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Resumo
Resenha de Patrícia Porchat, Freud e o teste de realidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, 162 p.


Autor(es)
Maria Eliza P. Labaki
é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUCSP; membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é também professora do curso de Psicossomática. Autora de Morte (Casa do Psicólogo, 2001).


Notas

1 "[...] problema da alucinação e numa investigação do modo como, em nosso estado normal, somos capazes de distinguir entre fantasia e realidade". S. Freud (1917), Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1977, v.14, p. 249.

2 Luiz Alfredo Garcia-Roza. Pesquisa de tipo teórico. Atas do 1º. Encontro de Pesquisa Acadêmica em Psicanálise. Psicanálise e Universidade. Núcleo de Pesquisa em Psicanálise - Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC, n. 1, fev. 1994.

3 S. Freud (1923), O eu e o id. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente (coord. trad. Luiz Hanns). Rio de Janeiro, Imago, 2007, vol. 3, p. 38.

4 Grifos meus.


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 LEITURA

Um copo vazio está cheio de ar. Sobre o teste de realidade em Freud

[Freud e o teste de realidade]


An empty glass is full of air. On the test of reality in Freud
Maria Eliza P. Labaki

Resenha de Patrícia Porchat, Freud e o teste de realidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, 162 p.

O livro de Patrícia Porchat é o resultado de uma rigorosa pesquisa metapsicológica que recupera noções pouco exploradas na Psicanálise pós-freudiana, relativas ao campo da psicologia do eu. Embora o assunto tenha alguma afinidade com a escola de Psicologia do eu americana, é imersa no discurso de tradição freudiana que a autora vai montar o quebra-cabeça a que se propõe no livro. Estimulada por uma passagem na nota introdutória, escrita por James Strachey , ao artigo de Freud de 1917 Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos, Patrícia vê-se interessada em descobrir e entender como Freud propõe e desenvolve sua teorização sobre o conceito Teste de Realidade. Em breves palavras e à guisa de introdução, o Teste de Realidade é definido como uma capacidade do eu que permite a distinção entre um mundo externo e um mundo interno, desde que garantidas as condições de funcionamento do aparelho psíquico sob o regime dos processos secundários de pensamento.

A despeito de outros autores, que não concebem em Freud a existência de uma teorização coerente sobre o Teste de Realidade, Patrícia não só prova o contrário, como reúne as peças, monta o quebra-cabeça e especifica o lugar de relevância do conceito, bem como sua relatividade no interior da teoria. A autora põe em relação noções que surgem salpicadas ao longo da obra de Freud, de modo a compor um único, articulado e consistente conceito que engloba uma definição precisa sobre o Teste de Realidade. Sua contraposição às proposições de Laplanche e Pontalis é explícita, uma vez que estas reduzem o conceito a um ou dois de seus aspectos componentes, distorcem suas propriedades particulares e minimizam seu lugar de relevância no âmbito da metapsicologia freudiana. Alcançar esse grau de inteligibilidade requer do pesquisador algo diferente, algo além do necessário interesse nos estudos ou da compilação competente de textos sobre o tema. Como disse Garcia-Roza na década de 90, em uma mesa-redonda na PUC, tratar um conceito como singularidade, e não mera abstração, requer do pesquisador uma atitude não de amigo, mas de amante do assunto. Sedento por decifrar os segredos da amada, o amante vai ao encontro de suas contradições, toca os pontos de sutileza, de sua nebulosa, acolhendo a equivocidade que enriquece o entendimento e multiplica os sentidos. Com este livro, Patrícia resgatou um conceito freudiano que, a despeito da importância de sua utilidade, era mantido à margem. Com precisão e fidelidade a Freud, vai ao cerne. Então, vejamos!

Embora não esteja assim formulado no livro, parece-me que o ponto de partida de Patrícia, seu problema de origem, deve-se, em parte, a uma inquietação intelectual de natureza filosófica: como sabermos se a realidade que percebemos não é fruto do que pensamos sobre ela? É possível distinguir um pensamento de uma percepção? Ou, em que medida ambos são coextensivos? Tangível ou incognoscível, como a realidade externa se apresenta para a percepção e como diferenciá-la do que pensamos?

Ainda que nas páginas finais do livro a autora retome de passagem a conhecida discussão filosófica que contrapõe idealismo e realismo, o leitor já sabe, por tudo o que encontrou no livro, não ser filosófica a natureza de seu discurso, nem, tampouco, o seu conteúdo. Também não se inclina a polemizar, como outros autores, sobre a suposta oscilação de Freud entre o realismo e o idealismo. Faz um caminho diferente. Mais ao gosto da lógica que rege as operações do inconsciente, que não inclui a negatividade, mas a possibilidade de coexistirem oposições, Patrícia deixa sugerido que ambos, realismo e idealismo, podem conviver na obra freudiana.

Arrisco pensar que sua opção, explicitada no livro, por não adotar os pares fantasia e realidade, se contrapondo inclusive a algumas tendências da psicanálise pós-freudiana, pode servir como prova a esta hipótese. Isto porque, no subtexto, a autora mostra saber que as noções de realidade e fantasia traduzem para a Psicanálise um outro problema, mais complicado do que o suposto na operação metafísica que os contrapõe. Lembra-nos de que, embora Freud mantenha o uso do termo realidade quando se refere à realidade externa, tal noção é ampliada ao longo da obra até alcançar uma nova configuração com a invenção do fundamental conceito de realidade psíquica. Espécie de sítio de superposição do espaço de dentro, psíquico, com o de fora, real, nele os eventos concretos perdem o estatuto que lhes outorgam objetividade, ao mesmo tempo que ganha realidade tudo aquilo considerado irreal, irracional ou obra da imaginação, fantasia.

Com efeito, a noção de realidade psíquica reafirma mais uma vez o viés subversivo da Psicanálise que torce a racionalidade cartesiana refundando uma nova ordem dialética. Por isso, a pergunta: se, no reino da realidade psíquica, ou do inconsciente psicanalítico, realidade e fantasia podem existir libertas do estatuto de falsidade ou verdade, qual o sentido em distingui-las? Ou, de outro ponto de vista: se a apreensão do mundo externo não pode se dar sem a colaboração de algum acréscimo psíquico, sendo impossível libertar-se dele, qual a utilidade da distinção, no material psíquico, entre o que nele é fruto da percepção provocada por estímulos externos e o que nele resulta eco de processo interno de natureza pulsional? A que necessidade responde esse esforço de diferenciação?

O presente livro busca um entendimento na obra de Freud para as questões acima formuladas, pondo o leitor em contato com proposições teóricas - algumas esclarecedoras, outras complicadas - a respeito dos processos psíquicos do eu envolvidos no acionamento e manutenção do Teste de Realidade. Também mostra ao leitor que o conceito não foi por Freud definido originalmente como um bloco coeso, mas elaborado aos bocadinhos ao longo de sua obra.

São dois os eixos metodológicos em torno dos quais se organizam tais objetivos. O eixo que recorta a obra de Freud na linha horizontal, isto é, que procede a um levantamento sobre as origens do conceito, suas formulações e desdobramentos, nos artigos e livros escolhidos em que se pode verificar alguma proeminência do recorte metapsicológico. São eles (em ordem cronológica): Projeto para uma psicologia científica (1895); A interpretação dos sonhos (1900); Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental (1911); Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917); Psicologia de grupo e análise do ego (1921); A negativa (1925); Esboço de psicanálise (1938).

E o eixo vertical, que analisa o resultado da pesquisa nos livros, mostrando que o Teste de Realidade é um dispositivo que se configura pela participação de cinco mecanismos, sub-engrenagens que o estruturam tecnicamente e permitem seu bom funcionamento. A saber: inibição, atenção, julgamento, pensamento e ação motora. Mostra, ainda, as condições de seu surgimento no bebê, isto é, suas raízes nos processos de formação do aparelho psíquico, os motivos para a manutenção de sua atividade e aplicabilidade pelo eu, bem como os contextos e organizações mentais em que deixa de atuar no indivíduo adulto. Conclui haver na obra de Freud uma teoria coerente sobre o Teste de Realidade.

Do estudo apurado dos textos acima citados, bem como da análise detalhada dos elementos que compõem o conceito, duas obras se destacam: Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental, onde o Teste de Realidade foi enunciado pela primeira vez, e o Projeto para uma psicologia científica. Considerado pela autora o "berço" (p. 25) dos mecanismos de distinção entre mundo interno e mundo externo, é nesta obra inaugural (para alguns, pré-psicanalítica) que podemos encontrar as primeiras formulações sobre o mecanismo de inibição, alicerce do Teste de Realidade. Freio da alucinação, a inibição incide sobre a descarga pulsional abrindo, no interior dos processos psíquicos primários, a brecha temporal e mecânica que os retarda, transformando o ato mental automático da satisfação (prazer) e da defesa (dor) em espera para o encontro com o objeto externo, passível, nesta suspensão, de revelação.

Como nos ensina o texto Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental, as raízes do Teste de Realidade são encontradas na passagem entre as duas formas evolutivas de o ego funcionar: da primeira e mais primitiva, regida pelo princípio de prazer, cujo funcionamento caracteriza o ego-prazer ensimesmado e autoerótico, à segunda e mais evoluída forma, regida pelo princípio de realidade, cujo funcionamento caracteriza o ego-realidade, receptivo e aberto a considerar o mundo externo como fonte para a satisfação de seus desejos.

Submetido aos processos secundários do funcionamento mental no caminho entre a percepção do desejo e o encontro com o objeto da satisfação, o eu da realidade renuncia, mediante a inclusão de mecanismos intermediários de observação, avaliação e ponderação, à execução dos processos automáticos de descarga pulsional. Isto é, após sofrer uma série de adaptações, o Teste de Realidade significa uma fundamental aquisição do aparelho psíquico, através da qual o eu pode modificar o mundo externo, adequando-o às suas necessidades em relação a obter prazeres cada vez mais estáveis e duradouros. Trata-se da instalação do regime de trocas e intercâmbios entre o mundo externo e interno, entre o desejo e seu correlato no real, senhores para os quais o eu trabalha, responde e joga com a cintura.

De fato, a autora enfatiza que o Teste de Realidade instaura a divisão entre "um dentro e um fora, entre o interno e o externo" (nota de rodapé, p. 69), sendo o eu a instância/película - como denomina Freud , projeção de uma superfície, a corporal - que funciona aqui como separação. Mas para isso é preciso, pois, integridade e coesão do eu. Só nestas condições o Teste de Realidade tem efeito. Caso contrário, em presença de cisões, recalques, introversões narcísicas ou idealizações, não será possível alcançar uma boa margem de segurança de que o que se enxerga não é fruto do desejo de ver. Nas instigantes palavras da autora em sua conclusão: "[...] o teste de realidade não funciona durante o estado de sono, nos sonhos, na hipnose, na paixão (avassaladora) , na situação de ‘massa', durante a alucinação psicótica e em momentos em que predomina a fantasia" (p. 153).

O livro de Patrícia Porchat pode ser lido como uma espécie de celebração do eu, imagem da harmonia, da ordem, da luz - este ente frágil e apolíneo.

NOTAS
1 "[...] problema da alucinação e numa investigação do modo como, em nosso estado normal, somos capazes de distinguir entre fantasia e realidade". S. Freud (1917), Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1977, v.14, p. 249.
2 Luiz Alfredo Garcia-Roza. Pesquisa de tipo teórico. Atas do 1º. Encontro de Pesquisa Acadêmica em Psicanálise. Psicanálise e Universidade. Núcleo de Pesquisa em Psicanálise - Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC, n. 1, fev. 1994.
3 S. Freud (1923), O eu e o id. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente (coord. trad. Luiz Hanns). Rio de Janeiro, Imago, 2007, vol. 3, p. 38.
4 Grifos meus.


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