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Resumo
As personagens do conto “O escorpião e a tartaruga”, de Fabio Herrmann, participam do denominado Projeto P e demonstram a epistemologia da Psicanálise explorada pela Teoria dos Campos: não se está particularmente envolvido com o resultado obtido pelo método psicanalítico, mas com a forma de produção do conhecimento adquirido. Tanto o personagem Prof. Nigrius como Herrmann lançam mão de um erro necessário para levar a cabo seus respectivos projetos P – de Piltdown no caso de Nigrius e Psicanálise no caso de Herrmann.


Palavras-chave
erro necessário; epistemologia psi- canalítica; ficção freudiana; Fabio Herrmann.


Autor(es)
Fernanda Sofio
é psicoterapeuta, mestranda em Psicologia Clínica pela PUCSP, membro do CETEC.


Notas

1 F. Herrmann, "Segunda meditação:  o  análogo",  in Da clínica extensa à alta teoria - meditações clí- nicas, inédito.

2 F. Herrmann, "Sobre  a  verdade como  tensão  en- tre invenção e descoberta", in Da clínica extensa à alta teoria: meditações clínicas, Quarta Meditação, inédito & "A arte da interpretação", in Clínica psi- canalítica: a arte da interpretação, cap. 6.

3 Fabio Herrmann denomina o teorizar  sobre  o méto- do da Psicanálise de alta teoria. Conforme desvelado pela Teoria dos Campos, pode ser caracterizado pe- los conceitos metodológicos de campo, ruptura de campo, vórtice e expectativa de trânsito. Já o termo clínica extensa enfatiza o ato clínico da Psicanálise que, apropriando-se desse método, supera o proble- ma da moldura psicanalítica, mais frequentemente conhecida por setting. A clínica extensa pode se dar tanto dentro como fora do consultório e as prospec- ções do solo do quotidiano (Herrmann, 2001), bem como as ficções freudianas de Herrmann (2002) são exemplos de clínica extensa.

4 F. Herrmann, Introdução àTeoria dos Campos, p. 15.

5 Andaimes do real: psicanálise do quotidiano.

6 F. Herrmann, "A infância de Adão", in A infância de Adão  e  outras ficções freudianas, p. 77-114.

7 F. Herrmann, "Bondade", op. cit., p. 35-8.

8 F. Herrmann, "O escorpião e a tartaruga", op. cit., p. 125-45.

9 F. Herrmann, "Notícia de Límbia", op. cit., p. 21-34.

10 F. Herrmann, "O escorpião e a tartaruga", op. cit., p. 127.141.

11 F. Herrmann, op. cit., p. 127. 12 F. Herrmann, op. cit., p. 140. 13 F. Herrmann, op. cit., p. 141. 14 F. Herrmann, op. cit., p.

15 Cf. F. Herrmann,  "Acerca da  mentira  e  do  erro  necessário",  in Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, cap. 3.

16 Cf. J. S. Weiner, The Piltdown Forgery.

17 F. Herrmann, "O escorpião e a tartaruga", op. cit., p. 139.

18 F. Herrmann, op. cit., p. 139.

19 F. Herrmann, op. cit., p. 139.

20 Em sua narração, quarenta anos mais tarde, Píter satiriza:  "nosso ambiente era muito mais controlado do que podíamos imaginar", referindo-se aos ciúmes de Ricardo, quando encontrara-o namorando Estela. F. Herrmann, op. cit., p. 128.

21 F. Herrmann,"Acerca da mentira e do erro necessário", op. cit.

22 F. Herrmann, op. cit., p. 142.

 



Referências bibliográficas
Herrmann F. (2002). A infância de Adão e outras ficções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo.

         . (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

         . (2001). Andaimes do real: psicanálise do quotidiano. São Paulo: Casa do Psicólogo.

         . (1993). Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense.

         . Da clínica extensa à alta teoria: meditações clínicas. Inédito.

         . "Segunda meditação: o análogo". In: Da clínica extensa à alta teoria: medi- tações clínicas. Inédito.

         . "Sobre a verdade como tensão entre invenção e descoberta", in Da clínica extensa à alta teoria: meditações clínicas. Quarta meditação. Inédito.

Herrmann L. (2007). Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Weiner J. S. (1980). The Piltdown forgery. Nova York: Dover Publications.





Abstract
The characters of the short-story “The scorpion and the tortoise” by Fabio Herrmann participate in a denominated Project P, and in doing so they demonstrate the epistemology of Psychoanalysis as discovered by the Multiple Fields Theory: the emphasis is not on the result obtained by the psychoanalytic method, but on the form by which new knowledge is produced. Both the character Prof. Nigrius and Fabio Herrmann strategically make use of a necessary error to address their respective Project P’s – for Piltdown in Nigrius’ case and Psychoanalysis in Herrmann’s.


Keywords
necessary error; psychoanalytic epistemology; freudian fic- tion; Multiple Fields Theory.

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 TEXTO

O escorpião e a tartaruga: o conceito de erro necessário levado às últimas consequências

The scorpion and the tortoise: The concept of necessary error taken to its last consequences
Fernanda Sofio

Ficção freudiana

Na perspectiva da teoria do análogo de Fabio Herrmann, a li­ teratura de ficção é imprescindível à Psicanálise, pois é do lugar da literatura de ficção que o psicanalista conversa com seu paciente, desde um campo diferente daquele proposto, que escreve teoria, cria prototeorias, interpreta e investiga o quotidia­ no. A literatura de ficção seria o reino análogo da Psicanálise nesse sentido, bem como a matemática seria o da física, pois o físico necessita da matemática para fazer teorização1.

 

No atendimento clínico, a ideia é que o analista não está envolvido com a verdade do que é contado, preso ao fato em si narrado pelo paciente, mas com sua função interpretativa, seu valor heurístico: por ruptura de campo surgem novos sentidos possíveis para representações trazidas pelo paciente, conforme veremos alguns exemplos. É nesse sentido que a tese de que o reino análogo da Psicanálise é a literatura de ficção ganha força2.

 

Essa proposta aplica­se a qualquer psicanálise, da clínica extensa à alta teoria3. Nesse sentido, a Teoria dos Campos é ambiciosa. Vislumbra e caminha na direção do horizonte de vocação da Psicanálise, de se tornar ciência geral da psique4. Constrói psicanálises possíveis, como no exercício de prospecção do solo do quotidiano, citado acima em nota de rodapé5, trabalhando a função terapêutica do método da Psicanálise. Expõe suas próprias teorias em forma de literatura de ficção


do qual o livro A infância de Adão e outras fic- ções freudianas é um ótimo exemplo, exibindo  a lógica de concepção dessas teorias, fazendo uso, através de metáforas, do estilo irônico que lhe é característico. Nesse livro, composto por uma série de contos ou ficções freudianas, Fabio Herrmann vale­se exclusivamente  de  literatura de ficção na (re­)teorização de diversas teo­ rias trabalhadas pela Teoria dos Campos e na retransmissão de seu pensamento.

 

Os contos exploram ideias já desenvolvidas em diversos escritos em sua obra, re­exploradas agora pelas tramas criadas para os personagens dos contos. Alguns exemplos de temas trata­ dos são o inconsciente, a sessão analítica, a arte da interpretação. Ganham nova roupagem, ampliando seu campo de sentido, nestas denominadas ficções freudianas. O conto "A infância de Adão", por exemplo, trata do processo analítico por dentro, conforme conhecido pelo homem psicanalítico, desde a perspectiva do divã.

 

As ficções freudianas são exercícios em alta teoria, altíssima, eu diria. Herrmann não tra­ ta apenas de questões metodológicas inerentes à Psicanálise, como também operacionaliza seu pensamento. Trabalha a epistemologia interna da Psicanálise e cria teorias, das quais a teoria do análogo merece ser ressaltada: todo o livro operacionaliza a teoria do análogo, tratando os desenvolvimentos da Teoria dos Campos em forma de contos. Herrmann recria­se em personagens, que enfrentam as velhas questões crítico­heurísticas da Psicanálise, estas discutidas ao longo de toda a sua obra. Herrmann brinca, contudo rigorosamente, com o tema da ficção e da metafic­ ção, demonstrando a teoria do análogo em sua última consequência, empregando diferentes re­ cursos literários em cada conto - mito, poesia, fábula, lenda, crítica, criação clínica.

 

Para colocar dois breves exemplos, o citado conto "A infância de Adão"6, o qual dá nome ao livro, é a história de uma infância que não houve: o primeiro homem bíblico, que já nasceu adulto, entra em processo de análise. Não se tra­ ta de uma exploração da teoria psicanalítica em si, mas da operacionalização da teoria psicana­ lítica. Paralelamente, "Bondade"7 é a psicanálise de um sentimento, tendo por referência a his­ tória de vida escutada de uma jovem senhora. Herrmann escreve contos dos mais variados, so­ bre temas os mais diversos. É dessa forma que, a meu ver, procura demonstrar a teoria do análogo e explorar outras formulações da Teoria dos Campos.

 

"O escorpião e a tartaruga"8

O conto começa relatando uma sessão de ho­ menagem na Academia de Ciências de Límbia. O salão nobre receberá o nome de um de seus luminares. O leitor é apresentado, então, a três deles, a Dra. Estela de Navas, experiente bióloga, o Prof. Píter Ortiz, célebre filósofo, e o Prof. Ricardo Monsar, eminente físico. Límbia é um lugar imaginário, mas, também, uma metáfora da Teoria dos Campos, conforme se revela no primeiro conto do livro "Notícia de Límbia"9. Na festa que segue, em casa  de  Píter,  depois da homenagem, o leitor é informado que, uns quarenta anos antes, o Prof. Nigrius convidara os três, jovens e brilhantes cientistas, a participarem do Projeto P. Píter relembra a seus dois colegas como Nigrius explicou­lhe a ideia do projeto: queria descobrir "o que é que faz um gênio, um descobridor, alguém que chega àquilo que, à frente dos mesmos dados, ninguém mais é capaz de cogitar"10.

 

O objetivo de Nigrius era entrar nos meandros da produção de conhecimentos em Ciên­ cias de Límbia, tomada por Herrmann como


uma metáfora para a Teoria dos Campos. E sua questão fundamental: como se constrói o conhecimento? Penso tratar­se aqui de uma metáfora das explorações a que Herrmann se dedicava sobre a própria construção do conhecimento em Psicanálise. No Projeto P, os jovens cientistas deveriam fazer suas investigações sem revelar suas descobertas aos colegas, só ao encarregado do Projeto P. No dizer da Teoria dos Campos, Nigrius investiga como se chega a uma ruptura de campo. Ricardo lembra­se da proposta: Nigrius lhe pedia que fizesse uma descoberta, qualquer que fosse, embora milhares de outros bons físicos não houvessem tido sucesso: "o pequeno detalhe de que eu poderia nunca chegar a qualquer resultado não o parecia mo­ lestar minimamente"11. A pesquisa de Nigrius é sui generis, seu interesse não está posto naquilo a ser descoberto, mas na forma como se chegará à descoberta.

 

Anos depois, Nigrius designa Píter como subdiretor do Projeto P e, passados cinco anos mais, como diretor­chefe. Ricardo e sobretudo Estela, que desconheciam o teor das descobertas de Píter, pois estas ficavam mantidas sob sigilo, mostravam­se intrigados e bastante incomoda­ dos pelas consecutivas promoções do colega.

 

Muitos anos se passaram antes que Nigrius contasse a Píter que o P em Projeto P não era  de Projeto, conforme imaginavam os três, mas de Piltdown. Explicou: "A comprovação de uma teoria significa que se encontrou a chave que abre certa fechadura. Porém, o verdadeiro tra­ balho é construir a fechadura e colocá­la na porta. Confeccionar a chave é relativamente fácil depois"12. O interesse estava na forma como se levanta uma questão inovadora, abrangendo um novo campo de pesquisa, não em respondê­la. Afinal, para se responder a uma pergunta, é ne­ cessário, sobretudo, formulá­la.

 

Explanando um pouco mais, Nigrius toma a fábula do sapo e do escorpião como outra me­ táfora do Projeto P. O escorpião pede uma carona ao sapo para atravessar o rio. O sapo teme ser ferroado, mas o escorpião explica logicamente que não o ferroará, pois, morto o sapo, morreria também o escorpião afogado. O sapo concorda em dar a carona, é ferroado e, ao afundarem, o escorpião se desculpa: "é minha natureza". A moral da história para Nigrius é que  "a lógica não suplanta o instinto", ou talvez "olhe bem quem está subindo em suas costas"13. A explicação, embora coerente, não correspondia à natureza daquela situação. Ao sapo faltou sensibilidade, talvez esperteza.

 

Nigrius continua sua exposição, introduzindo uma outra fábula, a do escorpião e da tartaruga. Um escorpião, primo do que morreu, procura um sapo a quem pedir carona. Não encontran­ do um sapo, pede carona a uma tartaruga - que, de tanto rir, quase se afoga, pois conheceu o destino do pobre sapo. O escorpião insiste e convence a tartaruga. Ao atravessarem o rio, o escorpião crava o ferrão na carapaça tartaruga, que se irrita. O escorpião ruboriza e dá a desculpa conhecida: é minha natureza. Protegida pela carapaça, a tartaruga não morre e pede que o escorpião retire seu ferrão - operação impossível e que prende o escorpião à tartaruga para sempre. Acabam por tornarem­se amigos, montando a tartaruga, a seguir, um serviço de transporte fluvial14.


Usando a fábula como metáfora da epistemologia própria da Psicanálise desvelada pela Teoria dos Campos, podemos inferir aqui que seus pontos cardeais resumem­se ao pensamento por ruptura de campo que não teme o erro (a tar­ taruga no lugar do sapo), mas toma­o em consideração e lhe dá um lugar no processo heurístico de descoberta de novos conhecimentos15.

 

P de Piltdown

O Projeto P do Prof. Nigrius faz referência ao Homem de Piltdown16, como vimos. Já o metafórico Projeto P de Herrmann nesse conto é a construção de uma epistemologia em que caiba a Psicanálise, como vimos também. A ironia é evidente, visto que o Homem de Piltdown é provavelmente o mais famoso caso de fraude científica do século xx17. Supostamente entre 1908 e 1912 o pesquisador Charles Dawson, para comprovar a teoria de Charles Darwin de que o ser humano evoluiu do macaco, usa a mandíbula de um orangotango deliberadamente acoplada ao crânio de um ser humano moderno, oferecendo o elo que faltava na comprovação da evolução do homem a partir do macaco, o tão procurado elo perdido. Hoje não há dúvidas de que o homem não evoluiu do macaco. No entanto, a fraude só foi reconhecida no meio científico em 1954. Até essa data o crânio supos­ tamente encontrado em Piltdown, na Inglaterra, ficara guardado a sete chaves, enquanto outros fósseis pré­humanos eram aos poucos desenterra­ dos,"mas nenhum como H. P. Lógico"18.

 

Apesar de fraudulento, o H. P. foi muito importante para a produção de conhecimento.

 

Propiciou que se continuasse a estudar as teorias de Darwin e que se prosseguisse na busca  e no estudo de outros fósseis pré­humanos. Es­ creve Herrmann, desde a perspectiva do Prof. Nigrius, nas palavras de Píter: "Nigrius alimentava o maior respeito pelo H. P. Ele achava que sua influência, como estímulo para a busca de restos proto­humanos, fora extremamente positiva. Ele deu forma concreta à ascendência humana, os outros pesquisadores tinham algo para buscar e a certeza de que o podiam encontrar. O resto foi só tempo e esforço"19. Herrmann coloca nas palavras de Nigrius sua concepção de erro necessário, aquele que oferece sempre a possibilidade da continuidade de uma pesquisa, de uma investigação, tanto nas ciências tradicionais, das quais a arqueologia, bio­ logia e física são exemplos, como na Psicanálise.

 

A farsa do homem de Piltdown vingou por mais de quarenta anos, aproximadamente o mes­ mo tempo que perdurou a ignorância  de Estela e Ricardo acerca dos objetivos no Projeto P no conto. Foi vedado a Estela, Ricardo e Píter o ver­ dadeiro objetivo de Nigrius, e que o P em Projeto P era de Piltdown, pois essas informações comprometeriam o andamento do projeto e seus resultados. Os jovens cientistas esperavam realizar suas pesquisas em "ambiente controlado", outra grande ironia, visto que em ambiente perfeitamente controlado, onde tudo ocorre conforme o previsto, não há possibilidade de descoberta20. A epistemologia própria da Psicanálise e desvelada pela Teoria dos Campos desabona por completo a noção de ambiente controlado, tão comum às pesquisas científicas tradicionais, e propõe o contrário: para a produção de conhecimento é imprescindível que se deixe de lado a preocupação sobre onde o experimento irá levar e qual será o resultado de uma ruptura de campo.

 

Por serem muito inteligentes, Nigrius esperava que Estela, Ricardo e Píter descobris­ sem alguma coisa de valor científico, embora o que mais lhe interessasse, como vimos, fosse a forma como chegariam a esse resultado. Estava interessado no processo heurístico de uma descoberta científica, em conhecer a forma pela


qual se chegou àquele conhecimento, não importando o objeto de estudo. Estela optou por pesquisar cepas de musaranhos que, por mutação genética, haviam se tornado extremamente agressivos, mas não mais desenvolviam carcinomas, e Ricardo, por investigar o Propulsor Referencial em Física, chegando às bases teóricas da física quântica. A Píter, enciumado pela formação do recente casal, Estela e Ricardo, restou acompanhar as pesquisas de ambos, o que caracterizaria o estudo da forma da produção de conhecimento de cada um, o próprio foco do Projeto P. Daí ter sido nomeado primeiro sub­ diretor e depois diretor­chefe do projeto.

 

Parece­me que o personagem Prof. Nigrius recorreu ao conceito de erro necessário levado às últimas consequências: ao elaborar o Projeto P, Nigrius convidara os jovens cientistas a se de­ dicarem a uma descoberta importante em suas respectivas áreas, sem se preocupar com a descoberta mesma, mas com a forma pela qual ela se daria. Em Psicanálise, conforme a exploração metodológica feita por Herrmann, trabalha­se em alta teoria, privilegiando o método, a forma de se chegar a uma teorização na construção de conhecimento, não o resultado particular alcançado sobre uma situação clínica, como vimos. Ironicamente, Nigrius recorre a uma farsa: o Homem de Piltdown, o erro necessário em última instância,  como  metáfora de sua investigação. Os jovens cientistas não se ocupam diretamente com o recurso à farsa, não são informados que o Projeto P fazia refe­ rência ao Homem de Piltdown, bem como os psicanalistas não pensam constantemente nos conceitos metodológicos enquanto deixam que surja o sentido do paciente, quando se trata de um atendimento clínico, ou de outro sujeito de pesquisa: está­se ocupado com o sentido, com a prototeoria em questão.

 

Em seu livro Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, Fabio Herrmann explica que, na clí­ nica psicanalítica, quando um paciente concorda rápido demais com os toques interpretativos do analista, não demonstrando sinais suficientemente visíveis de resistência, é forçoso recorrer ao erro necessário: deliberadamente provocar sinais de resistência, para que a análise se sustente21. Esta ruptura de campo é preciosa à clínica psicanalítica. Não se trata de uma forma de enganar o pacien­ te, mas de um recurso clínico para que a análise caminhe em direção à cura psicanalítica. Nigrius também lança mão de um erro necessário na for­ mulação da pesquisa e mantém isto em segredo. Não diz aos jovens que está buscando chegar à forma de construção do conhecimento; deixa­os pensar que o importante é a descoberta. Um erro necessário que dura quarenta e muitos anos.

 

Voltando a Nigrius, explica, concluída a pesquisa: "O escorpião pode representar a mentira, a tartaruga, a verdade. Claro que a mentira pode matar a verdade, mas a verdade em si não monta qualquer negócio. [No conto a tartaruga monta, com o escorpião, um serviço  de  transporte fluvial que funciona]. Se uma mentira injeta seu veneno sem matar a verdade, ficam ambas grudadas e têm de aprender a conviver. Este ser híbrido, o escorpião sobre a tartaruga, a mentira cravada na verdade, é o que chamamos de conhecimento"22.


Podemos pensar o escorpião como a proposta de convidar Estela e Ricardo a pesquisarem qualquer problema - ela na biologia, ele na física -, sem lhes explicar que o importante não seriam os resultados atingidos, mas a forma de atingi­los; é a farsa do Homem de Piltdown. A tartaruga representa os resultados das pesquisas dos jovens cientistas. E o escorpião cravado na tartaruga, o ser híbrido que permanece cruzando o rio de uma margem à outra, é o Projeto P como um todo, a descoberta epistemológica a que chega Píter, o conhecimento por ruptura de campo metaforizado na consideração de Nigrius sobre ser o importante na ciência a construção de uma nova fechadura e não a comprovação de que se encon­ trou a chave que abre certa fechadura. Em relação ao projeto do conto de Herrmann, já podemos falar em P de Psicanálise. O erro necessário é o recurso de que lançam mão Nigrius, Herrmann e qualquer psicanalista, para promover a investigação da psique, em determinados casos.

 

Ps. No final do conto, fica evidente que o salão nobre da Academia de Ciência de Límbia não recebeu o nome de Píter, como no começo parecia, mas o do Prof. Nigrius. Afinal o método e a alta teoria são as eminências pardas da Psicanálise, segundo a Teoria dos Campos.


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