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Resumo
Resenha de Marcel Mauss, Ensaio sobre o dom. In: Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2001.


Autor(es)
Glaucia Dunley
é psicanalista, mestre em Teoria Psicanalítica e professora universitária.


Notas

1       Dunley, Glaucia. A festa tecnológica - O trágico e a crítica da cultura informacional, São Paulo/Rio de Janeiro, Escuta/Fiocruz, 2005.

2       A ciência e a técnica modernas, diferentemente das formas que as precederam, caracterizam-se por seu caráter interventivo, onde se ex- pressa o desejo do homem de conhecer a natureza para dominá-la.

3   Pimentel Spency. "Novos Protagonismos". In: Le Monde Diplomati- que Brasil, dez. 2008, p. 35.

4       A parte maldita, de Bataille, é um livro de "economia geral",  segun-  do o próprio autor, e inicia-se por um ensaio chamado "A noção de gasto" (La notion de dépense), escrito por volta de 1930, depois que  o autor entra em contato com a categoria do potlatch descrita por Mauss em Ensaio sobre o dom.

5    Expressão criada por Muniz-Sodré.

6   Citado por Freud em "Totem e tabu". Eram todos contemporâneos entre si.

7    Em Considerações finais, procuro introduzir, com  Derrida,  a  vinda  do dom incondicional, juntamente com outros incondicionais-im- possíveis (onde o im-possível não é negativo, mas aponta para a di- visão do eu, para uma ética do outrem e para um além da pulsão de morte. Ou seja, é uma direção na qual é preciso ir e insistir).

8     A obrigação de dar é a essência do potlatch. Quem não dava potlatch ficava com a "cara  podre",  experimentava a vergonha, pois fica-  va subentendido que não possuía riquezas suficientes para oferecer nem destruir. A obrigação de receber não é menos constrangedora, pois não se tem o direito de recusar uma dádiva. No caso do potla- tch, isso indica que o clã tem medo de não conseguir retribuir com juros. Essa recusa pode originar uma guerra. E a sansão por não re- tribuir é a escravatura por dívida.

9     Em Considerações finais, faço uma articulação com a pulsão  de  morte e com a pulsão de poder.

10    Godélier, em seu livro L´enigme du dom, ao retomar para análise várias décadas depois o livro de Mauss, diz que a forma agonística -   o potlatch, cujo nome indígena Mauss transformou numa categoria sociológica - evoluiu a partir das formas não agonísticas. Não pude observar isso no texto de Mauss.

11    Empenhar no sentido de endividar, de contrair uma dívida mesmo e pela qual todos são responsáveis.

12    Essa é também a conduta de certos grupos de indígenas brasileiros até hoje, estudada por Viveiros de Castro, para quem o dinheiro ob- tido como pagamento numa transação não é o que importa, mas a continuidade da relação. Por isso o indígena dirá que o fulano está ainda lhe devendo, que é ladrão, apesar de ter pago o combinado. E. Viveiros de Castro, Encontros, Azougue Editorial.

13   R. Esposito, Communitas - origem y destino dela comunidad, Bue- nos Aires, Amorrortu, p. 27.

14    Os impasses do reconhecimento da dívida e seu pagamento consti- tuem exatamente a temática da neurose obsessiva.

15    Le  tout-autre,  na  versão  francesa,   é   uma   expressão   emprega-  da por Jacques Derrida para denominar o radicalmente outro. De l'hospitalité. Paris: Calman-Lévy, 1997.

16   M. Blanchot, "Conhecimento do  desconhecido". In  Conversações. São Paulo, Escuta, 2001.

17   No ano seguinte à conferência, pronunciada no Anfiteatro da Sor- bonne, em Paris, o livro de mesmo nome é lançado no Brasil: Estados-da-alma da psicanálise - O impossível para além de uma soberana crueldade. São Paulo, Escuta, 2001

18    A expressão "meios indiretos" é usada por Freud em sua correspondência com Einstein, no ensaio "Por que guerra?, de 1932, onde  ambos procuram encontrar estratégias e táticas para diminuir os es- tragos da Destruktiontriëb.

19      Onde o dom continua a ser condicional, isto é, condicionado a ter retribuição ou a algo da ordem da necessidade que não aponta abso- lutamente para nenhum reino da liberdade ou da gratuidade. Diz ele em "Para introduzir o narcisismo": "Podemos nos aproximar da ques- tão de por que a vida anímica se vê forçada  a ultrapassar as frontei-  ras do narcisismo e investir de libido objetos exteriores (doar)... Dita necessidade surge quando a carga libidinal do eu ultrapassa certa medida [excedente ou excesso pulsional], pois um intenso egoísmo protege  contra  a doença, mas ao fim e ao cabo temos que começar     a amar para não adoecer ...e adoecemos quando uma frustração nos impede de amar... Nisto reside (também) toda urgência em criar".

20    Embora, no senso comum, pensemos que fazemos dom na pura gratuidade.

21   René Major, em "A  pulsão de poder" (revista Nó Górdio, n.1), levanta uma questão pertinente acerca das traduções da Bematchgungs- triëb na psicanálise como pulsão de domínio, instinct to master etc. que lhe retiram a radicalidade em relação ao poder (de se apropriar, de submeter) e à crueldade.

22    Em La carte postale - Spéculer sur Freud, Derrida  desenvolve  bem esta pulsão que talvez se possa aproximar ou mesmo identificar à pulsão de domínio. A pulsão do próprio, ou de  apropriação,  seria,  para Derrida, a pulsão mais radical - aquela que exibe a condição de possibilidade do pulsional: o seu pulsar de captura em diversos mo- mentos do seu movimento: apropriação, expropriação, nomeação, dominância, mestria...No movimento de expropriação desta pulsão, considero possível articular um esvaziamento de libido do eu, levan- do-o a um estado de narcisismo residual (o momento do dom, onde há perda). Já no momento de apropriação desta pulsão, o eu se rea- propria do objeto, trazendo consigo a libido nele investida, permitin- do uma hipótese para o retorno/retribuição do dom. Ver também o excelente artigo de Luiz Fernando Carvalho "Hospitalidade e propriedade". In: Em torno de Jacques Derrida, Ed. 7 Letras, p. 133-40.


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 LEITURA

Um compromisso com o futuro da Psicanálise

[Ensaio sobre o dom]


A commitment to the future of Psychoanalysis
Glaucia Dunley

Introdução à obra

Correr o risco de resenhar um livro maior como Ensaio sobre o dom, de Marcel Mauss, é colocar­se de pronto na esfera ética da desconstrução, que todo livro ou texto seminal exige, dada a imensidão de trilhas que abre para o pensamento em vários campos do saber. Ou seja, é expor­se a reconhecer a própria dívida com o saber ao procurar criar uma interlocução do texto de Mauss com os de outros pensadores implicados nesta lógica do dom e da dívida dos saberes entre si.

 

Considerado um clássico da antropologia, escrito em 1925, ou seja, no contexto do pós­ guerra, o Ensaio sobre o dom é um livro que propõe enigmas, paradoxos, sobre essa estranha tarefa de ser humano, coletivamente. Matéria essa desde sempre excitante e instigante para psicanalistas, assim como para estudiosos ou pensadores engajados em formular questões que diagnostiquem o presente na direção de um futuro mais justo, mesmo que para isso tenham que proceder a genealogias que levem, como no caso de Mauss e de Freud ao encontro do arcaico, do Ür. Isto é, pebsadores que tiveram a audácia de desterritoriali­ zar seus saberes à procura de traços que possam, talvez, diminuir "a miséria erótica dos povos", na trágica expressão de Freud em "Psicologia das massas e análise do eu". Ao usá­la, Freud se refere ao momento em que o laço social se desfaz, se esgarça, e a ameaça do pânico se torna iminen­ te, ao serem perdidas as identificações que ligam os componentes de um grupo humano entre si, a partir da dissolução do vínculo com o líder.

 

Considero possível pensar esta dissolução gradual e radical dos vínculos que vem ocorrendo na passagem da modernidade para o contemporâneo na esteira da proclamação da morte de Deus por Nietzsche há pouco mais de cem anos1. Seus significados fizeram do século xx uma cenanilista por excelência, que tem se efetivado ou consumado nas várias formas de dissolução do eu e de repúdio ao sagrado - do qual fomos progressivamente arrancados desde o início da modernidade com o advento da ciência e da técnica2, e, de forma radical, por seu absolutismo contemporâneo.

 

Estamos aqui, hoje, diante dos resultados concretos de um individualismo totalitário (or­ ganizado ou solitário) de mais de quatro séculos de Projeto Ocidental, e dos sinais e sintomas de um tempo em mutação - o contemporâneo, que não se reduz ao pós­moderno - e que poderá ou não continuar a se abrir para uma experiência diferente da experiência soberana da modernidade, menos cruel e alienante.

 

Daí a pertinência do livro Ensaio sobre o dom - no fundo, uma crítica sutil à nossa arrogância moderna que chamou de primitivas ou periféricas as formas de associação arcaicas, diferentes das ocidentais, como se essas últimas fossem as únicas formas válidas ou possíveis. Vale lembrar o uso em nossos dias do termo "periférico" para classificar os países que não fazem parte das economias centrais capitalistas, e a derrota re­ cente, renovada, desta presunção, que nos fez a todos (mais) devedores, com a grande diferença de não sabermos ou querermos dar suporte à imensa tribo de excluídos, de refugiados econômicos de nosso sistema liberal moderno ocidental. O que não existia nos periféricos de Mauss, que sabiam se organizar social, econômica, religiosa e politicamente de forma a se responsabilizarem por suas coletividades.

 

Daí também a sua atualidade quando vemos os novos protagonismos encenados pelos povos originários atualmente existentes na América Latina - as comunidades indígenas, que reivindicam serem assim chamadas -, entre os quais os bolivianos vêm ocupando uma posição de destaque. Bolívia e Equador avançam ao incorporarem em suas novas Constituições cláusulas relativas às formas de propriedade e de direitos tradicionalmente aplicadas pelas comunidades originárias que preveem o autogoverno da propriedade e da Justiça Comunitária. Uma boa amostra do nível de organização dessas co- munidades originárias é a Assembleia do Povo Guarani que existe desde os anos 1980 e tem suas decisões validadas por lei nacional3.

 

Ou seja, ler Mauss hoje, ou reler, não diz respeito à nostalgia de um paraíso perdido ou a acalentar utopias modernas que eram da ordem do impossível. Ler Mauss significa trabalhar com as possibilidades originárias das coletividades. Potências essas que sempre estiveram presentes como alternativas à história hegemônica social, política e econômica da humanidade, e sempre poderão ser atualizadas, como oportunamente nos mostram os povos originários de nosso continente hoje. É sempre bom lembrar - ou ser lembrado - que o caminho não é único, nem o capitalismo, o destino.

 

Mauss foi certamente, por vida e obra, um homem interessado em procurar saídas para uma humanidade melhor. Era um utopista de campo.

 

Em Ensaio sobre o dom, apresenta os resultados e as especulações teóricas que faz em torno das tribos que visitou, e considera que uma parte considerável de nossa vida permanece sempre nesta atmosfera do dom que se constitui de obrigação e liberdade. Talvez uma maneira inclusiva, pioneira, de renomear o par antinômico liberdade/necessidade da metafísica moderna que quase sempre repudiou a totalidade, em favor da separação, legando­nos por fim a fragmentação. Considera, na terceira década do século xx que, ao estudarmos os lados obscuros e arcaicos da vida social, seja possível iluminar os rumos que devem tomar as nações, os valores e as economias.

 

Freud e Einstein, em "Por que a guerra?" (1932), igualmente aturdidos - como Mauss - pela guerra de 1914­1919, saem solidários texto afora à procura de uma explicação para a carnificina ocorrida entre povos vizinhos, povos irmãos, atribuindo­a a uma poderosa Destruktiontriëb. Talvez possamos pensar que, como eles, Mauss realiza seu périplo Pacífico afora, depois de sofrer, pelo mesmo nefasto motivo, a perda de muitos amigos e ilusões. Navega pelos mares da Poliné­ sia, da Melanésia, do Noroeste Americano e de outras paragens, conhecendo sociedades primitivas e arcaicas, algumas formas arcaicas de direitos como o maori, sem saber, talvez, sobre o seu de­ sejo de conhecer outras formas de associação humana, menos deletérias. Encontra, assim como Malinovski e Boas, no mesmo primeiro cartel do século xx, sociedades vivendo abundantemente, com direitos e obrigações, em torno de uma forma de troca originária (anterior logicamente à troca troquista, mercantil, capitalista, fragmentadora, em vigor nas sociedades ocidentais), e que ainda subsiste, com força, em várias partes do mundo, como acabamos de ver em relação aos povos originários da América Latina.

 

Esta forma de troca originária foi totalmente ignorada pelos economistas e estruturalistas em geral, segundo apontamento pertinente e crítico de Bataille em A parte maldita4, onde este leitor brilhante de Freud e de Mauss lembra que parte da produção econômica da humanidade é orientada por um princípio de perda, que transfor ma grande parte da energia do planeta em gastos improdutivos. Neles, Bataille inclui o dom, as guerras, o luxo, a destruição dos excedentes, o excesso pulsional, numa articulação implícita  com a pulsão de morte. Ou seja, algo que excede ou escapa a uma economia produtiva, capitalista, comprometida com o lucro, com a mais­valia, ou simplesmente com o desempenho, com a adaptação/formatação dos sujeitos a um esquema, e com o sintoma. Esses economistas "clássicos" basearam nas trocas seu pensamento único, assim como o fizeram os estruturalistas em geral, fincados num pensamento tributário de uma lógica simbólica inconsciente, onde o simbólico é hegemônico, quase totalitário. Ambas as categorias recalcaram - ou foracluíram - o dom, e seus efeitos retornam então de forma espúria no real e no imaginário: numa economia neoliberal que se perdeu da política e do social, e num mercado que é uma "nova boca de Deus"5, ditando costumes, crenças, consumos e o mais. Ambos consagrando o individualismo e o esgarçamento dos vínculos.

 

O ensaio sobre o dom

Marcel Mauss, em seu Ensaio sobre o dom - forma e razão da troca nas sociedades arcaicas -, de 1925, realiza uma verdadeira "revolução", inaugurando uma nova era para as ciências sociais - para empregar desde já as palavras de Lévi­Strauss, no prefácio de 1930 ao livro. Segundo este célebre antropólogo estruturalista, ainda vivo hoje aos 101 anos, diferentemente de Malinowski6 e de Boas, que fizeram estudos descritivos sobre as comunidades arcaicas, pela primeira vez - com Mauss - um esforço havia sido feito para transcender a observação empírica em busca de reali­ dades mais profundas, criando um sistema (que Mauss chama de complexo e Strauss de estrutura) onde podem ser encontradas conexões, equiva­ lências que interligam as práticas sociais.

 

Entretanto, não só de elogios se constitui o famoso prefácio. Lévi­Strauss faz uma crítica cortante ao livro, principalmente relativa ao ca­ ráter imaginário/religioso ou espiritual de certas afirmações de Mauss, visando a estabelecer a su­ premacia da análise estrutural em relação à socio­ lógica. Para Lévi­Strauss, o social se constitui de uma combinação de práticas sociais cuja origem deveria ser buscada nas estruturas inconscientes do espírito - em sua capacidade de simbolizar. Vale lembrar que, um ano antes (1929), ele ha­ via publicado Estruturas elementares do parentesco. Para um representante maior do pensamento estruturalista, como ele, o imaginário e o real não têm espaço como determinantes da lógica social, sendo impossível valorizar as formas imaginá­ rias de Mauss -, do tipo a "força" (hau) que habi­ ta a coisa e a faz retornar ao doador, assim como o mana dos chefes - que Lévi­Strauss chama em seu prefácio de significante flutuante. Segundo ele, as três obrigações de Mauss - que veremos a seguir - só deixariam de ser um dilema para a ciência se fossem interligadas pela noção de estrutura simbólica inconsciente.

 

Na sua revolução, Mauss afirma que o dom era uma forma originária ou arcaica da troca que obrigava uma retribuição, embora fosse aparentemente livre e gratuito. Ou seja, antes da troca (contrato de reciprocidade) existe o dom - que não é incondicional nessas sociedades7, uma vez que apela compulsoriamente para que seja feita uma retribuição (um outro dom por parte daquele que recebeu). Entretanto, essa troca era realizada em condições muito diversas do mero toma lá dá cá da troca mercantil, que preza a forma utilitária da reciprocidade.

 

Através de seus trabalhos etnográficos junto às populações afastadas dos grandes centros ocidentais, mais especificamente na região da Polinésia, da Melanésia (Nova Caledônia, Ilhas Trobiand) e do noroeste americano, ele pôde perceber que existiam três obrigações que pertenciam a um mesmo complexo: dar, receber, dar por sua vez8. E que o dom de um presente (recebido) de um doador cria a obrigação por parte do donatário (o que recebe) de retribuí­lo com um outro dom (que é diferente de devolver o presente).

 

Mauss, em Ensaio sobre o dom, privilegia o retribuir. O que faria (obrigaria) com que um presente, um dom, fosse retribuído num tempo indeterminado? Textualmente, ele se pergunta: "qual a regra de direito que obriga a retribuição do presente dado?"; posteriormente reformula essa questão indagando qual seria a força que existe no presente dado que faz com que o donatário o retribua. Passa a considerá­la como uma força sobrenatural (o hau do objeto, em direito Maori) que habitaria o objeto dado e o que o faria voltar ao doador, ligando coisas e indivíduos por laços espirituais.

 

Diz ele que nas economias e nos direitos que precederam os nossos ou ainda em vigor nas sociedades que ele visitou, não se observavam nunca simples trocas de bens, de riquezas e de produtos durante uma transação entre indi­ víduos de uma mesma família, clã ou de clãs vizinhos ou longínquos. São as coletividades que se obrigam, trocam e contratam, e não os indivíduos. O que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, coisas úteis economicamente. Trocam amabilidades, ritos, festins, assembleias solenes, serviços militares, mulheres e crianças, danças, sessões de xamanismo, de culto aos deuses, totens e antepassados, casamentos, iniciações, feiras, conjunto de práticas que caracterizam uma prestação total - forma mais antiga de dom. O momento da troca propriamente dita (da circulação das riquezas) é apenas um dos acontecimentos que constituem a totalidade da transação que se passa em termos muito mais gerais e permanentes, constituindo uma aliança ou pacto entre clãs. Ou seja, direito, economia e social se autoengendram.

 

A forma mais evoluída e rara dessas presta­ ções totais é o que Mauss propôs chamar com o nome indígena de potlatch (alimentar, consumir), típica de algumas tribos do noroeste americano, do Alaska, da Melanésia (Nova Caledônia, Ilhas Trobiand onde o grande potlatch se chamou kula), e da Papuásia. Ele é constituído pelo oferecimento de grandes presentes ou pela destruição de grandes riquezas ou excedentes, onde domina o princípio da rivalidade, o antagonismo, o desejo de submeter e/ou aniquilar o outro, e onde é possível se chegar à batalha, ao assassinato dos chefes e de nobres que se enfrentam para assegu­ rar uma hierarquia. A destruição suntuosa das riquezas acumuladas visa a eclipsar o chefe rival e geralmente associado (avô, sogro ou genro), obrigando a recomeçar tudo do zero9.

 

Neste gosto/gozo da destruição, queimam-se casa, milhares de mantas, destroem­se os objetos de cobre mais caros, jogando­os na água para rebaixar o clã rival, assim como no gozo do recomeço e da submissão do outro. Constitui­se por meio dessas forças um sistema de economia e de direito, feito tanto com etiqueta e prodigalidade, quanto com antagonismo e rivalidade, no qual se gastam e se transferem riquezas consideráveis.

 

Diferentemente, na África, na Polinésia, na Malásia, na América do Sul e no resto da América do Norte, as trocas-dom/contradom entre os clãs parecem ser do tipo não agonístico, ou seja, faltam os elementos de rivalidade, de destruição, de combate, onde o doador e o donatário tornam­se solidários indefinidamente10. Tudo acontece de forma que as alianças se am­ pliem e sejam perenes, todos do clã do donatário tornando­se devedores dos membros do clã do doador, criando assim uma malha social onde todos se devem entre si.

 

Isto é, o sistema de dons agonísticos, não agonísticos e suas formas intermediárias nessas sociedades - chamados por Mauss de Sistema de Prestações Totais -, é produtor de comunhões, de alianças praticamente indissolúveis, crédito, combates, vínculos, assim como de autoridade, de crédito, de honra e de vergonha - ou seja, de valores. A autoridade/força mágica ou o mana polinésio de um chefe é considerada também fonte de riqueza. O dom cria a dívida com o outro, e é a condição da produção e da reprodução de relações sociais.

 

Vê­se que, nessa dinâmica estudada por Mauss, o dom como forma de troca originária envolvia e envolve, empenhando11, todo o clã, ou melhor, os clãs entre os quais a transação/dom se dá, tornando­os todos devedores entre si, e, portanto, solidários no pagamento da dívida criada pelo primeiro dom, que jamais era alienado de seu produtor/proprietário do objeto. Com isso se tecia uma cadeia de dons e doadores intermediários, assim como de dívidas e devedores inter­ mediários, cuja função é tecer o social, fazendo a transmissão das obrigações de doar, receber, de­ ver, e pagar a dívida com um outro dom. Esse outro dom (contradom) não liquida a dívida, mesmo que seja idêntico e imediato.

 

Constitui­se então um paradoxo: embora o pagamento da dívida nessas sociedades não sejaimpossível (ele é inclusive obrigatório), a dívida não é liquidável, atingindo­se assim, pelo ca­ ráter paradoxal dessa forma de troca, o maior objetivo da transação: constituir uma relação interminável. Em outras palavras, um laço social permanente, que não se esboroa ou termina com a retribuição do dom12.

 

Esse aspecto é aprofundado por Maurice Godélier, em seu livro O enigma do dom, escrito nos anos 1990, onde o autor realiza uma análise contemporânea de Ensaio sobre o dom, destacando pontos importantes e obscuros da obra de Mauss. Segundo este filósofo, e posteriormente antropólogo, a dívida engendrada por um dom não é liquidável porque, segundo Mauss, não existe uma relação de alienação entre o doador e a coisa doada (ponto, aliás, fundamental da crítica marxista à economia capitalista). Parte do produtor/doador vai junto com a coisa doada, fazendo com que seus direitos sobre a coisa não cessem, preservando uma certa relação com o donatário (o que recebe): um vínculo, um laço social.

 

Quanto à obrigação de retribuir, ao negar a existência de qualquer força sobrenatural que faria com que a coisa doada voltasse ao doador, diz Godélier que aquele que doou continua a estar presente na coisa pelo vínculo estabeleci­ do, e acaba por exercer uma pressão para que o que recebeu retribua. O que me parece bem fraco como argumentação que pretende esclarecer pontos obscuros da obra de Mauss.

 

Em todo caso, é uma lógica muito diferen­ te de nosso estado atual de seres submetidos a um Mercado que se apropria de traços do sagrado, que retorna então (e também) por esta forma bizarra de lógica religiosa do consumo que, sendo individualista e fragmentadora, impede a comunhão. Ou seja, não deixa com que sejam tecidos laços duráveis entre os participantes, sejam eles de que natureza for. Pois a dívida se esgota no pagamento da mercadoria.

 

Diferentemente das civilizações da culpa (as ocidentais/capitalistas) - onde a palavra Schül- dig de Freud e Nietzsche capta todo o peso da modernidade, pois ela é a mesma palavra para


devedor e culpado - as sociedades arcaicas, primitivas ou periféricas - conhecidas como civilizações da vergonha (shame cultures) - dão positividade social ao endividamento, ou seja, mais do que desejar o endividamento, o endividamento é da ordem da necessidade - e por isso fazem dom, criando a dívida - pois é a partir desse jogo social que se constroem os vínculos permanentes, direitos e deveres entre os grupos/ pessoas envolvidos, que a transação é selada, e que a relação social é constituída. Em outras palavras, é um endividamento sem culpa (?), mas exposto ao risco da vergonha, no caso de o dom não ser recebido ou retribuído. O clã responsável por essa desfeita perde "a cara" (literalmente), se desonra, correndo graves riscos.

 

Vida e obra

Como não poderia deixar de ser, uma obra/dom com essa luminosidade ou intensidade obriga Mauss em relação a ele próprio. Isto é, faz com que ele contraia uma dívida com a sua própria existência pela qual ele se alçou como um social­democrata avant-la-lettre, imaginando e lutando por um programa socioeconômico e político (economia  de mercado e socialismo) onde o reconhecimento da dívida com a vida empenhada dos trabalhadores valia muito mais do que seus míseros salários, e que o Estado lhes devia, por conseguinte, uma renda"social". Esta forma não fragmentada de pensar a economia, a política, o direito e a sociedade conheceu posteriormente seu apogeu no Estado de Bem Estar Social instalado na Europa depois da Segunda Guerra, conhecido como os Trinta Anos Gloriosos, onde a prática social se aproximava, dentro de limites, de um fato total - como nas sociedades arcaicas estudadas por Mauss -, reunindo economia e política, e, portanto, não permitindo a hegemonia, muito menos o absolutismo, de nenhuma de suas esferas, tal como conhecemos agora em relação à esfera econômica.

 

Essa pertinência e atualidade do livro de Mauss pode nos servir de alerta, de crítica à nossa "vida" de homo oeconomicus, principalmente a partir dos anos 70 do século xx, quando nós - emergentes e periféricos - nos submetemos/fomos submetidos a pagar as dívidas dos eua, através das medidas neoliberais ditadas pelo Consenso de Washington que preconizaram/exigiram os chamados "ajustes estruturais" das economias capitalistas em geral, esfacelando as soberanias dos Estados nacionais, dos povos, excluindo milhões das redes de dons e trocas. Pelo jeito, não aprendemos, ou não tivemos tempo ainda para virar o jogo. Os movimentos sociais alternativos espalhados pelo mundo estão tentando. Neles, a questão do dom e da dívida, separando modernos de contemporâneos, é elaborada de forma muito interessante por um filósofo como Esposito, inspirado em Benveniste e Mauss, como pretendo indicar a seguir.

 

Considerações finais

Embora não faça parte do livro, trago aqui, como um dom que possibilite trocas, algumas elaborações iniciais que decorrem diretamente da nossa questão. Assim, depois do dom, a dívida com o outrem, a pulsão de poder, e o ir além da pulsão de morte.

 

Roberto Esposito, filósofo italiano contemporâneo, em seu livro Communitas. Origem y destino de la comunidad, faz uma brilhante elaboração da dívida, seguindo os passos de Benveniste e de Mauss13, no sentido de ratificar o caráter compulsório do dom e do contradom, mas atualizando os seus achados linguísticos e sociais para o contemporâneo. Assim, Esposito trabalha o com de Communitas como estar exposto a, estar aberto a; e o munus como dom ou doação com­ pulsória em pagamento de uma dívida, permitin­ do um deslocamento essencial que nos é também facultado pela psicanálise14: o reconhecimento/ pagamento da dívida não deve ser necessaria­ mente feito ao outro que me deu, ou me criou, mas ao radicalmente outro15, "ao Estrangeiro, que não tem comigo uma pátria comum"16. Ou seja, trata­se de uma dívida com a alteridade radical, com o outrem. Certamente, esta elaboração toma um especial interesse no contemporâneo, quan­ do esse outrem pode ser identificado às multidões de expatriados, refugiados, migrantes, foragidos, marginalizados, pobres e destituídos em geral, que vagueiam pelo mundo principalmente depois da Segunda Guerra, mas cujo êxodo se acelerou com os excessos da era neoliberal.

 

Esposito trabalha o homem moderno como sendo o Immunitas - aquele que se coloca imune ao pagamento da dívida, isento de pagá­la. Em contrapartida, o Communitas é o que está aberto ao seu reconhecimento, e que por isso mesmo é expropriado do seu eu, que deixa de ser uma fortaleza que o isola do contágio do outro. Esse pagamento/reconhecimento descentra o sujeito em relação aos desejos soberanos do eu, fazendo­se assim refém do outro em sua própria morada, esvaziado de si num movimento de sair de si (a libido do eu e do risco de seu acúmulo narcísico) em direção ao outro (expandindo a libido objetal, investindo os objetos do mundo).

 

Transpondo  do  plano  individual  para  o plano coletivo ou da cultura, dir­se­ia que o pagamento da dívida foi, na modernidade, inibido, obstaculizado, e até impedido pelo autocentramento do homem (moderno) que erigiu um culto crescente ao individualismo - tempo este que se poderia chamar de "período de neurose obsessiva da humanidade". A religião do homem moderno, seu deus, seria o eu; seus rituais: as maquinarias que desde o século xvii asseguraram consecutivamente a soberania do Estado­ nação, a disciplinarização dos corpos e agora o controle do movimento e do tempo na sociedade mundial globalizada pelo capital financeiro.

 

Como, então, efetuar a passagem do Immunitas moderno ao Communitas contemporâneo através do dom e da dívida?

 

Durante os Estados Gerais da Psicanálise, em julho de 2000, em Paris, recebemos de Jacques Derrida, o Estrangeiro, tal como ele se anuncia na conferência "Os estados­da­alma da psicanálise"17, a intimação de pensar uma psicanálise ainda por vir, necessariamente comprometida com a análise de seu presente e de seu passado através do de­ safio (e do risco) de procurar descontinuidades para o saber psicanalítico. Em outras palavras, de uma psicanálise que se faz possível contemporneamente por um salto para fora de seus limites, por um salto no indecidível de sua relação com os outros saberes e práxis. Tornando­se Communitas, quando, reconhecendo sua dívida com os outros saberes, poderá contribuir para a transfor­ mação por vir da ética, do direito, da política, da antropologia, e de tantos outros campos, e inclusive a sua própria.

 

Esta estratégia - da relação da psicanálise com os outros saberes, com outros "clãs" - permitiria, segundo Derrida, descobrir os "meios indiretos"18, as táticas para diminuir os efeitos de uma pulsão de morte irredutível nas suas várias formas de expressão, ao criar pontes, acessos, trilhas com os outros campos, capazes de driblar - minando - a posição soberana ou hegemônica de Tanatos. Em outras palavras, isso seria possível a partir de uma psicanálise que toma e é tomada em consideração pelos outros campos porque deseja fazer dom - para então poder fazer trocas - do seu saber e da sua experiência, não permanecendo num enclausuramento narcísico que a faria perder a oportunidade de participar dos destinos do con­ temporâneo, diminuindo a sua crueldade.

 

Para isso, Derrida nos mostra que é preciso ir além... Além do para além do princípio de prazer, isto é, para além da pulsão de morte, que foi inscrita por Freud numa economia do possível - que, segundo Derrida, é a que Freud realiza na elaboração de seus dois dualismos pulsionais e princípios correlatos19.

 

Sair em busca dessa não­economia ou economia do impossível, à procura desses "meios indiretos", significa ir além do território empírico da pulsão de morte, assim como também ir além de uma de suas máscaras: a pulsão de poder. Desse modo, seu pensamento move­se na direção de uma ética que delineou no horizonte sem fronteiras de nosso tempo as figuras dos incondicionais impossíveis: o dom (incondicional), a hospitalidade, o perdão, o talvez, os indecidíveis, a vinda incondicional do outro. Esse impossível, segundo Derrida, não é um negativo, mas indica que um outro eu seria capaz de perdoar, por exemplo, o que é impossível perdoar, ou fazer dom sem esperar a retribuição20, apontando assim para uma divisão do eu, da qual seria possível o nascimento de um eu ético, o eu do communitas que é sempre muitos...

 

Para finalizar. Falar sobre povos que vivem em sistemas arcaicos, originários, nos leva a dizer que não existe nada mais Ür, mais arcaico ou mais originário do que a pulsão. O livro de Mauss, e o que ele suscitou em outros autores, nos transporta ao fim e ao cabo aos "Três ensaios para uma teoria da sexualidade", mais especificamente a uma pulsão um tanto abandonada pelo pensamento freudiano, inclusive pelo próprio Freud: a pulsão de domínio - das Bemächti- gungstrieb21. Esta é talvez a mais Ür de todas as pulsões, pulsão não sexual como tal, que pode se­ cundariamente pôr a seu serviço todas as outras pulsões - como o faz na sua fusão com a pulsão de morte no sadismo e no masoquismo. Entretanto, em "Os três ensaios...", ela é uma pulsão que descreve uma crueldade originária (fase fálica) que não se acompanha de nenhum intuito de causar sofrimento. É pura potência, poder e crueldade. Poder de submeter, de se apropriar, seja da própria força, do saber (como forma de poder?), e do outro, podendo levá­lo ao aniquilamento por morte ou por humilhação.

 

Ora, estranhamente, o sistema ou a lógica do dom descrita por Mauss como fato social total, com suas três obrigações fundamentais, que tecem direitos e deveres permanentes de um grupo em relação a outro, tornando­os todos solidários e devedores entre si, parece ser movido por essa pulsão. Explicitamente no dom agonístico, desafiador e destruidor, e mais implicitamente nos dons não agonísticos, onde ela estaria mais fusionada com Eros. Embora não só por ela, pois, pela lógica do narcisismo que compreende o eu como reservatório de libido, o excesso de libido deve ser esvaziado através de investimentos objetais. O que nos remete também à problemática da castração, na sua potência de fazer perdas e separações.

 

Derrida talvez tenha chamado essa pulsão de domínio/poder de pulsão de apropriação22.


Dá­lhe uma qualidade principial, isto é, de constituir um princípio - até mesmo transcendental, no sentido de que ele organiza a experiência, embora não pertença à experiência propriamente empírica, estando aquém dos princípios de prazer, de realidade, de nirvana e dos dois dualismos.

 

Segundo o que nos deixam pensar Derrida, Freud e Mauss, neste ir além da pulsão de morte, existe a possibilidade de ir ao encontro do Ür, do originário, do principial que animou o Ürwater - o pai da horda originária de "Totem e tabu" - no seu poder e gozo irrestritos, para ir além... E só então criar uma sociedade não mais de irmãos consumidos pelo remorso e pela culpa do assassinato deste pai originário - antepas- sado de Deus, segundo Freud em "O futuro de uma ilusão" -, nem de próximos, mas uma so­ ciedade de Communitas onde vive o outrem - o outro do próximo, radicalmente desconhecido, onde o dom talvez chegue como incondicional. Seremos todos então, quem sabe, também originários, periféricos, descentrados... encantados por essa possibilidade!


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