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Resumo
Desterros, o barroco é arte de crise. Ganha terreno variando, se bifurcando, criando fronteiras para habitá-las e ir além. Pela convocação dos sentidos, com a criação de formas hiperbólicas que tenham a amplitude de expressar proposições paradoxais. A repetição, o excesso, a proliferação mobilizam para travessias antes impensadas. Eternidade e finitude estão em jogo e, para sua execução, corpo e alma vêm à cena em infinitos movimentos de dobras, desdobras, redobras.


Palavras-chave
barroco; erro; dobra; arte; estética; semiótica.


Autor(es)
Maria de Lourdes Caleiro Costa Costa
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no qual integra o conselho editorial da revista Percurso, membro da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF) e da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF).


Notas

1 D. Francisco de Portugal, "Divinos e humanos versos", in N. P. Ferreira, Poesia barroca - antologia do séc. XVII em língua portuguesa, p. 65.

2 T. Pinto Brandão, "A um relógio de areia", in Poesia barroca..., op. cit., p. 181.

3 F. de Quevedo, "Todas las cosas son aviso de la muerte", in J. Mas, 68 sonetos del siglo de oro, p. 93.

4 F. M. de Melo, "Em dia de cinzas, sobre as palavras", in Poesia barroca..., op. cit., p. 61.

5 G. Matos, in Poesia barroca..., op. cit., p. 123.

6 A. Pinheiro, Aquém da identidade e da oposição; formas na cultura mestiça, p. 35.

7 M. Cervantes, in 68 sonetos..., op. cit., p. 52.

8 Lope de Vega, in 68 sonetos..., op. cit., p. 77.

9 G. Deleuze, A dobra: Leibniz e o barroco, p. 45.

10 G. Deleuze, Pourparles, p. 216.

11 V. C. Moreira, Leibniz & a linguagem, p. 26.

12 G. Deleuze, A dobra..., op. cit., p. 35.

13 G. Deleuze, op. cit., p. 36.

14 G. Deleuze, op. cit., p. 37.

15 G. Deleuze, op. cit., p. 39.

16 M. Foucault, Les mots et les choses, p. 20.

17 G. Deleuze, op. cit., p. 38.

18 G. Deleuze, op. cit.

19 Cf. catálogo da exposição "Rembrandt e a arte da gravura", p. 46.

20 G. Simões Gomes Jr., "Em torno da noção de barroco no Brasil", in Cultura brasileira: figuras da alteridade, p. 12.

21 Op. cit, p. 19.

22 Op. cit., p. 22.

23 G. Deleuze, op. cit., p. 208.

24 S. Sarduy, O barroco, p. 97.

25 A. Ávila, A lógica do erro, p. 13.



Referências bibliográficas
Angoulvent A. (1996). O barroco. Mem Martins, Publicações Europa-América.
Ávila A. (2002). A lógica do erro. São Paulo: Perspectiva.
Barthes R. (1988). O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense.
Cabanne P. A arte clássica e o barroco. Lisboa: Edições 70.
Campos H. (1989). O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado.
Deleuze G. (1991). A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus.
_____. (1990). Pourparles. Paris: Les Éditions de Minuit.
D'Ors E. O barroco. Lisboa: Veja.
Ferreira N. (2000). Poesia barroca - antologia do séc. XVII em língua portuguesa. Rio de Janeiro: Agora da Ilha.
Foucault M. (1966). Les mots et les choses; une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard.
Lezama Lima J. (1988). A expressão americana. São Paulo: Brasiliense.
Maravall J. (1997). A cultura do barroco. Lisboa: Instituto Superior de Novas Profissões.
Mas. J. (2004). 68 sonetos del siglo de oro. Madrid: Cátedra.
Moreira V. (2005). Leibniz & a linguagem. Rio de Janeiro: Zahar.
Pinheiro A. (1995). Aquém da identidade e da oposição; formas na cultura mestiça. Piracicaba: Unimep.
Sarduy S. Barroco. Lisboa: Veja.
Souza E. (1996). Cultura brasileira - figuras da alteridade. São Paulo: Hucitec.
Catálogo da exposição: Rembrandt e a arte da gravura. São Paulo: CCBB, 2002.




Abstract
Exiles, the baroque one is crisis art. It gains land varying, branching off, creating borders to inhabit them and to go beyond. For the invocation of senses, with the creation of hyperbolic forms that have the amplitude to express paradoxical proposals. The repetition, the excess, the proliferation mobilize for before inthinkable passages. Eternity and finitude are in game and, for its execution, body and soul come to the scene in infinite movements of folds, unfolds, refolds.


Keywords
baroque; error; fold; art; aesthetic; semiotic.

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 TEXTO

Considerações sobre o erro no barroco

Remarks on the Baroque conception of error
Maria de Lourdes Caleiro Costa Costa

Desterros da razão, do céu desterros,
Juntar erros a erros


Há barrocos. Leituras diferentes, diferentes práticas e, evidentemente, mundos diferentes que se forjam.

Há um certo olhar que se estende e se captura nas mínimas injunções, onde pulsão e afeto ganham velocidade e irrompem novos sentidos.

Há uma errância fundamental onde os movimentos ganham relevância pelas relações que estabelecem.

Movimento: corpos que inscrevem novas dimensões espaço-temporais.


Gostaria de começar refletindo sobre a questão da inclusão no barroco. Mais especificamente, na linha barroca. Que em si não é questão; é matéria constitutiva, condição de sua existência. E também não é qualquer inclusão, acumulação, imobilização; certezas. Muito menos reflexão.

É inclusão de risco. Também não é qualquer risco. Rabisco, traço solto. É bem pensado, erotizado; o que estava para ser excluído produz lugar de pertinência e sentido. Mas é também vertigem. Questão de vida ou vida; a morte sendo evidente.

E é justo que feito em pó
Se veja Relógio aqui;
Porém mostrando de si, a hora da morte só.

Tomás Pinto Brandão, Dom Francisco Manuel de Melo, Gregório de Mattos, Lope de Vega, Calderón de la Barca, Luis de Góngora, Francisco de Quevedo; em meio a tantos outros cantadores e poetas, multiplicam-se as imagens da morte e da precariedade da vida:

Miré los muros de la patria mia, [...], Salime al campo..., Entré em mi casa;..., [...],
Y no hallé cosa em que poner los ojos
que no fuese recuerdo de la muerte.

E afirmam-se imagens da morte como movimento constante da vida:

"Diz-me o pó que sou pó, e a crer-me incita
Que é vento quanto neste pó se encerra

Diz-me outro vento que esse pó vil erra,
Qual destes a verdade solicita?
[...]
Que é da velhice?
que é da mocidade?
Tragou-me a vida inteira o mar profundo!
Ora quem diz que sou pó falou verdade."10

Em verso menos sombrio de Gregório de Matos, encontramos:

Quem não cuida de si, que é terra... erra11.

Posto a morte, figura-se o erro. Desterros. Transformações detonadas pelas ciências desde o fim da Idade Média evidenciam-se nas conjunções desse processo.

O céu não é mais uma abóbada de estrelas fixas; a Terra não é mais o centro - e continua bem além da Europa; o que se escreve, viaja, e se responde; Deus já não cabe nas medidas de todos, e os homens já não se conformam à sua imagem. E, há pouco, Michelângelo pôs seu David, esse grego-pagão de quietude já bem distante, em praça pública.

O Renascimento conquistou a cidade, não mais como espelho do mundo divino, mas espaço de criação da razão humana.

O desmembramento dos horizontes não cessa. Marte não anda mais em círculo. Tem vida diferente. De certa forma, própria. Em torno do sol, faz elipses. Dois centros, um sol que já não é mais todo-poderoso e um homem arrastado às margens do não mais conhecido; repetida, sucessivamente. Guerras constantes, surtos de peste negra dizimam grande parte das populações.

Morte, destroços, ruínas. Disso é feito o barroco. Mas, ruínas: para andar entre. Antes da ruptura, a dobra: cisão que relança, como dirá Deleuze com Foucault e Leibniz. Labirinto: movimento de corpos que trazem do mais obscuro suas maneiras. Modulação. A luz não para de mergulhar no escuro e o escuro no claro - seus jogos. Sucessiva, excessivamente. A matéria põe à mostra sua força de expressão.

Quanto mais perto dos centros de poder, mais luz, mais brilho. Arte da Contrarreforma, tempo de Absolutismo, monarquias volta e meia conflagradas; é preciso vencer, é preciso convencer. À variedade do mundo, responde-se com inclusão. Montagens. Arte da astúcia, estratégia político-vencedora que traz em sua arquitetura a inscrição de outras cidades. Entornos; erupções.

Linhas eventualmente secundárias que, ao se proliferarem, desprendem-se e se tornam centrais em outra cena. Essa possibilidade do traço barroco terá amplas consequências. Por ora, lembramos aqui da diversidade de sua produção em cada conjuntura cultural. Assim, por exemplo, o barroco brasileiro, o latino-americano como um todo, e em seus diversos desdobramentos, deu-se como ato de inscrição, da população mestiça, na mesma pele, entranhas e talhas, da vontade de cooptação da Corte e da Igreja na ordem imperial e clerical.

O barroco vai justamente se assentar no enfrentamento da complexidade própria a momentos de forte crise. Na Europa, a partir de meados do século XV, o que estava por se expressar, as linhas do classicismo renascentista não davam mais conta.

Linhas retas, clara iluminação, equilíbrio, elaboração da perspectiva centrada, distribuição das figuras no espaço de acordo com a Regra de ouro. Corpos desenhados por esse mesmo acordo que testemunham a beleza perfeita e sua comunhão com as leis da natureza. Tudo isso, conquista feita há bem pouco tempo pela razão e liberdade humanas, não tardaria a se confrontar com a urgência de suas paixões.

As primeiras linhas curvas que apareceram numa fachada de igreja, em Roma, foram chamadas de barrocas - barrocas, as pérolas irregulares - esquisitas, excessivas, errôneas.

Antes disso, chama a atenção o tumulto que provocou a estátua de Laocoonte achada por um romano em suas vinhas no ano de 1506, e perdida por mais de mil e quatrocentos. Laocoonte, sacerdote de Apolo, o único a pressentir o perigo representado pelo cavalo de Troia, protesta contra sua entrada para dentro dos muros da cidade. Sua morte, nessa batalha, esculpida em mármore no primeiro século antes de Cristo, impressiona por sua imponência e dramaticidade - o contorcionismo de seu corpo volteado por serpentes e ladeado por seus dois filhos - e provoca debates acalorados no meio artístico, bem como o reconhecimento de seu valor. Michelângelo é um dos protagonistas desses debates e sua obra o testemunha. Naquele mesmo ano, trinta e sete antes do início do Concílio de Trento, que irá formular as bases da reforma católica, é comprada pelo sumo pontífice e fica exposta em seus jardins.

Entornos; barrocas eram chamadas pelos portugueses aquelas pedras irregulares, ora desprezando, ora lhes conferindo a especial atenção que tal joalheria solicitava. Foram esses mesmos homens - em grande parte mouros, como seus vizinhos espanhóis - que cunharam um estilo depois chamado de barroco português, o manuelino. Superfícies inteiras cunhadas por lembranças de além-mar - conchas e bichos de todas as espécies, estrelas, esferas armilares, cordas e mais cordas - por marcas das grandes navegações. Nesse território mais voltado ao mar, extremo-oeste da península ibérica, o barroco segue toda uma outra discussão.

Mas de qualquer forma, e é o ponto que aqui nos assiste, desde esses primeiros momentos, encontramos elementos que em outros países, bem como nas colônias lusas e espanholas, vão tomar proporções imensas: os jogos de montagens, o excesso, a repetição, a proliferação mobilizam para a travessia de distâncias antes impensadas. O olhar é chamado a percorrê-las e a perscrutar linhas que cada vez mais se encurvam: do tema à própria arte da narração que o traslada numa série infinita de imagens.

Do centro, às margens. O barroco ganha terreno variando, se bifurcando, criando fronteiras - para habitá-las, e ir além. Pelo arrebatamento dos sentidos, com a criação de formas hiperbólicas que tenham a amplitude de expressar movimentos paradoxais. Finitude e eternidade estão em jogo e, para sua execução, corpo e alma são convocados em perpétuo movimento de dobras, desdobras, redobras. Deformação.

Da morte ao riso "que se constrói a partir da necessidade de habitar-se do que nos é estranho" . Se são muitas as imagens de morte, não menos numerosos são os jogos que se lhe desdobram:

No soneto "Al túmulo del rey felipe II em Sevilla", Cervantes se diverte com sua "grandeza" e "maravilla":

...Apostaré que el anima del muerto,
por gozar este sitio, hoy há dejado
el cielo, del que goza eternamente.

E Lope de Vega escreve:

A una cavalera

Esta cabeza, cuando viva, tuvo
sobre la arquitectura de estos huesos
carne y cabellos, por quien fueron presos
los ojos que, mirándola, detuvo" .

Torção; o leitor convocado por seu olhar, na vertigem de sua própria morte.

"Passa-se do mundo ao sujeito, ao preço de uma torção que faz com que todos os sujeitos sejam reportados a esse mundo como à virtualidade que eles atualizam".

Corpos, sua deformação; riso, a irrisão do mundo esperado. Multiplicam-se as caricaturas; é preciso deformar para fazer ver. Lembremos, por exemplo, de Goya e sua obra gráfica, especialmente nas séries "Os caprichos", "Os desastres da Guerra" e "Os disparates".

A tensão se procura, nada está garantido, de certo, movimento de forças afeto.

Bernini esculpe figuras que, de tão intrépidas, se petrificam e transbordam: a água azul vaza as pedras brancas. Nas praças.

São Pedro, cúpula central, quatro colunas salomônicas, madeira ébano, estabelecem, peremptoriamente, quais os caminhos a serem seguidos, de dia e de noite. Poder e desespero na Contrarreforma.

À enormidade da crise, deve corresponder uma justificação sem precedentes, diz Deleuze em sua leitura de Leibniz. Se são muitos os princípios, multipliquemos os mundos. E o mundo, em seu conjunto, não só deve ser o melhor por sua capacidade de produzir e criar o novo, mas em cada um de seus casos. Em A dobra, o filósofo francês isola justamente essa figura na obra de Leibniz e a faz operar colocando em evidência determinadas divisas barrocas abertas pelo filósofo alemão.

Ao escolher a dobra como vértice de suas reflexões, Deleuze evoca Paul Klée, que fala da natureza da linha curva, aquela das coisas vivas que, ato de vida, uma vez lançada no espaço-tempo, espirala-se continuamente, criando campos inalienáveis de maior complexificação. Ressalta que o menor elemento de uma linha nunca é o ponto, mas a dobra: flexão; antes da ruptura, cisão que relança um e outro lado das séries envolvidas pela força do que está em jogo. Dobras e dobras, até as infinitamente pequenas. Assim, afirma que as origens acontecem sempre pelo meio; conforme dobras. Se a dobra já existia, enfatiza, Leibniz a leva ao infinito, liberando-a para consequências imprevistas mas por ele inauguradas.

É preciso dizer que, assim como seu contemporâneo Descartes, Leibniz também se perguntou como poderia apreender as verdades do mundo sem incorrer em erro. Mas o primeiro teria se equivocado, então, por não reconhecer que o exercício do pensamento se faz com o auxílio de sinais - e, na esteira deste, com amparo de expedientes sensíveis, quer dizer, relativos ao corpo. A insuficiência dos critérios de clareza e distinção, tais como os entende Descartes, nessa medida, repousaria no fato de que [...] não há aquilo a que se aplicaria esses mesmos critérios.

Acompanhemos Deleuze. Do classicismo ao barroco, do círculo à curvatura variável que vai ao infinito, ao desmedido, ao incomensurável, o paradigma se torna maneirista e se procede por uma dedução formal das dobras. "O objeto é reportado não mais a um molde espacial, isto é, a uma relação forma-matéria, mas a uma modulação temporal que implica tanto a inserção da matéria em uma variação contínua como um desenvolvimento contínuo da forma" . E, em seguida, explica: Se o objeto muda tão profundamente de estatuto, o mesmo acontece com o sujeito. Pensemos na curvatura variável, em seu lado côncavo, em seu movimento de inflexão. A partir de um segmento dessa inflexão, podemos desenhar um ponto externo a essa linha em que se encontram as perpendiculares e as tangentes. Esse ponto, entenderemos como um lugar: o ponto de vista, que representa uma variação ou uma inflexão. Perspectivismo: "será sujeito aquele que vier ao ponto de vista" . Aquele que tem a condição de acompanhar uma determinada variação. Deleuze esclarece: "Trata-se não de uma variação da verdade de acordo com um sujeito, mas da condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito. É a própria ideia da perspectiva barroca" .

E continua: "O ponto de vista, em cada domínio da variação, é potência de ordenar os casos, condição de manifestação do verdadeiro" . Pensemos numa talha barroca; sua plasticidade, sua porosidade, sua possibilidade de abrigar e refletir a luz e o olhar que se lhe incidem (convergente e divergentemente). Suas volutas, formas côncavas e espiraladas, mostram e escondem, fazendo-se-lhe inerente a dinâmica de ver e ler. De tal forma, que a paisagem só aparece nesse movimento, sendo o objeto a própria execução da viagem. Ver, ler, assinar.

Tomemos o quadro mais famoso de Velásquez, As meninas. O que mais chama a atenção nesse quadro é justamente a multiplicação da perspectiva, a convocação do olhar, incitando-o para muitas direções. É notória a maestria do pintor na montagem dessa cena em que o sujeito que a olha também faz parte. Labirinto miniatural; várias séries convergindo para a mesma cena. São inúmeras as análises que desde então lhe são feitas, e nos chama a atenção aquela de Foucault. Quem a vê, pergunta-se Foucault? E continua: aquilo que pareceria simples, uma relação de reciprocidade, o espectador olhando o quadro e sendo olhado por quem está no quadro, toma outras proporções. "Essa linha tênue de visibilidade, que retorna, guarda todo uma rede complexa de incertitudes, trocas, e esquivas" . E, com outras palavras, segue: o pintor nos olha, na medida em que estamos no lugar de seu modelo. Mas seu olhar também dá margem a pensar que está olhando para fora do quadro e que, portanto, para qualquer um que vier ocupar o lugar de espectador; lugar preciso mas indiferente. Nesse campo neutro do olhar que o atravessa perpendicularmente, sujeito, objeto, espectador e modelo invertem seus papéis ao infinito. Junta-se a isso a fixidez da grande tela, à esquerda, a que está sendo pintada por Velásquez nesse exato momento, e da qual só vemos as costas (é ele quem olha). E está selada a impossibilidade de sabermos se somos vistos ou quem vê, mas também a abertura de um lugar que não para de trocar de conteúdo, forma, cara, identidade. Depois, realça a "generosidade do espelho", colocado no fundo descentrado do quadro, com o reflexo do casal real, restituindo o que falta ao olhar de cada personagem, mas que, por um jogo de luz, estabelece outras relações de ambiguidade com o espectador e o pintor.

"Rigoroso sem ser exato [...] o ponto de vista sobre uma variação virá a substituir o centro de uma figura ou de uma configuração", dirá Deleuze .

Mas, no barroco - seu maneirismo - além da perspectiva, as cores também são tomadas em sua modulação. O contorno esfuma-se e sobe à cena o jogo do claro/escuro. O fundo sombrio é onipresente, e lugar de onde vêm as maneiras.

Olhemos a Velha ao fritar ovos, Três homens à mesa ou O aguadeiro de Sevilha do próprio Velásquez, três quadros em que os personagens com vestes ocre-marrom mal saem da penumbra, e se movem na fugacidade de gestos cotidianos.

Olhemos El Greco, a intensidade de suas cores em corpos, ao limite, alongados. "O infinito atual no eu finito é exatamente a posição de equilíbrio ou desequilíbrio barroco" .

Olhemos A ronda noturna, de Rembrandt. A pequena moça, não se sabe surgindo de onde, ou quem seja, esgueira-se com rapidez, entre os arcabuzeiros, pela transversal do quadro, e traça sua rota de fuga.

Olhemos Caravaggio, por exemplo, a Vocação de São Mateus, pernas e mãos saindo de repente de onde a luz é mais fechada; depois, alguns corpos, suas faces e as vestes. Cores e formas tomam força e há organismos em todas as partes aguardando a hora de sua cena.

Olhemos, por fim, uma gravura de Rembrandt, A fuga para o Egito, à noite, na versão de 1651 , posto que esse tema lhe era recorrente. É impressionante; é a mais escura e a mais intensa: os traços de água-forte, buril e ponta-seca, microdobras, vibram com grande velocidade e desestabilizam as figuras, que só não ficam abandonadas no exílio por conta de seu próprio movimento. Mas, as microdobras, as micropercepções alucinatórias... essa já é uma outra história.

Se o barroco criou um mundo em que o erro passa a ser potência de criar novas conexões, o que seria algo como o erro do erro ou o seu limite? Ou melhor, aonde é que suas linhas se lentificam, perdem a potência de novas conexões?

Do século XVIII até meados do XIX, o classicismo volta a preponderar na Europa. O neoclassicismo passa a dar vazão a uma outra visão de mundo. Os elementos de perturbação são postos à margem pelo geometrismo acadêmico, pela "busca de simplicidade", de equilíbrio na regularidade. A exatidão dos contornos, a luz limitada a esses mesmos contornos e a centralidade das figuras em espaços bem ordenados imperam.

Nas colônias espanholas e portuguesas, americanas, o barroco tomou proporções imensuráveis, tal sua afinidade com o mundo que aqui se criava. E ressalte-se nisso a diversidade de cada conjuntura e a correspondente plasticidade de suas formas de expressão.

O neoclassicismo que nessas terras chegou foi débil face ao vigor das produções barrocas. Mas não débil foi, tanto na Europa quanto aqui, entrando pelo século XX, o desprezo pelo barroco nos meios acadêmicos.

Em O sequestro do barroco, Haroldo de Campos vocifera contra a exclusão de Gregório de Matos na formação da literatura brasileira, bem como o rechaço de Gôngora na Espanha.

Tal polêmica esse livro causou, que Guilherme Simões mapeia, desde o fim do século XIX, as discussões sobre o barroco, "mostrando que a questão sempre deixou os espíritos inquietos, o que talvez seja indício de sua importância" . Em meio às várias citações analisadas, encontramos a de Manuel Araújo Porto Alegre, "o patrono das artes plásticas no Brasil" e que aqui nos interessa especialmente. Diz ele:

[...] entre as personalidades geniais que fecham e abrem as épocas de esplendor, emergem escolas de arte baseadas em doutrinas errôneas, como a fundada por Bernini, que tinha por princípio que as estátuas deveriam ter aparência móvel.

E, mais adiante, refere-se "ao esforço de Mário de Andrade de subtrair Aleijadinho [...] do complexo barroco e qualificá-lo como artista renascente" e "sua dificuldade de admitir o estilo barroco, não como uma contrafação, mas como algo autônomo, que faz derivar sua ideia de beleza de outro conjunto de princípios estéticos".

Desde o final do século XIX, como bem conhecemos, outros protagonistas vêm à cena. Nietzsche foi um dos primeiros a chamar a atenção para o equívoco em se desqualificar o barroco. Freud, as vanguardas estéticas, as guerras, a valorização de culturas mestiças; é nesse mundo que se insurge o chamado neobarroco com seu "desfraldar de séries divergentes na mesma cena".

A mônada já não pode incluir o mundo inteiro como um círculo fechado modificável por projeção, mas ela se abre a uma trajetória ou espiral em expansão, que se distancia cada vez mais de um centro.

Severo Sarduy comenta a escrita do poeta cubano Lezama Lima:

Sintaticamente incorreta à força de se sobrecarregar de elementos alógenos, à força de multiplicar - até ‘perder o fio' - o artifício sem limites da subordinação, a frase barroca - a frase de Lezama - exibe sua incorreção (falsas citações, ‘enxertos' falhados de outras linguagens), no próprio fato de ‘não cair aos seus próprios pés' e na sua perda da concordância, a nossa própria perda de um algures, único, harmonioso, de acordo com nossa própria imagem: teológico em suma .

E Affonso Ávila, em seu poema "Délivrance", escreve:
[...]
no vão no vazio no vácuo
vasculhando os veeiros do vau
labirinto em lóbulos do ermo
seu eco: a lógica do erro
[...].

Restos, trapos, paradoxos. Corpos; seus movimentos infinitos em direção às margens. Trata- -se de escavá-las, habitá-las.

NOTAS
1 D. Francisco de Portugal, "Divinos e humanos versos", in N. P. Ferreira, Poesia barroca - antologia do séc. XVII em língua portuguesa, p. 65.
2 T. Pinto Brandão, "A um relógio de areia", in Poesia barroca..., op. cit., p. 181.
3 F. de Quevedo, "Todas las cosas son aviso de la muerte", in J. Mas, 68 sonetos del siglo de oro, p. 93.
4 F. M. de Melo, "Em dia de cinzas, sobre as palavras", in Poesia barroca..., op. cit., p. 61.
5 G. Matos, in Poesia barroca..., op. cit., p. 123.
6 A. Pinheiro, Aquém da identidade e da oposição; formas na cultura mestiça, p. 35.
7 M. Cervantes, in 68 sonetos..., op. cit., p. 52.
8 Lope de Vega, in 68 sonetos..., op. cit., p. 77.
9 G. Deleuze, A dobra: Leibniz e o barroco, p. 45.
10 G. Deleuze, Pourparles, p. 216.
11 V. C. Moreira, Leibniz & a linguagem, p. 26.
12 G. Deleuze, A dobra..., op. cit., p. 35.
13 G. Deleuze, op. cit., p. 36.
14 G. Deleuze, op. cit., p. 37.
15 G. Deleuze, op. cit., p. 39.
16 M. Foucault, Les mots et les choses, p. 20.
17 G. Deleuze, op. cit., p. 38.
18 G. Deleuze, op. cit.
19 Cf. catálogo da exposição "Rembrandt e a arte da gravura", p. 46.
20 G. Simões Gomes Jr., "Em torno da noção de barroco no Brasil", in Cultura brasileira: figuras da alteridade, p. 12.
21 Op. cit, p. 19.
22 Op. cit., p. 22.
23 G. Deleuze, op. cit., p. 208.
24 S. Sarduy, O barroco, p. 97.
25 A. Ávila, A lógica do erro, p. 13.

Referências bibliográficas

Angoulvent A. (1996). O barroco. Mem Martins, Publicações Europa-América.
Ávila A. (2002). A lógica do erro. São Paulo: Perspectiva.
Barthes R. (1988). O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense.
Cabanne P. A arte clássica e o barroco. Lisboa: Edições 70.
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Deleuze G. (1991). A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus.
_____. (1990). Pourparles. Paris: Les Éditions de Minuit.
D'Ors E. O barroco. Lisboa: Veja.
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Sarduy S. Barroco. Lisboa: Veja.
Souza E. (1996). Cultura brasileira - figuras da alteridade. São Paulo: Hucitec.
Catálogo da exposição: Rembrandt e a arte da gravura. São Paulo: CCBB, 2002.


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