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Resumo
Esta conferência foi dada na Universidade Veiga de Almeida, a convite de Maria Anita Carneiro, Antonio Quinet e Carmem Rodrigues Tauch (novembro de 2006). Examina as articulações entre a religião, a ciência e a psicanálise segundo três perspectivas: histórica, crítica - no sentido kantiano - e psicanalítica. Em um cenário contemporâneo no qual os discursos tecnocientíficos colonizama subjetividade e se manifesta o retorno do fundamentalismo religioso, qual o lugar possível para a Psicanálise? o autor considera que não se pode compreende-la sem a situar quanto à sua genealogia, pois, sem ser nem religião nem ciência, ela foi determinada por ambas. É preciso identificar o que na Psicanálise se apresenta como retorno do religioso e do científico, para que a direção do tratamento seja a da emancipação do sujeito tanto em relação ao discurso da religião quanto ao discurso da ciência.


Palavras-chave
genealogia da Psicanálise; ciência; religião; Kant; dialética; Lacan.


Autor(es)
Sidi Askofaré
é psicanalista da École de Psychanalyse des Foruns du Champ Lacanien, diretor do Departamento "Découvert Freudienne" da Univesidade de Tolouse 2 (Le Mirail), e diretor de pesquisa do Laboratório de Psicopatologia Clínica e Psicanálise as universidades de Tolouse 2, Provence e Paul Valéry (Mont pellier).


Notas

1 R. Debray, Les communions humaines. Pour en fi nir avec “la religion”, p. 13 -14.

2 Cf. “Les complexes familiaux dans la formation de l’individu”, in Autres écrits, p. 23 -84.

3 “Foi du charbonnier”: expressão usual na França para designar a crença ingênua, própria das pessoas simples. (Nota do revisor)

4 A expressão “causalidade lógica” – mais rara que “causalidade psíquica” – é empregada por Lacan em 1958 numa conferência apresentada na Espanha, que pode ser lida em Autres écrits, p. 165 -174.

5 J. Lacan, Télévision, p. 67.

6 Os dois primeiros termos são de Descartes; o último, de Einstein. (Nota do revisor)

7 Maître tem em francês dois sentidos diferentes: mestre, professor (maître de musique, professor de música; maître de conférences, professor encarregado de conferências, grau inicial da carreira universitária), e senhor, dono (maître d’esclaves = senhor de escravos; maître de la maison = dono da casa). Embora para discours du Maître seja preferível a tradução “discurso do Senhor”, conservamos aqui a forma com que no Brasil se costuma verter este conceito de Lacan. Do mesmo modo, maîtrise pode signifi car “mestria” (perícia) e “domínio”; é este último termo que conviria utilizar a propósito do Maître lacaniano. (Nota do revisor)

8 O estatuto do discurso da religião me parece evidente e incontestável. O caso da ciência é mais problemático, se considerarmos que há espaço para se distinguir a inscrição da ciência nos laços sociais (discurso do Mestre, da histérica ou do universitário) de um laço social fundado pela própria ciência: um laço social científi co, em suma.

9 G. Canguilhem, “Qu’est -ce que la psychologie?”, in Études d’his toire et de philosophie des sciences, p. 365 -381.

10 O autor brinca com a pequena distância que em Paris separa o Panthéon da Préfecture de police (basta descer o bulevar St. Michel). A alusão parece ser ao emprego dos ensinamentos da psicologia experimental como meio de controle social. (Nota do revisor).



Referências bibliográficas

Canguilhem G. (1968). Qu'est-ce que la psychologie? In Études d'histoire et de philosophie des sciences. Paris: Vrin.

Debray R. (2005). Les communions humaines. Pour en fi nir avec "la religion". Paris: Fayard.

Lacan J. (1974). Télévision. Paris: Le Seuil.

_____. (2002). Les complexes familiaux dans la formation de l'individu. In Autres écrits. Paris: Le Seuil.





Abstract
This lecture deals with the connections between religion, science and Pychoanalysis according to three viewpoints: historical, critical – in a Kantian sense – and psychoanalytical. In an era in which technoscientifi c ideology pervades subjectivity and when a return to religious fundamentalisms is under way, is there a place for Psychoanalysis? The author claims that the latter cannot be understood without investigating its genealogy. For, although it is neither a science nor a religion, it was determined by both. Also, if we want treatments to go towards emancipation of the patient from both the discourses of science and of religion, it is necessary to detect whatever subsists of them in Psychoanalysis.


Keywords
genealogy of Psychoanalysis; science; religion; Kant; dialectics; Lacan.

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 TEXTO

A religião, a ciência e a Psicanálise

Religion, science and Psychoanalysis
Sidi Askofaré

Tradução: Fernanda Mendes / Revisão: Eliana Borges Pereira Leite e Renato Mezan.

A religião, a ciência e a Psicanálise: foi sob este título que finalmente decidi reunir os elementos que vão constituir o motivo e a matéria desta conferência, na qual tenho a honra de os ter como ouvintes. Em relação ao projeto inicial, o tema foi ampliado por um signifi cante que não é qualquer um: o da religião. Já não seria fácil falar da ciência e da Psicanálise; acrescentar a religião – era o que faltava!



É verdade que em geral, e principalmente no contexto dos trabalhos acadêmicos, estamos mais habituados a oposições de tipo binário: Psicanálise e arte, ciência e religião, Psicanálise e política, etc. Ora, é possível que esse binarismo seja um empobrecimento, uma espécie de estruturalismo espontâneo e selvagem: e se as coisas sérias, as coisas realmente interessantes e decisivas – não é um dos sentidos da orientação borromeana do último ensinamento do Lacan? – começassem em três, e até mesmo em quatro? Examinar a tríade religião/ ciência/Psicanálise, em vez dos três binários (religião e ciência, ciência e Psicanálise; Psicanálise e religião), é de certa forma colocar essa hipótese à prova.



No entanto, a questão principal permanece: como abarcar um tema tão monstruoso? Monstruoso por sua difi culdade, por sua complexidade e por sua gravidade. Dificuldade, porque cada um dos termos remete a um campo de saberes e de práticas específi cas das quais é difícil ter um conhecimento igual e aprofundado; complexidade, porque as ligações, relações e articulações entre esses três campos não são simples, nem unívocas, nem pertencem a um contínuo. Nelas estão em jogo os acordos, os desacordos e dissonâncias da mais importante divisão no interior da civilização dita ocidental.


Gravidade, enfim – pelo menos se tentarmos, como eu, decifrá -lo a partir do discurso analítico – em virtude das apostas contemporâneas ligadas ao fato de que a ciência se tornou uma tecnociência – a ciência é inseparável do discurso da ciência, da ideologia da ciência e dos objetos tecnocientífi cos que colonizam a subjetividade e os modos de gozo de cada um – e de que a religião não pode mais ser pensada fora do que chamamos “o retorno do religioso” (como dizemos o retorno do recalcado).



A questão é no fundo – é por isso que me parece grave: qual o lugar da Psicanálise, entre o retorno fundamentalista, integrista e/ou sectário do religioso, e a dominação de um discurso da ciência submisso ao mercado?

I
A maneira mais simples, mais elementar e talvez também mais trivial de abordar esse tema que tive a ousadia de lhes propor é a histórica. Mesmo que essa perspectiva não seja a minha preferida, eu diria que três constatações a impõem:

1. religião, ciência e Psicanálise não são contemporâneas, ou seja, não emergiram no mesmo momento da história da cultura;
2. houve, e talvez ainda haja em alguma área cultural, religião sem ciência e sem Psicanálise, assim como (onde elas emergiram) houve esta sem aquela. A única hipótese que não se pode considerar é a da Psicanálise sem a ciência. Portanto, podemos dizer que há não somente relações de anterioridade, mas também de condicionalidade entre religião e ciência de um lado e Psicanálise do outro;
3. a partir disso, o termo “religião” não pode ser tomado em toda a extensão de seu conceito. Quando falamos de religião em sua relação com a ciência e com a Psicanálise, trata -se antes e essencialmente da religião cristã, a “verdadeira religião”, para retomar a expressão que Lacan empresta de Hegel.



Apesar desta última nota, veremos que o conceito geral de religião permanece válido no sistema de relações que tentaremos articular. No entanto, é no mínimo difícil construir tal conceito e chegar a um acordo sobre sua defi nição.



Na França, onde trabalho, a defi nição sociológica – que devemos a Durkheim, o fundador da escola sociológica francesa – foi a que se impôs. Permitam -me lembrá -la: “uma religião solidária de crenças e práticas relativas às coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas, crenças e práticas que unem em uma mesma comunidade moral, chamada Igreja, todos aqueles que a ela aderem”.



É a esta definição, embora canônica, se posso dizer, que objetava recentemente o filósofo e midiólogo Régis Debray:


“Não há religião sem Igreja? O hinduísmo não tem Igreja, é antes um modo de vida. Houngan e Mambo, sacerdote e sacerdotisa do culto vudu, não formam um corpo sacerdotal hierarquizado, mas essa falta de sistema animou durante dois séculos a resistência haitiana à escravidão. Há frequentemente prática sem crença: um judeu agnóstico pode celebrar o Yom Kipur, e um sikh ateu nem por isso irá ao barbeiro. E, mais numerosas ainda, existem comunidades morais sem Igreja nem prática: não há necessidade de comparecer à mesquita toda sexta -feira para se sentir e se dizer muçulmano. Em cada quatro espanhóis, três se declaram católicos, mas desses três só um vai à missa. Um em cada cinco italianos, que na maioria se declaram praticantes, nunca comparece a ela. E a própria obediência pode sobreviver à crença: um bom católico francês não crê necessariamente na Ressureição. O ‘sistema’, em suma, existe cada vez menos” [1].



Não é de estranhar então que, das ideias de Durkheim, Lacan – que foi muito durkheimiano em sua juventude [2] – tenha mantido e utilizado em sua doutrina somente aquilo que Mauss e Lévi -Strauss conservaram delas: a oposição entre magia e religião. Ali onde a magia tende a integrar o homem à Natureza, transformando as ações humanas em processos naturais, a religião, menos mecanicista, tende a integrar a Natureza na ordem humana, humanizando as leis naturais. Enfi m, é difícil defi nir uma prática humana tão universal em sua estrutura, da qual se pode dizer que é diferencial e segregativa quanto às formas, aos tipos e às encarnações.



O que permanece é que há, se não religião, em todo caso o religioso. Nele ocorrem – não apenas co presentes, mas interligados – a crença partilhada em uma transcendência (ou seja, algo que apresente três aspectos: anterioridade, exterioridade e dominância), e uma certa ligação, comunidade, ou mesmo comunhão em virtude dessa crença e dessa heteronomia.



No fundo, não será isso a religião, a partir do momento em que a consideramos de um ponto de vista não sociológico e institucional: a heteronomia radical, sentida no nível mais profundo pelos homens, e as construções simbólicas que estes edifi cam para lidar com ela?



Se essa concepção da religião for correta – é grosso modo a que vem desenvolvendo o antropólogo Marcel Gauchet desde a publicação, há alguns anos, de sua grande obra O desencantamento do mundo – poderíamos dizer que primeiro a ciência – a ciência moderna galileo -newtoniana – e em seguida a Psicanálise se constituíram sobre esse fundo, como tentativas de reduzir tal heteronomia, ou mesmo de emancipar o homem dela. A ciência apoia -se na metafísica cristã para fazer do homem “o senhor e possuidor do universo” (Roger Bacon, René Descartes), e para o fundar como subjectum; a Psicanálise, que o emancipa de seu estatuto de criatura, para convocá -lo e recebê- -lo em seu dispositivo como sujeito, ou seja, como responsável por sua posição.



Não é necessário, penso, desenvolver mais: vemos bem que, se a religião tem parte nisso, não se trata de qualquer uma. Acontece que, historicamente (por necessidade ou por contingência?), foi ao cristianismo que coube – é certo que com alguma resistência: imaginemos, para dizer o mínimo, as perseguições sofridas por Galileu – abrir a via para a nova ciência matematizada da Natureza, a ciência física. A crer em Lacan, a Psicanálise é fi lha desta ciência, e de nenhuma outra. Sem ela, sem a reforma do entendimento que ela iniciou, sem a nova fi gura do “sujeito da ciência” (Descartes), a invenção freudiana se torna propriamente inconcebível e impensável.

II
A essa perspectiva histórica é possível preferir outra, que, por sua inspiração kantiana, poderíamos qualifi car de crítica. Todo mundo sabe – em todo caso, desde que Lacan falou disso em Televisão – que no Cânone da Crítica da razão pura, e depois na Lógica, Kant resume em três questões o que ele chama “o interesse de nossa razão”: o que posso saber? O que posso fazer? O que posso esperar?



Posteriormente, uma quarta questão virá concluir sua interrogação: “o que é o homem?” Em sua visão, essa é a questão à qual conduzem as precedentes, abrindo o caminho para a construção deuma antropologia fi losófi ca. Não tenho nenhuma ambição de tratar aqui de um assunto tão vasto e tão complexo. Simplesmente, gostaria de tentar avançar, e ver no que a perspectiva aberta por Kant pode nos permitir compreender algo da articulação entre religião, ciência e Psicanálise.


Comecemos por observar que o filósofo responde a cada uma dessas perguntas, e mesmo duplamente: identifi cando, defi nindo e examinando as condições de possibilidade do campo e da prática que cuida de cada uma, e em seguida dedicando -lhe um livro inteiro.



Assim, à primeira pergunta quem responde é a ciência. Com efeito, “o que posso saber” (para Kant, isso signifi ca conhecer pela experiência e pela razão) se refere à Natureza – o fi sicamente natural, na medida em que obedece ao princípio da identidade e ao princípio da causalidade. E se posso saber algo dela, isso se deve à ciência, à aplicação do método científi co tal como se desenha na obra de Isaac Newton. A essa pergunta corresponde, portanto, a primeira Crítica, a Crítica da Razão Pura.



A questão “o que devo fazer?” é respondida pela moral enquanto não dedutível de qualquer saber positivo. Kant a examina primeiramente nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes, e, na segunda Crítica – a Crítica da Razão Prática –, propõe sua abordagem transcendental.



Uma vez feito dever enquanto sujeito moral, posso indagar: “o que me é permitido esperar?” É a essa questão que responde a religião. Kant trata dela – e o título de seu opúsculo basta para indicar que está longe de a assimilar à fé do carvoeiro [3] – em A Religião nos Limites da Simples Razão.



Na perspectiva crítica, os campos estão claramente identifi cados e nitidamente separados. A ciência é saber, mas no sentido de conhecimento da Natureza, na medida em que nela reina uma ordem de causalidade específi ca, a causalidade física, a causalidade pela Natureza. Por isso mesmo, assim que entramos no campo moral – o campo da ação, que implica o outro – o saber científi co não oferece mais nenhuma ajuda. É que a ordem da moralidade, ou ordem ética, obedece a outro tipo de causalidade: a causalidade pela liberdade, ou seja, o que Lacan, adaptando -a ao campo freudiano, chamará “causalidade psíquica” ou “causalidade lógica” [4].



É portanto além da ordem ética que se coloca a questão propriamente religiosa, a questão do que posso esperar como consequência da minha moralidade, das minhas condutas em conformidade com a lei moral.



Esse rápido sobrevoo já é sufi ciente para propor o seguinte: enquanto experiência, como prática e como saber, a Psicanálise não é a resposta a nenhuma dessas perguntas, ao menos nas formulações e acepções kantianas. Certamente, nela se trata de saber, mas tal saber não é nenhum conhecimento, e menos ainda conhecimento da Natureza. Certamente, nela se trata igualmente de ação, e mesmo de ato, mas seu princípio e sua força não dependem da obediência a uma lei moral transcendente. Claro, podemos esperar alguma coisa de uma análise, mas a Psicanálise em si não promete nada. Por sua operação, ela torna algo possível, mas a realização desse “algo” depende ao menos em parte do sujeito que se submete a ela. Lacan o formula assim: “trazer à luz o inconsciente do qual você é sujeito” [5].



A Psicanálise não se confunde tampouco com a quarta e última questão: “o que é o homem?”. Com efeito, ela não é nem uma antropologia nem um humanismo. Não opera sobre o homem – que não é nada sem Deus –, mas sobre um sujeito, um “sujeito real”, quer dizer, um “falaser”. Por este motivo, a Psicanálise só pode se situar nas questões kantianas subvertendo- -as todas, e substituindo a última por “o que sou eu?”, “quem sou eu?”, “qual o objeto que, enquanto causa, me faz desejante?”



III
A Kant, podemos – por que não? – preferir Hegel. Aliás, uma leitura superfi cial de Lacan pode fazer crer que ele mesmo sublinhava essa preferência, principalmente em virtude das numerosas referências ao fi lósofo, e dos empréstimos, numerosos também, que dele tomou para construir suas próprias categorias. Mas, independentemente das considerações biográficas, das “influências” (Kojève, Hyppolite), ou da moda, a perspectiva dialética de Hegel pode trazer por si mesma uma iluminação específica à questão que nos ocupa.



Ela pode se declinar, em boa dialética hegeliana, em três tempos.

1. Tese: a religião. E aqui “religião” não quer dizer simplesmente dizer “cristianismo”, ainda que, para Hegel, seja este que realize a essência dela. A religião é, como indiquei acima, o reino da heteronomia absoluta: heteronomia do homem, mas também da Natureza, visto que ambos estão reunidos na noção de Criação ligada à vontade e ao capricho do Criador.
2. Antítese: a ciência. Desse ponto de vista, a ciência moderna, como “ciência na qual Deus não tem nada a ver” – ou, o que dá no mesmo, como ciência atrelada a um “Deus não enganador”, um ”Deus guardião da verdade”, um “Deus que não joga dados” [6] – constitui uma tentativa de subtrair à heteronomia ao menos a Natureza, fazendo dela um campo submetido a princípios (identidade, causalidade) e a leis – portanto a regularidades – que podem ser conhecidas graças ao exercício da nossa razão.


No entanto, não há ciência sem “sujeito da ciência”, e portanto não há redução da heteronomia da Natureza sem consequências e incidências sobre o campo da subjetividade dos agentes dela. Deste fato central decorre que o sujeito da ciência apareça como dividido entre ciência e religião. É o que testemunham Galileu e Newton, assim como Descartes ou Pascal.
3. Síntese: a Psicanálise. O que, seguindo a tradição francesa, chamo aqui de síntese é evidentemente a Aufhebung hegeliana. Dou -lhes a melhor defi nição que guardei dela, e que data dos meus anos de formação, a de Louis Althusser: “ultrapassagem que conserva o ultrapassado como ultrapassado interiorizado”.


Nessa perspectiva, podemos dizer que a Psicanálise provém sem dúvida da ciência. Mas essa dependência não é exclusiva: nela retorna, com efeito, algo da heteronomia própria à religião.



Quero ser bem entendido: não digo que a Psicanálise é uma religião, nem tampouco uma ciência. O que sustento fi rmemente é que, constituída a partir da ciência, nela retorna algo que, para poder se constituir, esta última negou, ou mesmo excluiu. E esse “algo” tem a ver com o religioso, visto que lida com o pai, com o sentido e com o amor.

IV
As relações entre religião, ciência e Psicanálise também podem ser examinadas a partir de um ponto de vista mais precisamente psicanalítico. Chamemos a essa perspectiva a da estrutura, e coloquemos sob esse vocábulo tudo o que concerne à estrutura de linguagem, aos seus efeitos produtos, principalmente sobre o falaser, ao que este é como ser vivo, ao seu gozo, e sobre o laço social – ou seja, o sistema articulado e solidário dos discursos. Em outras palavras, poderíamos inserir aqui tudo o que Lacan desenvolveu sobrea religião, a ciência e Psicanálise, desde “A ciência e a verdade” (1965) até a teoria dos discursos (O avesso da psicanálise e “Radiofonia”, 1970).



Partamos de duas afi rmações triviais, que chamam a atenção por sua evidência:

1. Não há sociedade nem laço social sem religião, no sentido amplo de “sistema” simbólico e imaginário para lidar com a heteronomia por meio das crenças, dos mitos e dos enunciados que garantem, entre outras coisas, a comunidade ou mesmo a comunhão de um conjunto de falaseres;
2. Não há religião sem linguagem, sem fala e sem discurso; não há religião sem crença, sem laço, sem comunidade.

Penso que isso basta para considerar que o religioso não é uma superestrutura, no sentido em que Stalin considerava que a linguagem não o era. Ao contrário, situa -se no próprio fundamento do laço social, sendo constitutivo dele. Sob esse aspecto – como mostram os trabalhos de Pierre Clastres sobre as sociedades primitivas – o religioso precede a instauração do discurso do Mestre [7] que funda e institui a política.

Sabemos que Lacan deu um lugar à religião naquele que podemos tomar como o esboço dos seus quatro discursos fundamentais, a saber, o exame de quatro práticas humanas eminentes – a magia, a religião, a ciência e a Psicanálise – ao qual dedica a aula inaugural do seminário O objeto da Psicanálise. Sob o título “A ciência e a verdade”, o texto foi publicado nos Cahiers pour l’Analyse, e retomado nos Escritos.

O que ele diz ali da religião – opondo -a de um lado à magia, e de outro à ciência e à Psicanálise – nada tem de convencional ou repetitivo. Lembremos sucintamente os traços que a seu ver a especifi cam: denegação da verdade como causa, relação com a verdade como causa fi nal (remetendo aos fi ns últimos), desconfi ança quanto à fórmula “saber versus razão”, etc. Tampouco é repetitivo ou convencional o que diz da ciência: forclusão da verdade como causa, relação com a verdade como causa formal; busca da regularidade e da legalidade em detrimento da causa, estrutura cumulativa da relação da ciência com o saber, obsolescência programada deste último, etc.

Nem a religião nem a ciência aparecerão como discursos cardinais, fundamentais, na teoria e na formalização que, em 1970, Lacan propõe em O avesso da psicanálise e “Radiofonia”. Por quê? Sem dúvida – em todo caso, é a hipótese que formulo hoje – porque o interesse dele se deslocou da questão da relação do sujeito com a verdade para a questão de sua relação com o gozo. A função do saber (como meio de gozo) e o estatuto do sujeito (como polo de defesas) são os operadores que permitem compreender o modo específi co para tratar do gozo que cada discurso propõe e garante.

É nesse ponto, em torno do que se passa em relação ao gozo, do lugar que lhe é reservado no dispositivo discursivo, que se manifestam as diferenças, a antinomia e mesmo o antagonismo entre religião, ciência e Psicanálise.

Para dizer as coisas rapidamente, talvez um pouco rápido demais: a religião nada quer saber do gozo neste mundo. Faz dele uma recompensa, e portanto o transfere para outro mundo, o que se seguirá ao Juízo Final. Talvez uma distinção mais sutil se imponha aqui entre as três grandes tradições monoteístas, em particular entre de um lado judaísmo e islamismo – que por assim dizer deixam lugar a um “gozo” permitido pela Lei – e o cristianismo.

No que diz respeito à ciência, sua relação com o gozo poderia se resumir a isso: ela é, segundo a bela expressão de Lacan, “vetor da pulsão de morte”. Em seu processo, como em seus resultados e suas aplicações, é raro (para dizer assim) que ela esteja do lado das pulsões de vida e do lado do gozo fálico enquanto fundado sobre a castração e eventualmente sobre a diferença dos sexos.

Quanto à Psicanálise, ela é a prática e a experiência que conduz o sujeito a descobrir que o gozo não é para o “futuro radioso”, que ele só vale na medida em que, justamente, está correlacionado à castração, ao princípio da limitação e da insufi ciência (Bataille) de todos e de cada um: ao gozo fálico, mas também ao além dele – o Outro gozo, o do não - todo.

V

Terminemos com a perspectiva que propus chamar de clínica. Religião, ciência e Psicanálise são apenas práticas e instituições. Embora as duas primeiras não tenham sido elevadas por Lacan à condição de discursos fundamentais, são também discursos [8], em outras palavras, laços sociais fundados sobre a linguagem, tendo em vista lidar com o gozo. Ora, como sabemos, em Psicanálise o gozo é apenas um dos nomes do real, ou seja, do impossível.

A partir daí, podemos afi rmar que religião, ciência e Psicanálise são três modos de enfrentar o real do gozo ao qual, enquanto falaseres, somos confrontados. Vimos anteriormente que elas não se situam da mesma maneira em relação ao chamado gozo. Avançando mais um pouco: não somente são três modos de tratamento do real, mas ainda constituem, por assim dizer, três tratamentos de três reais diferentes. Pois – será preciso lembrar? – na Psicanálise o real não se declina em um único sentido.

Se fosse preciso defi nir a religião quanto ao real de que ela trata, pelo simbólico e pelo imaginário, eu diria que é o real da origem, o real do pai, e em última instância o real do tempo e da morte. Façam desaparecer a questão das origens, a questão do pai, a do tempo e da morte (e tudo o que tem relação com elas, sob a forma de angústia, de expectativa ou de esperança), e a religião aparecerá sem objeto e sem consistência.

Vimos com Kant que a ciência visa ao real da Natureza, ao real físico. Desde que, enquanto tecnociência, rompeu com a épistémè grega, a ciência moderna é o exame dessa Natureza. E só é saber e conhecimento dela para melhor a submeter e dominar. Com esta fi gura do saber que é a ciência moderna, vontade de saber e vontade de domínio se tornam por assim dizer homotéticas. Daí – consequência da translação das características dessa ciência ao campo das ciências do homem – o escorregão de tobogã (ironicamente evocado por Canguilhem) que espreita a psicologia [9], principalmente em suas orientações tecnocráticas: do Panteão para a Secretaria de Segurança! [10]

Quanto à Psicanálise, não é necessário lembrar que ela visa a circunscrever o real do sexo. Esse real do sexo é aquele que vela, esconde todo saber e todo discurso, inclusive aqueles que priorizam e reivindicam a castração em sua apreensão imaginária, ou seja, a castração como impotência. Ora, se o real do sexo é um real, não diz respeito à impotência, mas a um impossível – aquele que a cada momento o inconsciente brada bem alto: não há relação sexual. Subentende -se: relação sexual capaz de ser inscrita na estrutura, no inconsciente enquanto estruturado como linguagem.

Esse impossível de escrever – “o que não cessa de não se escrever” – é tão inaudível para a religião, que espera a relação sexual no fi m dos tempos, quanto para a ciência, que se constituiu contra o fundo da forclusão, não somente do sujeito e da verdade (isto é, da castração), mas também sobre a recusa (forclusiva?) das coisas do amor e do sexo. Daí a necessidade de outro discurso, o psicanalítico, para o receber, para o abordar, para se encarregar dele e com ele lidar.

***

Para concluir, diria que não se pode compreender coisa alguma da Psicanálise se não a situarmos no que é preciso chamar com um termo nietzscheano: a sua genealogia. Nada, com efeito, podemos entender dela sem nos darmos contra de em quê e como foi e continua a ser determinada pela ciência e pela religião. É a partir daí, e somente a partir daí, que poderia adquirir sentido a tópica que propôs Lacan em Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise: ”entre ciência e religião”. Nem uma nem outra, nem toda uma nem toda outra.


Mas também, sem dúvida, não sem uma e não sem a outra. É a condição para perceber e identifi car o que é ou o que resta de religioso na Psicanálise – abreviadamente, a transferência como nó do pai, do amor e do sentido –, e de científi co (a função da causa e sua operação como “processo de verifi cação”). Também é a condição para poder conduzir os tratamentos ao seu verdadeiro termo, o de um ateísmo do sinthoma e da falta de garantia no Outro: S (A barrado), única emancipação real do sujeito tanto da religião quanto do discurso da ciência.


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