ciência não se limite a um único modo de testar uma teoria”.

A conversa entre o professor e o aluno aconteceu dentro de um contexto. Por volta da virada do século vinte, Freud criou a primeira teoria dinâmica de personalidade e da psicopatologia, estudando casos isolados – um de cada vez. Até a Segunda Guerra Mundial, os praticantes da Psicanálise nos Estados Unidos eram em pequeno número, e a maioria deles era constituída por psiquiatras. Durante a guerra, eram muito poucos para tratar todos os casos de “fadiga de combate”, que agora reconhecemos como tept (transtorno de estresse pós-traumático).

Conseqüentemente, o governo americano despejou dinheiro no treinamento de psicólogos clínicos. À medida que os dólares entravam nas universidades, os psicólogos behavioristas também requisitaram mais verbas de pesquisa para fins militares, incluindo a tentativa de B. F. Skinner de treinar pombos para guiar mísseis bicando o alvo. Apesar de os mísseis guiados por bicadas de pombos não terem feito sucesso entre os militares, os behavioristas conseguiram algum dinheiro federal, alegando o uso do método científico, isto é, o teste experimental de hipóteses e o uso de métodos estatísticos para rejeitar a alternativa oposta e refutar uma teoria.

Quando os estudantes de George Rosenwald começaram a produzir suas dissertações sobre pesquisa qualitativa, a teoria da aprendizagem reivindicava uma parcela considerável do dinheiro de pesquisa. Mas as teorias apresentadas pelos behavioristas eram tão gerais – podiam ser testadas até em roedores e pássaros! O Dr. Rosenwald não recorria à pesquisa qualitativa somente nos momentos nebulosos em que uma hipótese é concebida e explorada ainda de modo tateante. Em vez disso, incitava seus alunos a entender e justificar por que o estudo de caso não-quantitativo, não-nomotético e singular era o método adequado para explorar certos aspectos do funcionamento humano. Desde então, as casas editoras e as comissões editoriais de revistas científicas chegaram a um acordo, e criou-se um corpo de pensamento a respeito da pesquisa qualitativa.

Quando terminaram de conversar, o Dr. Rosenwald quis ver um capítulo sobre metodologia. Depois falariam novamente. Em pouco tempo, o estudante retornou com uma breve descrição das interações que planejava observar, e do tipo de entrevista que usaria para se assegurar do seu sentido e valor clínico. O professor queria mais: não uma apologia, mas um argumento consistente e lógico para o método de casos singulares. Por volta de 1975, a maioria dos terapeutas pressupunha que os sintomas tinham um significado psicológico. Quer pensassem em bases psicanalíticas ou não, buscavam interpretar o que o comportamento significava; correndo o risco de parecer não-científico, Rosenwald enviou o estudante para o campo da crítica literária. Disse ele:

“Você parece se desculpar por não estar testando uma hipótese, e não explica ao leitor por que esse método é de fato mais adequado ao seu objeto de estudo. Por que é necessário ‘interpretar’ essas interações, da mesma maneira que um terapeuta interpreta o significado dos sonhos, dos sintomas e dos comportamentos ao tratar de um paciente? Vá ler sobre crítica literária, sobre interpretação histórica, e sobre como se avaliam provas em processos criminais.”

Meses se passaram. O estudante retornou mais seis vezes; finalmente, na sétima versão, ele apresentou o argumento de Hirsch de que o significado de uma obra de arte nunca pode ser completa e exaustivamente compreendido. Sem sequer se referir ao conceito de inconsciente, Hirsch afirmava que nem o próprio artista pode explicar completamente o significado do que fez. Isso acontece porque: 1) ele pode não entender completamente todas as forças que contribuíram para a sua criação, e 2) outras interpretações acrescentarão significados mais universais do que o artista pretendia. [3]

O capítulo “Métodos” afirmava:

“Ao estudar interações limitadas no tempo, busca-se interpretar o que cada uma significa para o tratamento do adolescente. Defino significado como “integração de eventos observáveis.” Isso engloba tanto a forma de interação do adolescente com o paraprofissional quanto seus sentimentos e suas percepções a respeito dela. O aspecto subjetivo da interação – considerado como um importante componente dela – é abordado através de entrevistas. O observador pede ao participante-adolescente para explicar sua experiência da interação e sua compreensão dela…” [4]

O pesquisador entrevistaria tanto o analista quanto o adolescente. Então, “a partir dos diálogos com o adolescente e o terapeuta, o entrevistador chega a uma formulação sobre a experiência subjetiva do adolescente”. Compreender a experiência do adolescente, porém, iria além de simplesmente saber como este se sentiu. “A entrevista com o terapeuta tem a intenção de oferecer acesso ao sistema de significados do paciente, ou seja, à sua maneira atual de entender seu relacionamento com o ambiente […]. Entretanto, busca-se entender mais do que o que o adolescente sentiu, ou o que a interação significou para ele. Busca-se saber também como este modo de interação se relaciona com a maneira como conduz sua vida, ou seja, como é relevante para esta maneira característica de interagir com o ambiente. Seria desejável saber até que ponto é uma repetição, ou um afastamento de padrões estabelecidos de interação com outros.” [5]

“Se fosse possível observar todas as suas interações (e ler sua mente), haveria informação suficiente para entender se elas ajudam o adolescente a funcionar psicologicamente de maneiras consideradas desejáveis. Já que não dispõe dessa informação, o terapeuta pode ajudar na aproximação a esse tipo de perspectiva […]. Em resumo, uma interpretação de uma interação é uma declaração sobre 1) o que tal interação revela sobre o adolescente e 2) como é percebida e assimilada por ele. Esse significado é conferido à interação pelo autor, à medida que ele integra informação de várias fontes…” [6]

Analogias com campos conexos


Dessa forma, argumentou o estudante, a interpretação do significado de uma interação transcendia o que ela significava para o adolescente: referia-se ao que significava para o autor (e para o leitor) a respeito do funcionamento psicológico passado e futuro do paciente. Não importa quão bem a interpretação integrava dados observados, dados históricos e teoria: sempre haveria espaço para uma interpretação diferente. Então, como se avaliaria a validade de uma interpretação? O argumento da dissertação era que as afirmações de Hirsh sobre interpretação literária se aplicavam igualmente à interpretação do comportamento humano. Para validar uma interpretação, isto é, para fazer discriminações objetivamente fundamentadas entre interpretações conflitantes, é preciso estabelecer princípios de validação. Em outras palavras, são necessárias regras para avaliar as evidências, e a avaliação deve derivar de forma lógica dos princípios normativos estabelecidos.

Voltando-se para os historiadores, o estudante descobriu Richard Collingwood. [7] Para este autor, os relatos históricos não são fatos, mas interpretações baseadas em conhecimentos incompletos. Segundo Collingwood, os historiadores se empenham em sugerir a interpretação mais provável, com o objetivo de dar conta dos dados de forma tão plausível, compreensível e econômica que nenhuma outra seja cabível.

No campo da Jurisprudência, Hart e McNaughton destacaram que nos tribunais criminais dos Estados Unidos a interpretação da história por um júri não pode ser julgada pelos métodos experimentais das ciências naturais. [8] O júri ratifica aquela interpretação dos acontecimentos que, à luz das provas disponíveis, pareça ser a mais provável.

A literatura revelou que profissionais da área de saúde mental já tinham tentado estabelecer regras para avaliar a probabilidade de uma interpretação. Erickson, por exemplo, sugeriu os seguintes critérios: 1) uma declaração espontânea do paciente concordando com a interpretação do analista; 2) confrontação com uma grande quantidade de comunicações; 3) com informações obtidas via diagnóstico; 4) com a genética da personalidade; e 5) com a estrutura da personalidade. Os clínicos enfatizaram a importância de usar sua própria “experiência interior” para se alinhar com o estado subjetivo do paciente. Erickson considera esta “subjetividade disciplinada” como “infelizmente indispensável”. [9]

Outro clínico, Benjamin, buscou a confirmação de uma interpretação na sua consistência com outras comunicações, inclusive palavras, sonhos, comportamento físico, associações e testes psicológicos. [10] Neste meio tempo, Lerner ressaltou a consistência entre uma interpretação e previsões teóricas. [11]

Mesmo assim, ficava clara a impossibilidade de garantir o acordo entre duas interpretações de
uma dada ação humana. Conseqüentemente, argumentava aquela primeira dissertação, as diferenças entre as intérpretes não eram, afinal de contas, um resultado tão ruim assim. Se uma interpretação, como uma teoria, não podia ser provada como verdadeira, mas somente se aproximar da verdade, então o diálogo entre paciente e analista, entre historiadores, entre críticos de arte e entre jurados poderia servir para conduzir as partes a uma interpretação melhor. Isso seria um processo sem fim, assim como a própria ciência nunca cessa de buscar uma explicação melhor.

Finalmente, o Dr. Rosenwald aprovou essa sétima versão do capítulo sobre o método de pesquisa. Desde 1975, esse ponto de vista vem sendo articulado de modo mais e mais preciso. Os alicerces filosóficos da dissertação, sugeridos pelas referências a Whitehead, foram reforçados por Paul Ricoeur [12], cuja obra De l’Interprétation apareceu em inglês em 1970, mas de alguma forma, mesmo passados cinco anos, havia escapado à atenção de um departamento de Psicologia analiticamente orientado. Depois de estudar Freud, o recém-falecido filósofo aplicou os princípios da hermenêutica – a arte da interpretação – ao comportamento humano, assim como à História e à Arte. Emprestando o selo da aprovação epistemológica à interpretação psicológica, ele argumentava que todo autoconhecimento é mediado por signos, símbolos e palavras que precisam de interpretação.

Voltando-se para o estudo de eventos históricos, Ricoeur afirmava que este nunca poderia ser completado ou acabado, não porque a História continua a ser feita, mas porque nenhum evento isolado (não importa quão simples) pode ser completamente explicado, especialmente depois de os participantes terem morrido. O que no campo da história costuma ser designado como “fato” é na verdade estabelecido por meio da interpretação: primeiro, o historiador interpreta os arquivos; a informação contida neles deve ser entendida, o que necessita uma interpretação dos eventos relacionados ao escrever ou contar a história. O historiador – como o paciente e o analista – deve usar palavras, e estas necessitam de mais interpretação.

Como em toda operação interpretativa, pode-se aspirar à credibilidade ou plausibilidade, mas jamais à certeza. Além do que, pode-se dizer, grande parte da evidência é relembrada, e tanto a literatura sobre lembranças falsas quanto as experiências do sistema jurídico com testemunhas oculares em casos criminais comprovam que a memória não é lá muito confiável. Porque a interpretação de um evento passado não pode ser provada, da mesma forma uma hipótese baseada em teorias científicas: é necessário um discurso, isto é, uma narrativa. O tempo histórico que a narrativa apresenta é um tempo interpessoal, público. A realidade humana de Ricoeur, como a de Whitehead, concerne a relacionamentos, e exige que o significado seja estabelecido via interação.

A relação entre interpretação e diálogo foi mais explorada no campo da arte. Ricoeur também afirmava que o intérprete deve buscar consistência teórica interna. No caso da teoria freudiana, um símbolo onírico deve resultar de uma realização de desejo disfarçada pelo uso de símbolos universais, de conflitos, da repressão da sexualidade infantil devido à ansiedade, da resolução de conflitos, e de outras coisas. Unindo as teses de Hirsch e Freud, Ricoeur fez ver que uma obra de arte não é uma simples projeção dos conflitos do artista, mas apresenta um esquema para a solução deles. Desta forma, os sintomas, sonhos ou atos falhos compartilham com a obra de arte um mesmo estatuto lógico. [13]

O exemplo mais simples é a interpretação de um símbolo onírico, que, nas palavras de Freud, pode ser sobredeterminado, isto é, tem mais de uma causa, e mais de um significado. [14] Ricoeur sugeria que a interpretação de um símbolo é uma tentativa de ser objetivo acerca da afetividade. [15] Os símbolos ganham sentido por meio de interpretações, e este é o campo próprio da hermenêutica. Nesta disciplina, a validação do significado é uma dialética hegeliana infindável. [16] Ricoeur estabeleceu que não é necessário haver uma última palavra, a palavra que termina o diálogo. Desta forma, o campo da filosofia poderia ratificar retroativamente a tese da dissertação: a discordância é esperada, necessária e útil para o processo de validação da interpretação.

Isolados pela língua inglesa, e possivelmente pela arrogância intelectual, os americanos não perceberam que por volta de 1975 os analistas europeus estavam debatendo animadamente a questão da validade da interpretação. O tema seria em breve o tópico central de um simpósio organizado em 1976 pelo psicanalista francês René Major, do qual participaram conferencistas como Piera Aulagnier, Claude le Guen, Serge Viderman, Pierre Fédida e François Perrier. Em 1977, suas comunicações foram coletadas num livro editado por Major e intitulado Comment l’interprétation vient au psychanalyste. [17] Os autores deixaram bem claro que o resultado e a validade da interpretação não podiam ser julgados com um simples “sim” ou “não”, e que ninguém poderia determinar se uma interpretação estava completamente correta.

A dissertação do estudante argumentava que o mesmo era verdadeiro para interações observadas entre adolescentes internados em residências-abrigo e a equipe de paraprofissionais. Formulava-se uma interpretação sobre o sentido do comportamento dos paraprofissionais, mas ficava claro que outras poderiam ser oferecidas. A situação não era nova. A maior parte do Talmud foi escrita sem pontuação, de modo que os estudiosos podem começar a leitura em qualquer parte do texto – o que, é claro, muda o seu significado. Este texto ambíguo gerou, surpreendentemente, poucas seitas judaicas, o que pode ser explicado pelo método usado para discernir o significado: primeiro, o texto em questão tinha que prover uma base para a interpretação; depois, o rabino discutia sua interpretação com um grupo de estudiosos, visando a uma integração. [18]

Da mesma forma, a validade da interpretação de uma interação não poderia ser estabelecida pelo acúmulo de casos idênticos, um após o outro. A repetição poderia criar a impressão de que a análise do autor dava conta de todos os fatores envolvidos, mas a apresentação de muitos casos analisados de modo idêntico não poderia estabelecer a validade da interpretação para nenhum deles. [19]

Em psicopatologia, o terapeuta deve consultar sua teoria – que funciona de forma análoga ao grupo de estudiosos do Talmud – e então retornar à outra fonte, o paciente, em busca da consistência interna. A interpretação não pode se desviar para longe da percepção do paciente, apesar de não ser necessário limitar-se ao que cada membro do par tinha pensado: pode rever percepções da história, podem-se descobrir motivações escondidas, sadismo onde só se via masoquismo, ira onde só se falava de medo etc. Como um círculo de talmudistas, o estudo do caso isolado convida a interpretações alternativas, ao diálogo e a tentativas de consenso.

Apesar de o método parecer similar, porém, o terapeuta tem um objetivo diferente do estudioso talmúdico. [20] Enquanto este busca compreender melhor o verdadeiro significado do texto, o terapeuta julga sua interpretação não pela sua exatidão, mas pelo seu efeito. O objetivo de uma interpretação é sempre revelar o inesperado, o indizível, aspectos desconhecidos dos processos psíquicos de alguém. [21] Na busca deste objetivo, disse Viderman, “uma interpretação inexata nem sempre é ineficiente”. [22] Em contraposição, o pesquisador que interpreta uma interação não tem qualquer efeito sobre o “paciente”. Tal como o estudioso do Talmud, ele tenta encontrar a “melhor” explicação, isto é, a mais ampla e convincente possível.

Quanto a chegar a um consenso, a dissertação afirmava:

“Isto levanta a questão da confiabilidade. [23] Enquanto os clínicos podem aprender a concordar de forma confiável acerca de interpretações, eu não estou procurando escapar ao julgamento do leitor citando especialistas cujas opiniões o convenceriam de que o escritor está certo. Se o leitor não ficar convencido pelas evidências, tentar medir a tendência do terapeuta ou do autor a concordar com o julgamento de outros clínicos poderia sugerir que o intérprete é um especialista – mas confiabilidade não é o mesmo que precisão ou completude. (De fato, em algumas situações, a História nos mostra que podemos confiar em que os homens cometem e cometerão os mesmos erros estúpidos. [24]). Medidas de confiabilidade, apesar de necessárias em alguns tipos de pesquisa, não garantem que a interpretação será perfeita, mas isso não impossibilita o leitor de ter uma idéia melhor. Portanto, em vez de acatar o decidido por um painel de especialistas, o leitor de um estudo de caso é solicitado a julgar uma interpretação segundo sua consistência em relação aos dados, segundo sua plausibilidade e segundo sua economia.”

Uma interação mutativa

A dissertação continha vinte e poucas interações entre o adolescente e o paraprofissional, mas somente uma delas será discutida aqui. Trata-se de David, um delinqüente de treze anos que morava com um casal num lar provisório, juntamente com o filho deles de um ano e outros cinco irmãos “adotivos”. A interação em questão aconteceu no quarto de David, que estava de cama com uma infecção de garganta. O “pai provisório”, Tom, entrou e viu que ele tinha deixado de tomar os remédios.

“Esqueceu de tomar seu remédio?”

“Necas. Não preciso deles: estou me sentindo melhor.”

“Não é assim que os antibióticos funcionam. Eles combatem os germes, e você se sente melhor, mas leva uma semana ou dez dias para todos morrerem. Se você parar antes da hora, a infecção volta.”

Tom pega um copo d’água, mas David se recusa a tomar o remédio: “Não vou tomar, cara.”

“Você sabe que eu sempre digo que é você quem decide. Mas desta vez, você está tomando uma decisão que vai fazer mal à sua saúde, e talvez à de outras pessoas nesta casa.” David não se move. Então Tom fala mais alto: “Se você continuar se recusando a tomar o remédio, vou subir aqui de hora em hora, noite e dia.” David ainda não se movia. “E então vou subir de meia em meia hora, e depois o dia todo. Então, a decisão é sua. Pense nisso!”

“Você é doido, cara!”, diz David, “me dá a droga do remédio!”

Depois que Tom sai, o colega de quarto de David vê que ele está quase chorando e pergunta: “Qual é, cara?”. Quando David não responde, ele acha que o colega está chateado porque gritaram com ele. “Ei, não deixe ele te aborrecer!”

“Não é nada disso”, retruca David. “Esta é a primeira vez que eu sinto que Tom realmente se importa comigo. Até agora eu achava que ele só estava fazendo o trabalho dele.”

O “paciente”, David, relatou sentir que alguém se importava com ele. Por outro lado, quando entrevistado, Tom, o paraprofissional, expressou preocupação. Ele raramente gritava com as crianças, e raramente tentava coagi-las a obedecer. Entretanto, nessa situação não queria que David sofresse as conseqüências de uma má decisão em relação à sua saúde. Por isso afastou-se da sua conduta normal, se tornou autoritário, pareceu zangado e saiu sentindo-se preocupado: teria estragado sua relação com o menino?

David era filho de um pai alcoólatra que nunca lhe dera muita atenção – tão pouca, na verdade, que ele faltou à quarta série quase inteira e a toda a quinta sem que o pai reparasse nas faltas. Matava aula, ficava com amigos, e por fim ficou tão entediado e frustrado que junto com alguns amigos passou a destruir o interior de casas abandonadas na vizinhança, o que chamou a atenção da polícia e resultou em sua colocação num lar provisório.

Antes da interação a respeito de tomar os antibióticos, David não tinha reagido bem ao lar provisório. Quando os pais adotivos tentavam evitar disputas de poder, enfatizando a autonomia dos garotos para tomar decisões, David os via como negligentes, iguais ao seu pai bêbado. Continuou a tomar decisões erradas e a sofrer as conseqüências por parte dos seus pais adotivos, mas conseqüências não importavam para ele. Como explicou numa entrevista posterior, não se sentia “cuidado” até alguém intervir fortemente e “me obrigar a fazer a coisa certa.”

Isso foi importante para David, que estava de cama recuperando-se de uma garganta inflamada. Ele tinha vindo para o lar provisório como alguém que não era importante o suficiente para ser cuidado – certamente não tão importante quanto a bebida do pai. Disse que os gritos de Tom significavam que “ele se importava”. Também é possível inferir que o fato de Tom ter se desviado do modo como sempre trabalhava significava para David que ele era mais importante para Tom que o trabalho deste. Poder-se-ia propor a interpretação de que essa interação impeliu David a rever sua identidade.

Eventos subseqüentes apoiariam essa interpretação. Por muitos anos depois de sua recuperação, David aceitou o que Tom estava tentando ensinar-lhe. Em vez de matar aula, esforçou-se para corrigir as deficiências acumuladas por anos de vagabundagem. Então o delinqüente David recebeu uma grande recompensa por ceder aos pais adotivos: em vez de matriculá-lo numa escola secundária acima de suas capacidades, Tom e sua mulher o ajudaram a se inscrever numa escola alternativa, na qual poderia estudar matérias acadêmicas de manhã e à tarde se preparar para uma profissão (mecânica automotiva) para a qual tinha enorme habilidade. Durante os anos do segundo grau, Tom e sua mulher deixaram de trabalhar no lar provisório, mas levaram David com eles. Ele se formou no segundo grau, tornou-se mecânico e permaneceu como parte da família por vários anos.

Segundo a interpretação do estudante de Psi­cologia, tudo isso aconteceu por causa de uma interação que ajudou a convencer David de que seu pai adotivo se preocupava com ele. Outras interpretações são possíveis? De acordo com Ricoeur, sim – e são bem-vindas.

A dissertação foi escrita, aceita e publicada, e o estudante seguiu em sua carreira. O Dr. Rosenwald continuou a atrair estudantes e a incentivá-los a prosseguir trabalhando sobre os problemas da pesquisa qualitativa; no terreno filosófico, Ricoeur também lançou sementes para mais um estágio nas pesquisas de Rosenwald. [25] Ele percebeu que o sentimento de identidade não é um fato, mas uma construção: resulta da história que uma pessoa conta para si mesma, em interação com outras, e é influenciada por histórias contadas por e sobre outras pessoas com quem interagiu. Uma pessoa tem alguma influência nas suas interações, e até esse ponto pode modificar quem é. Em qualquer história, a identidade do personagem – mesmo a sua própria, em sua história pessoal – é aberta a alterações, tanto dentro como fora do tratamento, da mesma forma como é criada: pelo diálogo.

Tudo isso está muito bem, e mostra que este é um uso logicamente justificado da hermenêutica para a clínica. Mas será que a teoria psicanalítica e psicodinâmica deve se satisfazer com o estatuto lógico da história, da arte e da jurisprudência? Até o proponente desse argumento, Ricoeur, afirma que a interpretação que Freud oferece para os sonhos e sintomas se baseia numa teoria. Tal teoria psicodinâmica de fundo sugere que essas forças não são criadas pelos homens da mesma forma como são produzidas a arte e a história, mas o oposto é que é verdadeiro. Um teórico da psicodinâmica argumentaria que as forças que operam na personalidade brotam do cérebro humano, e que a assimilação da informação social por este último cria o humano, e não vice-versa. Por fim, é possível questionar a crítica segundo a qual teorias psicodinâmicas (que trabalham com significados impossíveis de ser integralmente expressos) “não podem ser testadas”. Pode-se argumentar que podem ser testadas, mas por enquanto somente através do diálogo.

Talvez chegue o dia em que o valor emocional de eventos e lembranças poderá ser determinado de forma direta por técnicas neurológicas. Enquanto esse dia não chega, temos de recorrer a palavras que nos digam o seu significado. Por esse motivo, a pesquisa qualitativa – que usa palavras e as interpreta – é o único modo de testar uma teoria da personalidade baseada não em eventos neuroquímicos, mas na interpretação deles pela pessoa que os experiencia. Se a interpretação contradiz a teoria, esta deve ser questionada. Da mesma forma, se de acordo com a teoria uma interação for boa, mas na prática se mostrar ineficaz, a teoria pode ser considerada insuficiente, e deve ser revisada, o que também é verdadeiro para o processo científico. Concluindo, cabe afirmar que seria logicamente correto avaliar a teoria psicodinâmica confrontando-a com a interpretação dos eventos.

Vivemos num grande e lento mundo de homens, ao qual filósofos e escritores gostam de aplicar princípios da física tais como incerteza e relatividade. Apesar de a vida humana não ser incerta no sentido de Heisenberg, existe uma relação de analogia entre o pequeno mundo da personalidade individual e o grande mundo da dinâmica da personalidade humana. Como Heisenberg apontou, se tentarmos olhar para um objeto bem pequeno, o processo de diminuir-lhe a velocidade e bombardeá-lo com luz o alterará. Na melhor das hipóteses, conseguiremos uma imagem embaçada, que nos dirá vagamente o que a partícula realmente é. Por outro lado, pedir a um objeto grande (como uma pessoa) que fique parado e diga “xis” dá uma boa fotografia.

Da mesma forma, tentar entender a personalidade de um indivíduo no nível do significado – isto é, entender quais forças estão operando para criar um sintoma, um sonho, um sentimento, um suspiro – por meio de experimentos com uma grande população de sujeitos resultaria num retrato grosseiro e embaçado daquela pessoa. Em vez disso, o analista chega à interpretação por um experimento interno, que é realmente um diálogo entre ele, o paciente e a teoria na qual se apóia.

Voltando ao caso de David, que nos serve de exemplo, descobrimos que ele ficou com a família por vários anos; depois foi para a Marinha, passou anos bebendo muito com outros marinheiros, e voltou alcoólatra como o pai. Duas coisas convenceram David de que seu pai adotivo, no fim das contas, não gostava realmente dele.

Primeiro, Tom e sua mulher se divorciaram, e ele deixou a família, criando uma situação que David percebeu como uma rejeição. Segundo, quando o rapaz chegou bêbado para uma reunião num feriado, Tom disse-lhe o que havia dito à sua própria mãe alcoólatra: “não ficarei perto de você se estiver bebendo”.

David saiu da festa e nunca mais voltou à casa de Tom. Por muitos anos eles não se falaram, até que David se casou e se tornou pai. Quando mais tarde ele e Tom se encontraram e conversaram, David explicou que recentemente tinha reconhecido seu pai em si próprio, e pôde ver que se fosse um bêbado como o pai não poderia ensinar seu filho, treinar o time dele na escola, e mantê-lo seguro. Parou de beber e reinterpretou a rejeição de Tom naquele feriado como “me dizendo o que era a coisa certa a fazer”. Após essa reinterpretação dos eventos, puderam retomar seu relacionamento.

A pesquisa idiográfica como forma de testar teorias psicodinâmicas

Esses eventos posteriores apóiam a interpretação da interação em que Tom insistiu com David para que tomasse o remédio. Essa consistência através do tempo, por sua vez, apóia a teoria de que o comportamento rebelde, e mesmo a adicção, podem representar uma busca – ignorada pela mente consciente – por amor e proteção. Tanto a teoria como a interpretação têm fundamento. Parece razoável que o estudo de um indivíduo possa ajudar a entendê-lo, mas será que o estudo de um único caso realmente é a melhor maneira de testar uma teoria psicodinâmica?

Quanto menos se sabe, maior é a necessidade de teoria. Agora que os químicos podem observar as moléculas movendo-se para dentro e para fora das células através de aberturas que evoluíram para o formato exato, precisam de menos teoria sobre por que algumas podem entrar e outras não. Mas o psicólogo não pode observar as formas e estruturas da personalidade: precisa teorizar. Como a personalidade permanece oculta atrás de um véu de história pessoal em sua maior parte desconhecida, a verdade não pode ser completa e exaustivamente estabelecida. Em pessoas, significados são mais bem revelados por palavras. A troca de palavras torna-se a melhor maneira de afetar a personalidade de forma positiva, e palavras estão sujeitas à interpretação. Uma interpretação melhor pode aparecer durante um tratamento, e geralmente aparece.

Hoje, grandes grupos de conexões neurais podem ser estudados pela ressonância magnética. Se o cérebro sob exame for normal, suas conexões neurais serão semelhantes às da maioria das pessoas; as substâncias químicas funcionarão da mesma forma, e pode-se descobrir como o cérebro funciona – quase todos os cérebros. Se quisermos entender o processo físico por trás da “doença” mental, a questão é a mesma: todos os cérebros são um pouco diferentes, mas os processos que interessam são físicos e químicos, e podem ser explicados por um conjunto de princípios químicos.

Contudo, as doenças mentais têm um elemento subjetivo, e freqüentemente o subjetivo é a causa delas. As personalidades não ficam visíveis com a mri (imagem por ressonância magnética); ela não faz brilhar os significados. É preciso inferi-las. As teorias da mente foram criadas conectando significados e comportamentos, sejam estes atos ou palavras.

Não se podem usar esquemas de pesquisa nomotética para compreender “em geral” como os significados operam na personalidade, a não ser que se entendam os significados atribuídos por cada indivíduo estudado. Para complicar as coisas, Carvalho apontou que os efeitos de uma interpretação são imprevisíveis: por exemplo, o efeito de alguém ter gritado com David quando estava com a garganta inflamada aos catorze anos não seria o mesmo se isso ocorresse em outra ocasião de sua vida. [26]

Ignorando este problema e buscando um modelo de pesquisa nomotética, poder-se-ia propor a hipótese de que “o comportamento rebelde, e até adicção, podem significar uma busca, desconhecida para o consciente, por amor e proteção”. Seria selecionado um grupo muito grande de adolescentes que exibem “comportamento rebelde, e até adicção”; mas como se pode saber se estão realmente buscando “amor e proteção”? Poderíamos perguntar a eles; mas se David tivesse sido questionado, possivelmente negaria seus sentimentos e diria: “não”. Somente uma vez ele admitiu suas carências. O pesquisador teria de conhecê-lo o suficiente para inferir acuradamente do seu comportamento que na verdade ele almejava “ser cuidado”. Da mesma forma, o pesquisador teria de conhecer bem todos os indivíduos no grupo experimental e no grupo de controle. O tamanho da amostra teria de ser grande o suficiente para produzir uma diferença estatisticamente significante.

Talvez a manipulação experimental envolvesse um paraprofissional gritando com eles. O que ele faria? Imporia uma tarefa sem valor para os adolescentes, ou alguma coisa relacionada à saúde, por exemplo, tomar remédio? Seria o gritalhão um estranho, ou alguém em quem o adolescente buscasse cuidados emocionais? Sem perguntar a eles, como o pesquisador saberia que sentimentos esses adolescentes tinham em relação aos adultos?

Se os adolescentes cedessem num grau significantemente maior do que o grupo de controle, como o pesquisador ficaria sabendo (sem perguntar) se isso teria a ver com as suas necessidades de atenção? Talvez adolescentes que queiram ser amados simplesmente fiquem mais amedrontados diante de adultos autoritários. É claro que o pesquisador poderia chegar a conhecer todos eles o suficiente para fazer esses julgamentos. Para estabelecer a confiabilidade das suas conclusões, ele poderia treinar outros para chegar a conclusões similares, e demonstrar essa confiabilidade por inter-avaliação.

Por outro lado, se os adolescentes carentes de apoio emocional como David não cedessem mais do que os não-carentes de tal apoio, o que ficaria provado? Que dar atenção para os carentes não aumenta sua obediência, ou simplesmente que o adolescente carente não se sentiu cuidado?

Ao final do experimento, o que teria sido feito seria um grande número de estudos de casos individuais. Assim, se quisermos entender a dinâmica da personalidade, não há como substituir o entendimento do significado, o que requer certo grau de diálogo.

Um último problema precisa ser discutido: quando a “interpretação suficiente” é suficiente? [27] Ninguém tem a audácia de pontuar o Talmud, e nenhuma interpretação é considerada como a última palavra. Sempre há lugar para mais uma. Assim como não se deixou de continuar encontrando novos níveis de significado na grande literatura, não há um último nível em que uma pessoa possa ser entendida. Com o desenrolar dos acontecimentos na vida de um paciente, novas informações demandam novas interpretações. Esse processo poderia continuar até a morte, mas geralmente não continua. Ele prossegue até o paciente estar bem o suficiente – não perfeito, talvez nem mesmo completamente bem, mas bem o suficiente.

Num livro infantil sobre psicoterapia, o médico, que era um elefante roxo, finalmente diz à família que podiam parar de vir à terapia.

“Mas ainda temos problemas”, eles insistiam.

“Vocês estão bem o suficiente”, disse o elefante.

Quando o paciente está bem o suficiente, ele pára de vir – e o analista pára de interpretar.


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