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Resumo
Neste artigo a autora trabalha o conceito de erro necessário, de Fabio Herrmann, em suas perspectivas clínica e ontológica. O texto explica como, no pensamento da Teoria dos Campos, é a conjunção dos conceitos de erro necessário e mentira original que permite a reflexão sobre o originário do nascimento do humano no homem e na cultura.


Palavras-chave
Teoria dos Campos; erro necessário; mentira original; Fabio Herrmann.


Autor(es)
Leda Herrmann


Notas

1 G. Bachelard. Ensaio sobre o conhecimento apro- ximado.

2 G. Bachelard.  "Objetividade  e  retificação.  O  pa-  pel do detalhe no que é objetivo", in  Ensaio  so- bre o conhecimento aproximado, p. 245-58. A questão da necessidade da consideração do erro   é introduzida de forma aparentemente paradoxal. Bachelard aponta um dilema. Afirma que a ciên-  cia especulativa quer saber para saber,  exigindo do pesquisador "aprofundar a compreensão da substância" (p. 246), ou seja, exigindo conhe- cimento objetivo. Mas há um outro foco para a consideração da substância, o da "extensão" do fe- nômeno e da forma como é descrito. Trata-se aqui, segundo Bachelard, não mais do reino da ciência, mas do reino da doutrina. Para ele são os "erros de extensão" que levam aos "erros de compreensão", daí a necessidade de considerar o erro.

3   Uma  abordagem  resumida  da Teoria  dos Campos

pode  ser  encontrada  no  capítulo  "Introdução",  in F. Herrmann, Andaimes do real: o método da psi- canálise, p. 13-36.

4 F. Herrmann, "Acerca da mentira e do erro necessário", in Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, p. 43-66.

5 F. Herrmann, "Nossa clínica", in Introdução à Teoria dos Campos, p. 195-211.

6 Agradeço à generosidade da colega Maria da Penha Zabani Lanzoni pela autorização do uso de material clínico  seu  e que foi por ela trabalhado como relato clínico em outro contexto.

7 L. Herrmann, Andaimes do real: a construção de um pensa- mento, p. 232.

8 F. Herrmann, "Acerca da mentira e do erro necessário", in Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, p. 54-5.

9 F. Herrmann, "Acerca da mentira e do erro necessário", in Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, p. 55.

 10 L. Herrmann, Andaimes do  real:  a  construção  de  um  pensamento, p. 238.

 



Referências bibliográficas

Bachelard G. (2004). Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto.

Herrmann F. (2001). Andaimes do real: o método da psicanálise. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo.

         . (2001). Andaimes do real: psicanálise do quotidiano. 3. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo.

         . (2004). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Herrmann L. (2007). Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Pau­ lo: Casa do Psicólogo.





Abstract
The author considers Fabio Herrmann’s concept of necessary error in its clinical and ontological perspectives. She explains how the conjunction of the concepts of necessary error and original lie allows for a specific discussion, pertaining to the question of the psychoanalytical concept of the original related to the birth of hu- man sense in man and culture. The framework of the article is the Multiple Fields Theory.


Keywords
Multiple Fields Theory; necessary error; original lie; Fabio Herrmann.

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 TEXTO

Erro necessário: uma construção clínico-ontológica da Teoria dos Campos

Necessary error: a clinical-ontological construction in the Fields Theory
Leda Herrmann

O erro nos atemoriza. A nós, psicanalistas clínicos, principalmente quando iniciantes. A nós que temos, também, a pretensão de oferecer alguma contribuição a este saber que implica conhecimento e cura. Em ambas as condições estamos comprometidos com a cura. A responsabilidade inerente a essa tarefa confere ao risco do erro uma tentação natural a evitá­lo. No entanto, mais atemorizados, ou menos, ao erro estamos sempre sujeitos.
 

Mas não estamos sós nesse temor. A ciência moderna, de filiação cartesiana e iluminista, no afã de objetivar e precisar o conhecimento, procurou sempre trilhar o caminho de evitar o erro. Gastón Bachelard, em sua tese de doutorado de 19281, de­ fende que o conhecimento científico, embora sistemático, é sem­pre um conhecimento aproximado, ele nunca alcança a condição de definitivo nem de perfeito. É com esse trajeto que Bachelard vai deparar e refletir sobre o problema da verdade e do erro na construção do conhecimento. Bachelard introduz o problema do erro como um possível caminho para o saber da ciência. Isto é, propõe considerar o erro, pensar o erro e não apenas evitá­lo2. Voltando ao nosso labor clínico, ao erro podemos nos cegar se enxergarmos nossos pacientes a partir de lentes teóricas sem nos permitir escutar o que deles surge. Com essa afirmação adentramos pelos caminhos da Teoria dos Campos. Ela toma a Psicanálise por seus fundamentos, não descarta as construções teóricas de seus grandes mestres, principalmente do fundador Freud, mas a perspectiva de sua produção clínica ou teórica é sempre metodológico­operacional3.

 

Na obra de Fabio Herrmann4, o conceito que constrói de erro necessário tem origem na clínica, pois é ele que nos auxilia na retirada das lentes teóricas e nos coloca na perspectiva de progredir na compreensão do paciente. É também pela conjunção do conceito de erro necessário com   o de mentira original que o autor, por meio de uma fábula, encontra o originário do nascimento do humano no homem e na cultura. Daí minha afirmação no título deste artigo da condição de uma construção ontológica para o conceito de erro necessário.

 

O erro e a clínica

No capítulo acima citado, Fabio faz uma distinção entre erro e disparate. O erro aponta para o que não é, dentre as alternativas para o que  é, enquanto no disparate cabe qualquer coisa. Uma resposta errada respeita os contornos gerais da resposta que se espera, mas não acerta tudo, não acerta uma distinção final. Ele usa de um exemplo interessante:

 

O aluno que acerta uma questão na prova de história pode tê­la decorado; o que erra discernivelmente compreendeu, localizou o ponto, mas lembrou o que não devia - quem merece mais, o estudante que diz que Colombo descobriu a América ou um hipotético garoto que respondesse ter sido nosso continente descoberto por um navegador genovês a serviço dos Reis Católicos, nos fins do século xv, cujo nome esqueceu? (p. 49).

 

Para a Teoria dos Campos o trabalho interpretativo implica errar, sendo essa a condição de progresso na possibilidade de compreender o paciente. O como errar é o x da questão. Entendi­ da a interpretação como um ato falho a dois5, há que se pensar o erro como uma espécie de má compreensão, ou equívoco das tendências que comumente chamamos de contratransferenciais. O erro que se apresenta naturalmente para o analista favorece o prestar atenção a seus efeitos e supõe duas condições indispensáveis. A primeira exige que um paciente seja compreendido claramente em sua especificidade. Análises conduzidas de formas muito gerais, que no fundo buscam a confirmação dos pressupostos teóricos de preferência do analista, levam a in­ diferenciações diagnósticas em que o que vale para um paciente vale para muitos outros. A segunda previne a tentação de corrigir o erro imediatamente, impedindo que a ação benéfica do erro possa se realizar.

 

O recurso ao exemplo clínico é esclarecedor e adequado neste ponto6.

Um jovem que procurara análise por sentir­se em dificuldades em seus relacionamentos sociais, alegando ter perdido a espontaneidade de viver e não conseguir discernir as regras do jogo do convívio social, nem o que os outros esperam dele, marca sua presença nas sessões estabelecendo uma distância quase intransponível com a analista e consigo mesmo. Não falta, mas ausenta­se em seus prolongados silêncios. Juntos, estão sós nas sessões, analista e paciente.

 

Em uma dessas típicas sessões, permanece 20 minutos em silêncio. Interrompe­o e conta ter ido ver com um amigo um jogo de futebol na noite anterior, em que estava jogando quase a metade da seleção brasileira. Relembra que quando criança costumava ir ao campo de futebol com o pai, o tio e um irmão. Respondendo a uma pequena intervenção da analista, confirma que não torce por nenhum time de São Paulo. Só quando criança torcia por um time em sua cidade natal e pelo Corinthians aqui, e, em seguida, ressalta que "ontem não tinha paixão", e que o interessante era observar a violência das duas torcidas e a polícia tentando manter a ordem. Descreve o tipo de violência, opinando ser tudo ao mesmo tempo individualista e gregário e que ele pôde ficar "na boa", sem participar. Diferente de sua experiência de criança, quando jogava, tinha opinião e participava.

 

Nesse momento a analista, intempestiva­ mente, faz uma pergunta: "E você gostou do jogo?" E ouve do paciente um sonoro e peremptório não, seguido, em tom mais ameno de quase um desabafo: "Mas valeu, foi interessante, mas agora estou mais racional, não sei, foi diferente".

 

A sessão segue com o paciente descrevendo como gostava de jogar futebol, mais do que qual­ quer outro jogo como, por exemplo, carrinhos. Com a ajuda de algumas intervenções da analista, conta que jogava bem, mas precisou parar de jogar por ter se machucado. Descreve com detalhes as condições em que entrou no jogo e o acidente sofrido. Foi no jogo decisivo do campeonato do colégio. Ele não era escalado porque brigara com o treinador. Mas nesse jogo, porque o amigo titular estivesse machucado, ele entrara em seu lugar. Aos cinco minutos, numa dividida em que tinha conseguido chutar a bola, caindo em seguida, ele rom­ pera os ligamentos do joelho e fraturara a tíbia. Não foi atendido na hora, só depois do término do jogo e por um estudante de medicina, amigo do pai. Precisaria sofrer uma cirurgia que também foi sendo adiada e, segundo ele, malfeita. Como consequência, sua perna ficou torta e, apesar de ter se submetido a tratamento fisioterápico, ela também ficou dois centímetros mais curta que a outra. Precisou desistir do futebol, tentou o tênis, mas também desistiu, pois não iria ser tenista, como hoje, que cursa filosofia como poderia cursar qualquer outra coisa, mesmo para ser professor de filosofia. A pergunta que brota espontaneamente na analista: "E você gostou do jogo?" estranhou­a, pois afirma em seu relato que não era seu papel estar atenta para o acontecido no jogo a que o paciente foi assistir. Um erro técnico, mas que pôde suportar. E foi esse erro que  possibilitou ao paciente aproximar­se de seu sofrimento diante da analista, deixar de lado seu padrão emocional nas sessões de distanciar­se do sofrido, teorizando psicanaliticamente o sofrimento fosse o seu ou o de alguém próximo. A paixão e o empenho assustam esse paciente, pois as consequências ao enfrentá­los podem ser danosas como foi sua paixão pelo futebol. A paixão deixa sequelas e por isso ela tem que ser calada, vivida no silêncio das sessões e no distanciamento da analista. Escreve Maria da Penha em seu relato:

 

Mas é evidente que a pergunta teve um efeito psicanalítico porque ela foi feita dentro do campo transferencial, um efeito que rompeu um campo no qual o paciente se situava, o campo do distanciamento, aquele no qual é capaz de ficar "na boa", como ele mesmo diz, para ter de posicionar­se diante de mim com um "não" peremptório, para ter um sentimento forte diante de uma pergunta que o chama e o sacode para um outro lugar. Teve ainda um outro efeito, o efeito de arremessá­lo para um tempo onde estas paixões ocorriam com uma intensidade enorme, intensidade talvez comparável ao seu "sonoro não". A apreensão do sentimento nele mesmo, muito próximo, propiciou a apreensão no passado remoto, ele que o estava apreendendo num passado mais recente, no jogo de "ontem".

 

O erro e a invenção do humano (erro necessário)

Para as considerações do viés ontológico do conceito de erro necessário, penso ser importante situar o tema geral que Fabio explora no capítulo acima citado de seu livro Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, ou seja, penetrar a neutralidade presente na raiz da concepção de quotidiano. Considera tal neutralidade uma função, a rotina, que recobre os acontecimentos do dia a dia de coerência e unidade de sentido. Aos eventos do quotidiano  dá­se  comumente o apelativo de realidade. Observa a tendência a uma psicologização radical no trato com  o tema da realidade, reduzindo­a à condição de uma variável subjetiva do tipo "o que é real pra mim não o é para você". Para Fabio, trata­se de um recurso extremo de sustentação de uma ontologia em crise. Aponta duas vertentes nessa forma de se considerar a realidade que isolam reconhecimento e constituição, a psicológica e a filosófica. A primeira trata do reconhecimento e da representação da realidade, indo em busca da descrição dos processos mentais a eles cor­ respondentes. A filosófica, por seu lado, pro­ cura dar conta do que constitui a categoria do existente pela busca de sua anterioridade lógica. Encontra uma tendência comum de certa introversão nesses métodos de  conhecimen­to  sobre  o  homem  e  seu  mundo. Para Fabio, o método psicanalítico de ruptura de campo é uma proposta de superação, pois não se detém nas fronteiras impostas por essa tendência de introversão, operando nos dois lados por elas implicados, alheio à dicotomia entre reconhecimento e constituição. Encontra, assim, para a realidade a condição de representação.

 

Contornada essa primeira pedra no seu caminho de reflexão sobre a constituição da realidade, empenha­se na consideração de outra, a concepção de originário em Psicanálise. Tendo já resumido os argumentos dessa reflexão em meu livro, reproduzo­os aqui:

 

Afirma que, do ponto de vista psicanalítico, originário não tem acepção genética, não é o primeiro elo de uma cadeia de geração linear. Encontra para a noção de origem em Psicanálise um princípio de evidenciação, pelo qual originária é a relação que deixa ver o limite e todo o significa­ do de um fenômeno, mostrando sua generalidade sem deixar de lado sua especificidade. Não vai nunca demonstrar os processos concretos duma operação psíquica, nem recuperar sua cadeia genética a partir da primeira infância. Afirma que a forma que tomam as teorias psicanalíticas, de cadeias de origem concreta, não passa de uma ilusão projetiva, pois são impossíveis as provas empíricas da existência no bebê dos processos que são descobertos pela interpretação no paciente adulto - o que torna procedimento questionável metodologicamente a projeção retrospectiva de elementos da constituição psíquica posterior, deduzidos interpretativa­ mente. Ao pensar a origem da realidade quotidiana não pretende mostrar como ela nasce concretamente seja no bebê, seja no adulto, nem quer determinar quais processos psicológicos permitem diferenciar realidade de fantasia.7

 

Nos planos da obra e do pensamento psicanalítico de Fabio, as reflexões sobre a possibilidade de adentrar a constituição do quotidiano, as sobre o erro necessário e aquelas sobre o sentido de origem em Psicanálise - este último expresso também pelo recurso de criação de mitos originários - levam­no a criar mais um mito utilizando­se de um argumento irônico:

 

Este aqui, pelo menos, já se sabe que é uma simplificação enorme que serve principalmente para afastar a aparência de naturalidade que o quotidiano utiliza tão sabiamente ao impor sua realidade. Além disso, como inventa mais um bebê psicanalítico a ser juntado aos de­ mais, pode funcionar como desmistificação, já que brinca seriamente com a ideia de retroprojetar sobre a infância a lógica emocional que a interpretação revela.8

 

A fábula criada diz respeito à origem da humanidade na criança, ou, mais amplamente, à invenção do sentido, pela superação do cerco das coisas devida à conjunção de erro necessário e mentira original. Não está totalmente distanciada dos conhecimentos fisiológicos da vida do


feto nem da constatação da total dependência da cria humana no início da vida. Por isso Fabio pode imaginar miticamente que o filhote humano vive no cerco das coisas. As exigências fisiológicas que o dominam restringem­lhe a existência no mundo à complementação absoluta entre as suas necessidades e as fontes de satisfação. Se  na vida fetal era completa, logo após o nasci­ mento pode ser imaginada como um acolamento ao ambiente, como se o mundo fosse apenas um "complemento do corpo, manancial de satisfações fisiológicas, cujo contorno só pode ter a forma inversa daquelas necessidades básicas"9. É este o cerco material ou cerco das coisas.

 

Prosseguindo  o relato  de sua  fábula, trabalha a conjugação de erro necessário e mentira ori- ginal, como a condição de superação do cerco das coisas. A superação vai se dar quando da instau­ ração de um intervalo entre a necessidade experimentada pelo bebê e a satisfação oferecida pela mãe. Esmiúça esse trajeto analisando inicialmente o aconchego materno. Nele o cerco das coisas está na oferta do leite e calor como a complementaridade da satisfação da necessidade fisiológica do bebê. Por outro lado, a subjetividade materna modula o aconchego ao atribuir ao bebê uma vida psíquica que ainda não há. É uma espécie de diálogo forçado entre a mãe e a ideia que faz de seu bebê, vendo nele embutido um homenzinho ou uma mulherzinha. Nessa relação a  mãe  come­ te seu erro necessário, pois a satisfação infantil é oferecida em um ritmo oscilante que obedece à atribuição de intenções para as manifestações de necessidade que observa no infante. Assim, erra ao oferecer leite, quando, por exemplo, o incômodo é por estar o bebê molhado. Fabio vê nesse ritmo oscilante um jogo de mentira que permite ao bebê estabelecer uma relação com a proto intenção materna. Esta é a brecha para o nascimento da humanidade no bebê, brecha que vai impondo paulatinamente uma defasagem entre a necessidade fisiológica e sua imediata satisfação, até que penetra a mentira no choro sem fome do bebê, choro que aponta para o que não é, acusando­o de ser. É a mentira original, aquela que decom­ põe necessidade e seu complemento de satisfação pela coisa externa em dois aspectos, o material da fome do estômago e o da possibilidade, a fome fingida. E possibilidade que se instaura é, para Fabio, a dimensão do real humano imposto à re­ lação sem brechas de necessidade e satisfação. O intervalo aberto entre a necessidade e sua satisfação introduz a dimensão do devir e permite que se distingam desejo de objeto de desejo.

 

Esta fábula da conjunção de erro necessário e mentira original aproxima­se do modelo freudiano de satisfação alucinatória infantil, pois nem a completa correspondência entre necessidade e satisfação nem seu total desencontro podem gerar pensamento e ação. Mas na Teoria dos Campos é aquela conjunção que permite à realidade descolar­se da materialidade e inaugurar um sistema de sinalização de possíveis sem vínculo com a necessidade e a coisa fisiológica. Está dada, assim, a medida da ultrapassagem in­ terna da necessidade em desejo e a da ultrapassagem externa da materialidade em real. Para Fabio inaugura­se aqui a ideia de psique como sentido humano, bem como a cultura e a palavra como linguagem em sentido estrito.

 

Concluindo

Para a Teoria dos Campos, o erro necessário e a mentira original destacam o humano da materialidade, introduzindo o reino das possibilidades.


Estamos diante de uma construção teórica de origem clínica, mas apontando para a dimensão ontológica possível a ser alcançada pela Psicanálise, dimensão filha de uma fábula ficcional e derivada de um procedimento metodológico operacional, como procurei demonstrar.

 

A fábula construída apresenta a teoria da mentira original como um evento hipotético da primeira infância. Simplificador e datado, se não fosse inspirado por um pensamento clínico que toma em consideração o processo mesmo de instauração da subjetividade, atentando que o modelo da mentira original se faz presente em qualquer momento em que alguém se afirme como sujeito. Para a Teoria dos Campos, no processo clínico de ruptura de campo o paciente abandona uma autorrepresentação que o definia identitariamente para alcançar outra possível, mas a que ainda não tivera acesso. Ou, dito de outra forma, a instalação da subjetividade, do ponto de vista psicanalítico, é um constante processo de recriação. A cada assunção de nova autorrepresentação o Homem Psicanalítico está se elevando acima do cerco das coisas. Isto é, a todo momento de sua vida de relação o homem cria­se sem parar, derramando seu desejo no mundo, ao mesmo tempo que não reconhece a criatura gerada.

 

Explicando um pouco mais. Analista e paciente visitam a superação do cerco das coisas, esse temível estrato criador de construção de realidade e identidade, na operação de ruptura de campo do método psicanalítico pela intensificação da expectativa de trânsito da passagem de uma autorrepresentação a outra. O processo interpretativo joga com possíveis representações, pois é no campo transferencial que o futuro sofre o trata­ mento de um presente possível. Pela interpretação arma­se um jogo de mentira que permite a emersão de sentidos possíveis nas representações do paciente. Esse jogo de mentira engana­o no seu afã  de se manter na relação sustentada pela autorrepresentação abalada. O resultado de tal processo tem para a Teoria dos Campos o sentido de cura, porque o paciente pode abandonar o que o aprisionava em torno de um só sentido de representação identitária. É dessa forma que entre vários erros encontra um acerto. Por sua vez, o analista fica tentado a se manter no cerco de suas próprias coisas psicanalíticas se depara com linhas interpretativas que lhe pareçam muito produtivas. Para superar esse cerco, ele precisa seguir por um desvio dessas linhas ousando errar coerentemente. Como escrevi em meu livro:

 

O erro torna claro o processo em que uma representação opera a condição psíquica que a gerou, e a mentira evoca os sentidos possíveis que o desejo pode habitar. Segundo Fabio conjugam­se no processo analítico erro necessário e mentira original. Em conjunto formam a base em negativo do saber que se descobre em uma análise.10


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