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AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
34
Fragilidades. Da clínica à literatura
ano XVIII - 1° semestre 2005
167 páginas
capa: Ana Carolina de Oliveira
  
 

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Resumo
O artigo retoma as discussões que, a propósito da regularização das psicoterapias pelo parlamento francês, mobilizaram direta ou indiretamente as comunidades profissionais.


Autor(es)
Fernando Aguiar
é doutor em Filosofia e professor no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Notas

1. D. Col. & P. Conrath, “L’amendement Accoyer. Un électrochoc pour les psycothérapies”, Le Journal des Psychologues, n 214, 2003/2004, p. 6.

2. D. Col. & P. Conrath, op. cit., p. 7.

3. D. Col. & P. Conrath, op. cit, p. 9.

4. Cf. N. Sébastien, “Légiférer sur les psychothérapies? Pas des psys au rabais”, Association française des psychologues cliniciens (AFPC), 2004 (http:// www.psychologues-cliniciens.org).

5. S. Leclaire (org.), État des lieux de la psychanalyse, Paris, Albin Michel, 1991

6. J. Sédat, “La psychanalyse et l’état. Les inscriptions sociales du psychanalyste”, Journal français de psychiatrie, n 12, 2000 (http://www.etatsgenerauxpsychanalyse. net/archives/texte237.html).

7. E. Roudinesco, Jacques Lacan. Esquisse d’une vie, histoire d’un système de pensée, Paris, Fayard, 1993, p. 555.

8. J. Sédat, op.cit.

9. E. Favereau, “Tous les psys en pleine cure de loi”, Libération, 25/10/2003.

10. D. Silvestre, “Réglementer la psychanalyse?”, Link, no 10 (Qu’est-ce qu’une psychanalyse lacanienne?), s. d. (http://www.champ-lacanien.org/fr/archives/ lk10/L10DSilvestre.PDF).

11. J. Clavreul, “Os psicanalistas gostam de ordem”, Estados Gerais da Psicanálise, 2000 (http://www. estadosgerais.org/gruposvirtuais/gostam_de_ ordem.shtml).

12. E. Favereau, “Divisions du côté des analystes”, Libération, 25/10/2003.

13. C. Bert, “Un status pour les psychothérapeutes?”, Sciences Humaines, no 145, 2004, p. 6.

14. Cf. E. Favereau, op. cit.

15. J.-A. Miller, “Avis au public”, Bulletin spécial Accoyer, no 2, Agence lacanienne de Presse, 20/11/ 2003, (http://www.forumpsy.org/Resource/ ALP2_2.html).

16. Cf. E. Favereau, op. cit.

17. Cf. E. Favereau, op. cit.

18. J.-A. Miller, Avis au public, op. cit.

19. E. Roudinesco, “Les faux-semblants de l’amendement Accoyer”, Le Monde, 24/11/2003.

20. Cf. E. Favereau, “Divisions du côté des analystes”, op. cit.

21. Apud D. Col & P. Conrath, op. cit., p. 10.

22. D. Silvestre, op. cit.

23. “A França permanece [...] o único país no mundo onde foram reunidas, num período de cem anos, todas as condições necessárias para uma implantação maciça da psicanálise em todos os setores da vida cultural, tanto pela via intelectual, como pela via médica, e, a esse respeito, o lacanismo é o sintoma dessa exceção à medida que ele se construiu em plena consciência como uma subversão, uma transgressão e, portanto, como o herdeiro de um ideal de constestação da ordem estabelecida, nascida da Revolução francesa por um lado, da luta dreyfusista por outro.” (Roudinesco, Jacques Lacan. Esquisse d’une vie, histoire d’un système de pensée, op.cit., p. 556).

24. Ch. Melman, “Remarques amicales au Docteur Accoyer”, (ALI), 05/12/2003 (http://www.freudlacan. com/articles/article.php?url_article= cmelman051203).

25. “1978 é a esse respeito um ano juridicamente importante para a psicanálise. Em primeiro lugar, o tribunal correcional de Nanterre reconhece, por um julgamento de 9 de fevereiro de 1978, no caso ‘Auscher dit Dienal’, que a psicanálise é uma atividade profissional à part entière, isto é, independente pela especificidade de seu método e de seu objeto. Isso feito, o juiz penal, efetuando na circunstância uma reversão na jurisprudência, não assimila mais a psicanálise à medicina. Portanto, ele não mais considera o exercício da psicanálise pelos não-médicos como sujeito às penas previstas no artigo 372 do Código Penal pelo exercício ilegal da medicina” (S. Leclaire, op. cit., p. 246) .

26. S. Freud, “La question de l’analyse profane”, in OEuvres complètes, v. XIX., Paris, PUF, 1994.

27. B.-H. Lévy, apud B. Delatre, “La psychanalyse française en ‘danger de mort?’ Mobilisation”, La Libre Belgique, 10/11/janeiro/2004.

28. Cf. A. Ohayon, L’impossible rencontre. Psychologie et psychanalyse en France (1919-1969), Paris, La Découverte, 1999.

29. Cf. D. Anzieu, “La psychanalyse au service de la psychologie”, Nouvelle Revue de Psychanalyse, no 20, 1979, p. 59-75.

30. W. Huber, L’homme psychopathologique et la psychologie et psychologie clinique, Paris, PUF, 1993, p. 11.

31. A. Ohayon, op. cit., p. 416-417.

32. Para Roudinesco, a partir de 1965 cresceria enormemente o número de antigos estudantes em psicologia na totalidade dos grupos freudianos de todas as tendências: “Essa terá sido o último avatar – o mais feroz – da grande luta engajada por Freud em favor da Laienanalyse: o triunfo da psicologia sobre a medicina” (E. Roudinesco, Jacques Lacan. Esquisse d’une vie, histoire d’un système de pensée, op.cit., p. 384).

33. G. Haddad, Le jour où Lacan m’a adopté, Paris, Grasset, 2002, p. 325.

34. R. Major, “La psychanalyse est-elle sécurisable?”, Magazine Littéraire, n 428, 2004, p. 32-33.

35. S. Freud, “Nouvelle suite des leçons d’introduction à la psychanalyse”, in OEuvres complètes, v. XIX, Paris, PUF, 1995, p. 236.



Abstract
As this issue begins to be discussed in Brazil, Mr. Aguiar brings to the fore the discussions that mobilized the professional communities involved with the practice of psychotherapy. The French Parliament passed recently a law that affected psychologists, psychiatrists, psychoanalysts and psychotherapists; the paper presents its basic tenets and the reactions and critiques that it provoked.

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 TEXTO

Regulamentação das psicoterapias:

o precedente francês


Regulating psychotherapies:
the French precedent
Fernando Aguiar


Il se présente cependant quelques complications dont la loi ne se soucie pas, mais qui, par là même, réclament d’être prises en considération. Il s’avérera peut-être que, dans ce cas, les malades ne sont pas comme d’autres malades, que les profanes ne sont pas à proprement parler des profanes, et que les médecins ne sont pas exactement ce qu’on pourrait attendre des médecins et ce sur quoi ils pourraient fonder leurs prétentions. Si cela peut être prouvé, on sera fondé à exiger de ne pas appliquer la loi au cas présent sans modification” S. FREUD, “La question de l’analyse profane”, in: OEuvres complètes, v. XIX, Paris, PUF, 1994, p. 6.

Ce que les institutions psychanalytiques ont à repenser, dans leur charte même, dans leur mode de fonctionnement sociopolitique, c’est d’abord le rapport à l’État. Dans chaque pays, les institutions se définissent par rapport à l’État – en France, en particulier” J. DERRIDA, in Derrida, J. & E. Roudinesco, De quoi demain… Dialogue. Paris, Flamarion., 2001, p. 297.


Em 14 de outubro de 2003, a Assembléia Nacional francesa aprovou sem debate a chamada “emenda [amendement] Accoyer”. Apresentada pelo deputado de mesmo nome e uma semana antes adotada por unanimidade pela “Comission des affaires sociales” – como parte do artigo 18 do projeto de lei Mattéi relativa à política de saúde pública –, a emenda dispunha que as diferentes categorias de psicoterapia (um “instrumento terapêutico”) fossem fixadas por decreto do ministro da Saúde e exercidas por médicos psiquiatras ou médicos e psicólogos com as qualificações requeridas e estabelecidas pelo mesmo decreto. Para os profissionais não titulares dessas qualificações, e em atividade depois de cinco anos, previa-se uma avaliação de seus conhecimentos e práticas por um júri, cujas composição, atribuições e modalidades de funcionamento seriam fixadas em conjunto pelos ministros encarregados da Saúde e do Ensino Superior.

A emenda ainda rejeitava a idéia de uma profissão de psicoterapeuta, como propunha o projeto de Mme Gilot, de 2001, e mesmo a proposição de lei do próprio deputado, de 1999, que, visando ser parte integrante do código da saúde pública, reservava o uso do título de psicoterapeuta aos psiquiatras e psicólogos. Mas a busca de uma normatização das práticas psicoterapêuticas é ainda anterior: “Por volta de 1994, a Association française de normalisation (AFNOR) já havia sido interpelada pela Fédération française de psychothérapie (FFdP) no sentido de codificar as psicoterapias” [1]. Concretizada em 1994, por meio de um encontro que reunia “os pontos de vistas de diferentes atores”, a démarche resultou em duas conclusões: a necessidade de elaborar trabalhos referentes à profissão de psicoterapeuta e de informar ao “consumidor” sobre o lugar da psicoterapia fora do campo médico.

Na mesma época, questões de fundo foram colocadas pela Fédération française de psychiatrie (FFP): de que se trata quando falamos das psicoterapias? Quem tem o direito de se dizer psicoterapeuta? Há necessidade de um estatuto? As psicoterapias devem ser reembolsadas? Como fica o caso particular representado pela psicanálise?

Abortada, a proposição de 1999 do deputado Accoyer e de 80 de seus colegas prosseguiu na forma de um colóquio nacional em 2000, do qual participou certo número de especialistas e cujas reflexões resultariam na emenda finalmente aprovada em 2003. “Ponto importante: a noção de ‘título de psicoterapeuta’ é abandonada”. Antes disso, em 2001, essa noção fora ainda retomada em 2000 pelos deputados Verdes, cuja proposição suscitou reações violentas, em particular do Syndicat national des psychologues (SNP), que denunciou “o lobbing virulento praticado por profissionais duvidosos”. Já em reação à proposição de 1999, o sindicato havia precisado que a dimensão psicoterapêutica dos psicólogos tinha sido inscrita na circular de 1985, mas que, além disso, “os psicólogos não são uma profissão de saúde no sentido legal do termo”. Desde então, “o mundo dos psy, inclusive dos psicólogos, começa a se agitar e a se inquietar” [2] – agitação que chega ao auge com a aprovação da emenda Accoyer, em 2003.

Das posições dos profissionais atingidos pela emenda Accoye
r

Diversas foram as reações dos profissionais implicados, em certos casos, mesmo no interior de cada categoria. Os psiquiatras de um modo geral sustentaram a posição (favorável) da Association française de psychiatrie (AFP), presidida por C. Vasseur, também psicanalista, que assessorou o deputado Accoyer em sua iniciativa. Considerando a necessidade de um enquadramento da prática da psicoterapia e da formação que a subtende, reivindicaram o retorno da psicopatologia clínica como pré-requisito de toda formação em psicoterapia e da psiquiatria humanista. Avaliaram que a psicoterapia é um tratamento entre outros, e que eles são os únicos a poder controlá-la e a prescrevê-la, ainda que não tenham uma formação nesse domínio. A posição da AFP, de apoio sem restrição à emenda, constituiu-se de toda maneira numa raridade entre as instituições: mesmo o Syndicat national des psychiatres privés (SNPP) solicitou uma revisão do texto, sublinhando ainda o lugar particular ocupado pela psicanálise – “que não é uma psicoterapia, ainda que ela possa produzir efeitos terapêuticos” – como referência incontornável na prática psiquiátrica, “até mesmo em outras abordagens psicoterapêuticas” [3].

Entre os psicólogos, a Association française des psychologues cliniciens (AFPC) foi uma das raras associações que se manifestou abertamente pela retirada da emenda Accoyer – de resto, um procedimento impossível, haja vista a unanimidade da votação –, além de se colocar contra toda legislação sobre o “sofrimento psíquico” que não passasse por um prévio trabalho de reflexão e confronto [4]. As outras associações – Fédération Française des psychologues et de psychologie (FFPP) e Société française de psychologie (SFP) – sustentaram posições bem mais moderadas. Ainda que com reservas sobre a aplicação do decreto, colocaram-se em acordo quanto à proteção dos usuários avançada pela emenda. Aderindo ao objetivo de confiar aos psiquiatras e psicólogos o tratamento do sofrimento psíquico, mas temerosos de se verem limitados em sua liberdade de prescrição, os psicólogos reivindicaram uma emenda que os preservassem de uma subordinação ao poder médico. Estimaram que a psicoterapia é uma especialização da psicologia, a ser realizada fora do curso universitário. Sobretudo, causou- lhes inquietação o fato de que as pessoas que solicitam um tratamento psicoterápico deverão antes submeter-se a uma avaliação de médicos que, em seguida, indicarão uma psicoterapia de sua escolha.

Os outros profissionais mencionados – uma parcela importante dos psicoterapeutas em exercício, representados pelas Fédération française de psychothérapie (FFdP), European Association for Psychotherapy (EAP) e Association fédérative française des organisations de psychothérapie (AFFOP) –, ainda que contentes com a possibilidade de “enquadramento”, demandaram não a retirada pura e simples do projeto de regulamentação das psicoterapias, mas uma emenda “substitutiva” que reconhecesse a profissão de psicoterapeuta. Sustentaram a diversidade dos métodos de psicoterapia e a livre escolha dos usuários. Diretamente visados, lastimaram as dificuldades a serem enfrentadas por ao menos metade de seus profissionais atingidos pela emenda, e as conseqüências disso decorrentes para os usuários, cuja demanda de escuta, de acompanhamento e de cuidado permaneceria sem resposta.

Entre os psicanalistas, categoria “profissional” não mencionada no texto, as reações foram matizadas, às vezes reproduzindo as divergências habituais ditadas pelas respectivas associações. De modo geral, pediram a retirada da emenda (ou sua modificação, depois de um amplo debate envolvendo todas as partes), sustentando que quaisquer eventuais disposições regulamentares suscetíveis de modificar seu estatuto atual – até o presente, o de uma “profissão” não regulamentada – poria em risco uma especificidade historicamente conquistada. Isto é, décadas de desenvolvimento e de prática que conduziram a profissão a uma auto-regulamentação sem a intervenção do Estado, na qual cada corrente ou escola do campo psicanalítico instaurou regras precisas de formação, de prática, de deontologia e de controle por profissionais mais antigos e competentes.

Agora, ante um inimigo externo comum, abriu-se a possibilidade de que a discussão de questões ligadas à transmissão, à formação, à “análise leiga” e à própria condução da análise – de fato na origem de todas as rupturas, remotas ou recentes, e do grande número de associações e de instituições existentes hoje em dia – resultasse na reafirmação de princípios comuns, mesmo levando em conta afinidades particulares e divergências teóricas pontuais. Dito de outra maneira, tornou-se crucial a necessidade de explicitar sem ambigüidade para o público leigo o que diferencia a psicanálise do vasto domínio das psicoterapias, ao mesmo tempo que sustentava o corpo doutrinário que lhe permanece fundador, bem como a fecundidade do método freudiano.

Nos meios de comunicação, em particular na mídia eletrônica, o acontecimento propiciou entre as partes direta ou indiretamente implicadas uma discussão de grandes proporções, não fosse essa uma característica nacional. Contudo, para além das fronteiras francesas, mesmo européias, resta o óbvio interesse de acompanhar com atenção seus desdobramentos, resgatar sua história, que remonta a pelo menos duas décadas, e dela retirar subsídios que, guardadas as especificidades de cada país, possam ser úteis às nossas próprias e hodiernas discussões. (Como se sabe, no Congresso brasileiro há um projeto de lei de regulamentação da profissão de psicanalista, proposto pelo deputado Éber Silva.)

Um pouco de história do lado dos psicanalistas...

Do lado da psicanálise, conforme o relato de J. Sédat, tudo começa em 1983 quando, aplicando as normas européias de regulamentação da T.V.A. (Taxe à la valeur ajoutée), uma instrução da “Direction générale des Impôts” (a D.G.I.) liberou da T.V.A. “todos os analistas” em atividades de cuidados e tratamento das pessoas e possuidores de um diploma de psicologia do tipo D.E.S.S (Diplôme d’études spéciales supérieurs). Contra a decisão, a Association freudienne de psychanalyse (AFP) e um grupo de analistas entraram com recurso no “Conseil d’État”, sob a alegação de que se tratava de abuso de poder, por ser uma diretiva proveniente de um Ministério e não de uma decisão votada pelo Parlamento.

Argumento aceito, a solução tomada muitos anos depois (em 1993), foi a seguinte: psicólogos, psicanalistas e psicoterapeutas titulares de um dos diplomas requeridos na data de sua promulgação, e passíveis de ser recrutados na função pública, foram liberados da T.V.A. Disso resultaram sempre conforme Sédat, diferentes categorias de psicanalistas e dependentes de direitos diversos: os psiquiatras que exercem a psicanálise sob “clandestinidade psiquiátrica”, os psicólogos titulares de um D.E.S.S., que exercem a psicanálise sob “clandestinidade psicológica”, e a lista dos 215 analistas que foram liberados da T.V.A. pela “Comissão Gérolami”, mais os analistas sujeitos à T.V.A.

A referida Comissão Gérolami, criada pelo Ministro do Orçamento e pelo Ministro da Saúde, foi constituída por um grupo de analistas na condição de experts, entre os quais S. Leclaire, C. Jeangirard, M. Assabgui, M. Czermak, M. Montrelay, C. Simatos e o próprio Sédat, pertencentes ou tendo pertencido (isso se passou depois da dissolução da École freudienne de Paris) a uma associação psicanalítica. À Comissão foi deixada a tarefa de definir os critérios aceitáveis que permitissem ao Estado reconhecer psicanalistas. Aceitos pela Diretora geral da Saúde da época e pelo M. Gérolami (“Conseiller-maître à la Cour de Comptes”, encarregado das finanças públicas), esses critérios foram os seguintes: formação pessoal (análise pessoal), controles (supervisões), seminários, eventualmente trabalho em instituição, trabalhos escritos psicanalíticos e, claro, última declaração de impostos (já que só é possível pedir isenção de um imposto se ele foi pago anteriormente).

As informações sobre essa Comissão teriam sido comunicadas às diferentes associações e, durante nove meses (entre novembro de 1988 a julho de 1989), analisadas em torno de 500 postulações, das quais 215 aceitas. No fim desse trabalho, a Leclaire e a Sedat, M. Gérolami sugeriu a criação de uma instância permanente que gerisse as interfaces entre, por um lado, os psicanalistas e as associações e, por outro, as instâncias governamentais (Ministério da Saúde, Delegação interministerial das profissões liberais, Ministério das Finanças ou do Orçamento). O nome “instância ordinal” teria sido pronunciado pelo próprio Gérolami.

Em 15 de dezembro de 1989, Leclaire, tendo como co-signatários Ph. Girard, L. Israël, D. Lévy e o próprio Sédat, tomaram assim a iniciativa – mediante um artigo no jornal Le Monde (“L’adresse aux analystes”) e de uma carta enviada a todos os analistas cujos nomes estavam nas listas da Comissão Gérolami – de convocar os colegas franceses no sentido de instituir uma instância ordinal, com “uma organização ainda a inventar”, mas destinada a salvaguardar e manter a especificidade de sua disciplina. Com esse fim, isto é, não de demandar ao Estado a definição da qualidade de psicanalista, mas de se instituir como um interlocutor socioprofissional de um tipo particular [5], foi criada a “Association pour une instance” (APUI) [6].

Para alguns a palavra “ordinal” lembrava Vichy e seus dispositivos, alguns ainda em vigor. Embora situasse com precisão os problemas decorrentes da disseminação que atingia o movimento lacaniano e, indiretamente, o conjunto do freudismo francês, “...esse projeto era ambivalente por causa do emprego do adjetivo ‘ordinal’, que reenviava a ‘ordem’ e, portanto, à Ordem dos médicos: à idéia de uma possível instância legislatória que viria substituir-se à liberdade associativa” [7]. Além disso, causou surpresa a todos, impedindo uma reflexão serena sobre a possibilidade de gerir os assuntos psicanalíticos [8]. Reticências de uns e de outros [9], a proposta não prosperou porque, como quer Silvestre, cada associação preferiu manter obstinadamente sua autonomia, cada qual na certeza de ser a melhor; e organizada em torno de um líder ou de alguns líderes, tiveram pouco interesse em partilhar um poder suposto [10].

Uma das primeiras tarefas da APUI teria sido colocar à disposição de todo psicanalista e do público em geral uma informação completa sobre as práticas, os modos de funcionamento e os usos de um conjunto de profissionais que se reclamam da mesma disciplina. A obra, chamada “État des lieux de la psychanalyse” e lançada em 1991, articulou-se em torno de cinco grandes temas: o quadro e o dispositivo, o curso e a formação, a extensão da psicanálise na sociedade, as relações da psicanálise e do Estado em alguns países, enfim, o estatuto jurídico da psicanálise. Ela teria mostrado ao mesmo tempo a força do movimento e a necessidade de um questionamento permanente dos limites da psicanálise.

Em 2000, a mesma associação apresentou um “Projet pour une charte des psychanalystes”, por ocasião dos “États générales de la psychanalyse”, realizados na Sorbonne, em Paris. O corpo deste documento constituía-se de uma apresentação do método psicanalítico, precedida de uma exposição de motivos (que nos interessa aqui mais particularmente referir). Tratava- se de levar em conta que novos dados sociais e culturais marcaram a evolução do movimento psicanalítico; que desde os anos 1960 aumentou o número de psicanalistas e de associações psicanalíticas, cuja diversidade, se fecunda, poderia colocar em risco a existência de princípios comuns; que, para além dos consultórios privados, os psicanalistas exercem suas atividades, sobretudo, em instituições médicopsicológicas ou médico-sociais – sob o risco da medicalização da psicanálise – e às vezes em estabelecimentos de formação ou de ensino; que, dado o crescimento do número de analistas e a extensão generalizada da psicanálise para além dos consultórios privados, esta prática, assentada na teoria psicanalítica, é muitas vezes inserida no vasto domínio das psicoterapias, cuja regulamentação, incluindo a psicanálise – o que coloca como determinante a questão de sua especificidade bem como de sua transmissão – então principiava nos Estados europeus; que, enfim, definida como uma profissão liberal, a psicanálise é muitas vezes assimilada a uma profissão paramédica não regulamentada, e submetida a regimes fiscais diversos segundo a origem universitária do psicanalista em questão.

Visando expor e tornar público o conjunto dos princípios fundamentais da prática psicanalítica, com os elementos de ética e de deontologia por ela implicados, esta “Charte des psychanalystes” tinha assim como alvos, primeiro, informar aos que se interrogam sobre a situação psicanalítica como lugar de demanda, assim como sobre a especificidade da prática psicanalítica; segundo, possibilitar seu engajamento na afirmação e na defesa da psicanálise e, sobretudo, do método inaugurado e promovido por Freud; enfim, constituir-se como elemento de referência para os psicanalistas, seja para enfrentar as novas e atuais estruturas de funcionamento de sua profissão, seja para capacitá-los a responder a eventuais disposições regulamentares capazes de modificar o estatuto atual da psicanálise.

Como vimos, a proposição de Leclaire sofreu inúmeras contestações e foi motivo de suspeições diversas. “Leclaire, pare de sonhar”, exortou Clavreul, também nos “Estados gerais da psicanálise”, em 2000 [11]. Sabe-se dos conflitos no meio psicanalítico, em que a questão do poder não está ausente, as cisões, as rivalidades mais ou menos importantes; ainda assim, ao longo dos anos as diferentes escolas, em particular as freudianas e as lacanianas, cessaram com os anátemas e passaram a se falar cada vez mais [12]. A emenda Accoyer, atropelando esse processo, teve assim talvez o mérito de desencadear e aprofundar ao longo de três meses um intenso e apaixonado debate entre as partes concernentes, bem como um movimento generalizado de protesto.

A emenda Accoyer, seus desdobramentos e as reações dos psicanalistas

As autoridades francesas entenderam que um “vazio jurídico” possibilitava que pessoas, insuficientemente qualificadas ou mesmo não qualificadas, mas autoproclamando-se “psicoterapeutas”, pudessem causar danos a pacientes (erros de diagnósticos, tratamentos inadequados, etc.) que, “por definição”, são vulneráveis e mais frágeis que outros, e correm o risco de ter suas “patologias agravadas”. Em princípio, o psicoterapeuta pode ser psiquiatra ou psicólogo; na prática, ninguém precisa de diploma para se dizer “psicoterapeuta” – basta afixar uma placa. (segundo o Ministério da Saúde, seriam entre 20.000 e 30.000 os psicoterapeutas na França.)

Se todos se puseram de acordo quanto ao objetivo, o mesmo não se pode dizer quanto aos meios. “O que a emenda propõe é reservar o título de psicoterapeuta aos psiquiatras, médicos e psicólogos. Os adversários dessa limitação estimam que ela será ineficaz quanto à proteção do público, mas que além disso acarretará efeitos perversos” [13] (Bert, 2004, p. 6). Afinal, nenhum médico e nenhum psicólogo que pretendam exercer de maneira eticamente digna a psicoterapia consideraria suficiente sua formação universitária. “Que garantia esperar do diploma?” foi a questão freqüentemente colocada pelos debatedores.

De sua parte, e orgulhoso conforme a reportagem do Libération, o deputado Accoyer conta haver pensado inicialmente na necessidade de um diploma de psicoterapeuta: “Eu evoluí e me pareceu mais judicioso desenhar um enquadramento, com uma formação mínima, e comissões que validassem qualificações” [14]. Suas tratativas começam em 2001, ao tentar associar sua emenda a B. Kouchner, o então ministro da Saúde, que defendia uma lei sobre os direitos dos doentes. Mas o ministro preferiu encaminhar a experts a tarefa de avaliar as diferentes técnicas de psicoterapia. Alguns meses mais tarde, o relatório dos doutores Piel e Roelandt recomendava que o “curso de psicoterapeuta” fosse seriamente enquadrado e validado pela universidade ou escolas de mesmo nível.

Ainda que não implicados diretamente na emenda Accoyer, foram sem dúvida os psicanalistas que primeiro e mais fortemente se manifestaram. J.-A. Miller (2003), diretor do departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, membro da “Causa freudiana” (ECF) e genro de Jacques Lacan, contesta que os 5.000 psicanalistas, os 30.000 psicoterapeutas em exercício ameacem a saúde pública – se o risco existe, ele é mínimo, e o que se quer é provocar pânico. Afinal, o terapeuta em que o paciente depositou confiança foi-lhe certamente recomendado por um de seus próximos, por um médico, por um psicólogo escolar, por um trabalhador social [15]. Na reportagem do jornal Libération, Miller considera que a emenda, mais do que proteger o público, serve a outras causas: visaria, em primeiro lugar, satisfazer às pretensões dos lobbies psicoterapêuticos, e sua impaciência crescente de legitimar os procedimentos do “psybusiness”. Em segundo lugar, pôr um termo à influência dos psicanalistas, que muitos consideram excessiva e nociva a seu projeto de assujeitamento ao suposto “bem comum”. Em terceiro lugar, predeterminar e encurtar os tratamentos em função de diagnósticos iniciais apressados, com as piores conseqüências para os pacientes. Enfim, impor o reino da “avaliação” em todos os níveis da sociedade; em uma palavra, tratarse- ia, a seu ver, da aplicação de uma concepção neomundialista de reforma universal das práticas sociais e governamentais, em voga desde a queda do muro de Berlim [16].

Para Sédat, como vimos fundador com S. Léclaire e outros da APUI e membro do Espace analytique, a emenda não pode ser compreendida senão sob um contexto ligado à ideologia da penúria que hoje prevalece na França. Ela parte da constatação de uma carência de psiquiatras, da necessidade de fechar os hospitais e de ir ao encontro dos usuários. Na falta de psiquiatras, utilizam-se os psicólogos; de quebra, a psiquiatria recupera dessa maneira seu domínio sobre a psicoterapia, como prática meramente auxiliar. A seu ver, todos sairiam perdendo, mesmo os psicanalistas [17]. Miller lembra, por sua vez, que a psicanálise, a psicologia clínica, os psicoterapeutas nada têm a ver com a medicina. Cada vez mais científica e tecnológica, a medicina também emudeceu na mesma proporção, o que explica que, independentemente dela, a psicanálise tenha se desenvolvido em todos os lugares, seguida pelas psicoterapias e pela psicologia clínica. Ele questiona que se queira medicalizar esse campo “por um golpe de força legislativo”, mostrando- se cego e surdo para com o fenômeno “psi”, a seu ver, um fenômeno da civilização [18].

Ainda mais precisa, Roudinesco sustenta que a medicina científica abandonou o domínio da subjetividade, e a psiquiatria a ela integrada – que se ocupou durante dois séculos da loucura e dos “transtornos mentais” (as psicoses) – é hoje caracterizada por uma prática eminentemente psicofármica e voltada para a avaliação de comportamentos. Como resultado verifica-se em todos os lugares a ampliação do grande mercado da ilusão terapêutica: além das seitas (nos Estados Unidos e no Canadá assimiladas às religiões, mas sujeitas, na França, a leis severas), multiplica-se o número de charlatães, esotéricos, curandeiros, homeopatas, iridólogos, magnetizadores, astrólogos, etc., que hoje se encarregam do sofrimento e da miséria dessa sociedade que ela chama, com propriedade, de “depressiva” [19].

Na França, em particular, visouse o enquadramento de técnicas psicoterapêuticas a serviço de algumas seitas. Mas, como denunciam associações – por exemplo, a “Association psychothérapie et Vigilance” –, não apenas contra elas partem denúncias das “vítimas” (ou de membros de suas famílias) de “terapias abusivas e desviantes”. A lei de regulamentação das psicoterapias, como toda lei, tem caráter universal – atingem a todos, até mesmo os psicanalistas.

Para A. Fine, presidente da Société Psychanalytique de Paris (SPP) e, como apresenta a reportagem do Libération (cf. Favereau, 2003b), “freudiano ortodoxo”, a emenda Accoyer não é uma inimiga dos psicanalistas. Primeiro, porque ela evita que estes sejam “colocados no mesmo barco” onde cabe todo tipo de coisa. Segundo, porque essa questão levou ao estabelecimento de contato entre toda uma série de outras escolas. Ainda assim, a seu ver, essa emenda “universaliza” um pouco demais a formação, de tal modo que é preciso cuidar para que as comissões designadas para julgar as experiências de uns e de outros não sejam compostas unicamente de universitários, mas também de membros das sociedades psicanalíticas. Para ele, a SSP nada teria a temer na questão da formação [20].

Em meio à enorme repercussão (jornal, rádio, televisão e net) que se seguiu à aprovação da emenda Accoyer, outras emendas foram ainda apresentadas. No Senado, onde os debates ocorreram em janeiro de 2004, optou-se pela proposta do senador Giraud, que, reservando o uso do título de psicoterapeuta aos profissionais inscritos no registro nacional dos psicólogos, prevê para essa inscrição o registro numa lista (elaborada pelo representante do Estado) no departamento de domicílio profissional. Outra emenda, depositada pelo senador Gouteyron, preconizava a criação de um “Conselho nacional das práticas terapêuticas relativas ao psiquismo”, principalmente com competência em matéria deontológica. Enfim, quatro outras emendas demandaram a retirada pura e simples da proposta Giraud.

O ministro da Saúde, J.-F. Mattéi, depois de se reunir com representantes de numerosas organizações profissionais, declarou contar com o Senado para aperfeiçoar algumas disposições do texto, em particular no que diz respeito ao enquadramento das psicoterapias. Por sua vez, o próprio deputado Accoyer reconheceu que “o debate evidenciou que várias disposições da emenda poderiam ser revistas em um espírito de acordo, abertura e realismo”. Enfim, com a discussão em curso no Senado, o Partido Socialista pediu a retirada desta ou de qualquer outra emenda e expressou o desejo de que antes fosse criada uma “missão de avaliação que permita apreciar a importância efetiva das práticas duvidosas e dos charlatães de todo tipo”, evitando assim que se lançasse dúvidas sobre “conjunto das práticas terapêuticas existentes” [21]. Seja como for, como o Senado e a Assembléia nacional não votaram o mesmo texto, previa-se então, para abril de 2004, seu retorno à discussão pelos deputados. Mas é o bastante, no que se refere aos trâmites legislativos, para nos interrogar sobre o que está em jogo nesses novos tempos em que se impõe à psicanálise definirse em sua relação com o Estado.

É fato que o estatuto atual de psicoterapeuta na França, conferidos pelos diplomas de médico, psiquiatra ou psicólogo (que hoje em dia, seja para a instituição analítica, seja para as instâncias públicas, não é mais “leigo”), permite a muitos, como sublinha Silvestre (membrofundador do Campo lacaniano), passar da psicoterapia nas instituições à psicanálise no consultório particular – sem que as exigências de formação tenham sido minimamente preenchidas. Ela observa que isso seria do conhecimento dos legisladores, e que muitos deles, particularmente na Europa (seu artigo é anterior às manifestações desencadeadas pela aprovação da emenda Accoyer) estariam se organizando para elaborar um estatuto dos psicoterapeutas, no qual incluiria de bom grado os psicanalistas. Há quase um século mantendo seus dispositivos próprios de formação, a psicanálise ver-se-ia assim obrigada, se não a renunciar a suas prerrogativas historicamente adquiridas, ao menos a defender e reivindicar o direito de se colocar como uma exceção. [22]

Ao fim e ao cabo, neste país em que o campo psicanalítico priva de uma representação social não existente noutros lugares [23], o próprio deputado Accoyer e o ministro Mattéi acabaram por reconhecer que a psicanálise seria uma psicoterapia à parte; mas, sendo um tratamento, também sustentaram a necessidade de sua validação e de controlar seus profissionais, em particular em início de carreira. Em 12 de dezembro (2003), em reunião com representantes de diversas associações psicanalíticas, o ministro exigiu, em troca da “especificidade” psicanalítica, a entrega de uma lista [annuaire], comum a todas as associações, com os nomes de seus membros, o que foi recusado pela ECF.

A idéia de um “Annuaire” havia sido mesmo formulada por Melman, da Association Lacanienne Internationale (ALI) – a bem da verdade, envolvendo todos os psicoterapeutas. O estabelecimento de uma lista preservaria, segundo ele, o caráter contratual da relação (permitindo ao público se orientar com conhecimento de causa e de escolha), da mesma maneira que o limite de engajamento do Estado num domínio em que a liberdade, devidamente esclarecida, de cada um seria interpelada. A seu ver, poderia ser exigido de cada psicoterapeuta assinalar na sua placa: certificado (para os psicoterapeutas com formação universitária) ou não certificado (para aqueles com formação independente) [24].

Entre os psicanalistas, pode-se então prever, e antes mesmo que a reforma se cumpra, o surgimento imediato de uma nítida divisão – posto que não são todos “regularmente inscritos” nessas listas – e de um suposto benefício para os “regulares”. Em princípio, como vimos, eles nem são mencionados na emenda, e como tal poder-se-ia mesmo falar de sua valorização em relação aos médicos e psicólogos. Na prática, trata-se de um cruel dilema: inscritos na lista de uma das associações psicanalíticas, eles estariam dispensados da inscrição na lista dos psicoterapeutas, já que psicoterapeutas por assimilação legal. Não inscritos, não seriam também considerados psicoterapeutas em termos legais – logo, “psicanalistas selvagens”. A questão é então saber se eles teriam realmente o direito ao exercício, ou se a lei reservaria o exercício das psicoterapias aos psicoterapeutas e incluiria a psicanálise nas ditas terapias...

No meio psicanalítico, a discussão sobre a formação do psicanalista tem uma longa história. As divergências existentes em torno dessa questão são mesmo, como assinalado, as maiores responsáveis pelas cisões que marcaram o movimento francês, mas só por desconhecimento ou má fé se afirmaria que a formação dos psicanalistas não repousa em regras precisas (vale repetir, códigos de deontologia, procedimentos de validação, análises didáticas, técnicas de avaliação, seminários, estágios clínicos, etc.), ainda que diferentemente estabelecidas pelas escolas de psicanálise, e segundo critérios mais ou menos democráticos (e a história das instituições psicanalíticas e a história da psicanálise tout court estão intimamente ligadas). Entre os lacanianos, essa é mesmo uma discussão ainda não resolvida. Em todo caso, seriam muitos os psicanalistas que há duas décadas (pelo menos na França) debatem a necessidade de um mínimo de organização que lhes seja comum, temerosos das dificuldades de se manterem à margem das regras oficiais de formação e de exercício.

Por que a emenda Accoyer envolve os psicanalistas?

Em seu artigo acima mencionado, Silvestre lembra que no início da história da psicanálise o problema da regulamentação profissional se colocava, em todos os lugares, na seqüência de um processo impetrado contra um psicanalista por exercício ilegal da medicina. Foi assim com Reik, na Áustria, em 1926 e, podemos acrescentar, na própria França, com Clark-Williams, psicanalista não psicóloga e não médica, cujo julgamento fez da psicanálise durante 25 anos, de 1953 a 1978, uma prática ilícita. [25] A posição de Freud, que se preocupava com a não-subordinação da psicanálise a qualquer profissão, não deixa nenhuma margem a dúvidas: para ele, no que diz respeito à psicanálise, o profano é o médico que não fez análise; quem fez uma análise e se beneficiou de uma formação apropriada não é mais um profano, seja ele médico ou não [26].

Lacan sustentou a posição freudiana, mesmo que temesse ainda mais a psicologização da psicanálise. A IPA, por sua vez, não seguiu Freud (ou o negou) – sobretudo nos Estados Unidos, que, além de tudo, às voltas com o problema doméstico de charlatanismo médico, optou por subordinar a psicanálise à medicina.

A questão do exercício da análise leiga ou profana [Laienanalyse] é assim a primeira das razões pelas quais a reforma (que em princípio entraria em vigor seis meses após sua passagem pelo Senado) concerne à psicanálise e a faria correr um “perigo de morte”: se os psicanalistas têm necessidade de conhecimentos em psicopatologia (e quase nada da medicina tout court), são-lhes fundamentais os conhecimentos provenientes de muitos outros domínios (a filosofia, a lingüística, a literatura, a mitologia, a história das religiões e das civilizações, etc.). Torna-se psicanalista quem passou por uma longa análise “pessoal” – ser médico ou psicólogo nunca foi uma condição.

Em segundo lugar, porque coloca a psicanálise no mesmo nível de outras práticas acusadas de charlatanismo. Enfim, porque propagaria a idéia segundo a qual a experiência analítica não visaria senão a terapêutica. Se já para os psicólogos a psicoterapia não se limita apenas ao tratamento de transtornos mentais e inclui também uma dimensão preventiva, é o freudismo que, mais radical, denuncia esse desejo de curar a qualquer preço. A reforma ignora assim os fundamentos mesmos da démarche psicanalítica, cujo processo, individual, não pode ser codificado, planejado, regulamentado e unificado pelos controladores da saúde mental [27].

No fundo, uma ameaça externa (que não prescinde das divisões internas) sempre em vias de se renovar. Na França, país onde a partir de 1949 e pelo menos até 1968/1969 a psicologia e a psicanálise partilharam uma história indissociável no âmbito da universidade, foi sempre tentador para ambas as partes, como escreve Ohayon (em seu livro definitivo sobre o assunto, de 1999), designar um inimigo comum, o poder médico, contra o qual eles deveriam se unir. Como essa união não se concretizou, a autora questiona se teria sido de fato o poder médico o inimigo principal, ou o inimigo comum. [28]

Na França, quem seriam os psicólogos? Trata-se de um caso único no mundo: conforme Anzieu, em fins dos anos 1970, os psicólogos clínicos constituindo maioria, 2/3 dos professores da habilitação em psicologia clínica eram psicanalistas [29]. Contudo, em 1993, Huber conclama a psicologia clínica francesa a se libertar da “fixação pela psicanálise”, abandonar suas “querelas locais” e retomar “o diálogo com a comunidade científica internacional” [30] (p. 11). Ohayon, na condição de historiadora, afirma que “entre os psicólogos e os psicanalistas, o nó do conflito tocava o poder e o lugar social. A hegemonia da doutrina freudiana, percebida como um perigo mortal pelos psicólogos, enrijeceu sua oposição” e os levou a se abrigar sob as asas do behaviourismo, do cognitivismo e, hoje, das neurociências. Por sua vez, “os psicanalistas recusaram a idéia mesma de uma síntese, vivida como um comprometimento, uma degeneração e uma redução de sua doutrina no psicologismo”, de tal forma que a era do afrontamento teria sido substituída pela do evitamento entre os dois protagonistas em questão, ambos prisioneiros do mesmo dilema: “permanecer em sua torre de marfim ou existir social e visivelmente, abrindo-se para os riscos do diálogo com as outras disciplinas e para aquele, mais temível, da vulgarização” [31].

A questão da regulamentação das psicoterapias, que debuta em solo francês (mas que não deixará de se espalhar em seguida pelo mundo), colocará à prova a necessidade e a urgência desse diálogo no âmbito mesmo da “comunidade psi”, desta vez forçado pelos poderes públicos – um embate (políticoteórico- epistemológico) considerável, inédito e necessário para todas as partes. Nesta oportunidade, parece que a psicanálise se confrontará não apenas com o campo médico, mas também com o psicológico [32]. Primeiro, porque a psicoterapia ou, na expressão freudiana, tratamento psíquico – o tratamento que começa pelo próprio psiquismo, por meio de procedimentos que atuam em primeiro lugar e de imediato sobre a alma humana, mediante o uso de palavra e conduzidos sob sugestão (transferência, em psicanálise) – diz respeito principalmente aos psicólogos, seja pelo seu maior número em relação aos psiquiatras, seja por sua impossibilidade legal e intrínseca de prescrever medicamentos. Deve-se ainda levar em conta, no âmbito da universidade, o papel hegemônico a ser desempenhado pelos psicólogos nas referidas comissões avaliadoras de profissionais psicoterapeutas.

Segundo Silvestre, a questão da regulamentação profissional do psicoterapeuta se deve impor de maneira crucial para a psicanálise quando for necessário decidir em termos institucionais (e demonstrar a pertinência da argumentação para além dos pares e intramuros) se a psicanálise é ou não uma psicoterapia, ou ao menos em que medida ela se distingue das outras e ser, como tal, merecedora de um estatuto diferenciado. Na verdade, tratar-se-ia de uma dupla dificuldade: além de dar conta da especificidade de sua prática, ela deve explicar por que essa particularidade não se presta a nenhuma modalidade de inscrição social. E tudo isso sob o efeito de uma pressão exterior (do público, de alguns serviços administrativos e aparelhos do Estado) e de eventos oriundos do interior mesmo do movimento analítico.

Seu raciocínio: a formação psicanalítica, bem como a necessidade de assegurar a especificidade da psicanálise em relação à medicina e preservá-la de toda usurpação, esteve sempre a cargo das associações psicanalíticas. E independentemente das cisões, todos estariam de acordo desde 1920, com a politécnica de Berlim, que ela se faria por uma análise pessoal, uma ou várias supervisões e ensino teórico. Lacan, como Freud, achava que o efeito terapêutico da análise não era o alvo primeiro; mas, dirigindo-se a sujeitos em sofrimento, a questão da garantia da análise se coloca face às psicoterapias diversas e em proliferação, envolvendo uma responsabilidade, pois se trata de proteger o sujeito que está na posição de paciente.

Quer se queira ou não, o futuro da psicanálise estaria ligado ao fato de os psicanalistas formados serem caucionados como psicoterapeutas face às diversas formas de psicoterapia do mercado – pois se trata, sim, de mercado, sublinha a autora, a preocupação dos legisladores em regulamentar a psicoterapia e/ou a psicanálise.

Silvestre lembra ainda ser o estatuto legal da psicanálise uma preocupação de Lacan desde 1953, quando a criação do Instituto de psicanálise (ou seja, a formação dos analistas) na Société psychanalytique de Paris (SPP) se fez acompanhar de um pedido de reconhecimento pelos poderes públicos e de um diploma, jamais obtidos. Foi justamente em função da exigência da IPA em excluir Lacan e Dolto da lista dos analistas didatas que se produziu, como sabemos, a primeira cisão no movimento psicanalítico mundial. A preocupação sobre os critérios de qualificação dos analistas e sobre a garantia de sua formação e de sua prática teria permanecido em Lacan ao se perguntar permanentemente sobre o que é uma análise e o que é um analista. Por outro lado, a necessidade de afirmar o estatuto específico da psicanálise caminhava junto com a preocupação de seu reconhecimento social. Daí suas trocas com o mundo intelectual de seu tempo, seu esforço para que ela pudesse ter um espaço no mundo psiquiátrico ou médico assim como na Universidade, sem se deixar subordinar. Extraterritorialidade em relação aos outros saberes nunca significou, a seu ver, enclausurar-se numa associação de psicanalistas voltada para si mesma. Seu seminário foi dado fora de sua Escola – no hospital Sainte-Anne, na Escola Normal Superior, na Faculdade de Direito – e dirigido a todos e não apenas aos psicanalistas.

Dois vetores o teriam orientado: o da qualificação do analista, a garantia oferecida por sua formação; e o da própria experiência analítica, da qual a psicanálise resulta e que faz com que o analista não se autorize senão por si mesmo. Houve em seguida a busca de procedimento de verificação dessa “autorização”, o “passe” [la passe], introduzido em 1969 em sua Escola – e contestado pelo Quarto Grupo [Quatrième Groupe]. Com o passe, segundo Haddad, Lacan teria almejado o testemunho de jovens analistas, motivo pelo qual recusou a oferta de Dolto, que se oferecera, exortando outros colegas veteranos a fazer o mesmo, de se deixar avaliar em sua capacidade de teorizar sobre sua análise pessoal. Ou nas suas próprias palavras, conforme registrado no no 23 do boletim interno da Escola Freudiana de Paris – “o que pode vir à cabeça de alguém para se autorizar analista. Eu queria testemunhos, naturalmente não tive nenhum… Bem entendido, esse passe é um completo fracasso” [33]. Pelo menos até então...

O fato é que a dissolução de 1980 gerou inúmeros agrupamentos, com seus próprios procedimentos de qualificação, com ou sem passe. Ainda assim, em que pese o fato de que cada grupo “pense possuir a verdadeira parte de Lacan”, alguns começaram a discutir diante da ameaça de legislar sobre a profissão de psicoterapeuta. Para Silvestre, haveria uma posição comum: a psicanálise não é uma psicoterapia e ela deve manter total independência, seja em relação à medicina, seja em relação à psicologia, permanecendo os analistas responsáveis por sua formação e autorização.

Para Major, ainda que o texto da emenda Accoyer vise explicitamente apenas os psicoterapeutas, ele introduziu uma profunda ambigüidade em torno do termo “psicoterapia”. Freud também usou o termo no seu início, o que sugere “certa continuidade na história da ação terapêutica da palavra na relação médico-paciente”, mas sem deixar de sublinhar o quanto sua disciplina “subvertia profundamente essa relação”, ao criar mecanismos que não a limitasse à pura influência do médico. Depois de Freud, multiplicaram-se as numerosas formas de psicoterapia, “que não fazem mais do que restituir a autoridade da consciência e do poder da sugestão, que eram o apanágio das psicoterapias antes da descoberta das leis do funcionamento psíquico”. A prática dos psicanalistas, mesmo que, por diversas razões, não se limitem ao dispositivo clássico, não deve ser confundida com a prática das “novas antigas psicoterapias”.

Os “Estados gerais da psicanálise”, que contou com a participação de um número expressivo de psicanalistas de todas as tendências, afirmou assim, em primeiro lugar, a especificidade de sua disciplina em relação a todas as psicoterapias atualmente praticadas; em segundo, sua independência em relação aos poderes públicos e sua oposição a uma regulamentação pelo Estado diferente daquela já em vigência na formação universitária, em nome de uma completa “liberdade de expressão, num espaço de franqueza circunscrita, e necessária à aquisição, pelo sujeito social, de uma verdadeira responsabilidade” [34].

Já para Silvestre, se a psicanálise tem um efeito... terapêutico – e Freud, como se sabe, escreveu que sua invenção “era efetivamente uma terapia como outras” [35] –, isso parece conduzir a uma espécie de impasse: ou bem a psicanálise não é uma psicoterapia e deve então dizer o que ela é – e nesse caso, os psicanalistas jamais estarão de acordo quanto a isso. Se pelo contrário a psicanálise é uma psicoterapia, então a profissão terá o mesmo estatuto das profissões paramédicas e, como essas, estaria sujeita aos mesmos encargos da seguridade social e das leis fiscais em vigor. O que não lhe parecia possível é se beneficiar de prerrogativas ad hoc. Sendo legítimo não querer se confundir com o restante das outras psicoterapias, tampouco se pode recusar o benefício terapêutico proporcionado pela psicanálise aos que a procuram.

Há que considerar ainda os futuros psicoterapeutas formados pelos departamentos de psicologia das universidades, cujo ensino na França, como se sabe, deve muito à psicanálise. Com pertinência, mas provocativa em mais de uma direção, Silvestre questiona: não seria melhor afirmar que para se dizer psicoterapeuta é preciso fazer uma psicanálise, que essa é a única formação que importa, e talvez mesmo ser psicanalista?
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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