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Resumo
Lacan e Derrida são dois pontos altos do pensamento francês no século XX. Este artigo propõe uma nova visão do vínculo entre as suas contribuições, procurando evitar colocá-los meramente como opostos ou complementares.


Autor(es)
Frida Saal
(Córdoba, Argentina, 1935 – México, 1998) foi psicanalista, docente da Universidad Nacional Autônoma de México – UNAM – por 25 anos. Investigadora e fundadora do Centro de Investigação e Estudos Psicanalíticos, autora de numerosos artigos reunidos no volume Palabra de analista (México, Siglo XXI, 1998), publicou ainda La bella (in)diferencia, co-editado com Marta Lamas (México, Siglo XXI, 1994).


Notas

* Este artigo é a transcrição de uma fala proferida no 10o Colóquio da Fundação Mexicana de Psicanálise, o qual teve como tema “Escrita e Psicanálise”, em maio de 1994. Tradução: Sérgio Telles é psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, escritor e autor de O Psicanalista vai ao Cinema, Casa do Psicólogo / EdUFSCar, 2004, e Mistura Fina, Casa do Psicólogo, 2004, entre outros.

1. E. Roudinesco, Histoire de la psychanalyse en France, Seuil, Paris, 1986, p. 418 (História da Psicanálise na França, vol.2, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988.

2. J. Derrida, “Pour l´amour de Lacan” in Lacan avec les philosophes, Albin Michel, Paris, 1991, p. 406.

3. J. Derrida, De la Gramatologia, Siglo XXI. México, 1986

4. J. Derrida, “Pour l’amour de Lacan” – op. cit. p. 407 – citado em francês: “Donc il y avait la mort entre nous, il fut surtout question de la mort, je dirai même seulement de la mort de l’un de nous, comme avec ou chez tous ceux qui s’aiment. Ou plutôt il en parlait, lui, seul, car je n’en ai jamais, moi, soufflé mot, il parlait lui, seul, de notre mort, de la sienne qui ne manquerait pas d’arriver, et de la mort ou plutôt du mort dont selon lui je jouais”.

5. J. Derrida, “Pour l´amour de Lacan” – op. cit., p.407

6. J. Derrida, De la gramatologia, op. cit., p.12

7. J. Derrida, De la gramatologia, op. cit., p.26

8. F. de Saussure, Curso de lingüística general, Losada, Buenos Aires, 1971, p. 729.

9. J. Derrida, De la gramatologia, op. cit., p.120

10. Como se verá adiante, esse é um conceito fundamental no corpo teórico de Derrida, no qual joga papel importante a própria grafia. Como não há um consenso em torno da tradução em português, escolhi essa forma, que me parece atender às exigências explicitadas pelo autor.

11. J. Derrida, De la gramatologia, op. cit., p. 157.

12. F.Saal, “El lenguage en la obra de Freud” in El lenguage y el inconsciente freudiano, Siglo XXI, México, 1982.

13. J. Miró, – Blues II.

14. J. Derrida, “La différance” in Márgenes de la filosofia, Cátedra, Madrid, 1989, p. 37.

15. J. Derrida, “La différance”, op. cit., p. 41.

16. J. Derrida, “La différance”, op. cit., p. 44.

17. J. Derrida, “La différance”, op. cit., p. 55.

18. S. Freud, Obras Completas (OC), Amorrortu, Tomo I, p. 323.

19. S. Freud, OC, Amorrortu, Tomo XIX, p. 239

20. J. Derrida, “Freud y la escena de la escritura” in La escritura y la diferencia, Anthropos, Barcelona, 1989, p. 275.

21. S. Freud, OC, Amorrortu, Tomo 1, p. 274.

22. J. Derrida, “Freud y la escena de la escritura”, op.cit.

23. C. Magris, El anillo de Clarissa, Península, Barcelona.

24. N. Braustein faz um cuidadoso seguimento desse percurso em “Lingüisteria” in El Lenguage y el inconsciente freudiano, Siglo XXI, México, 1982, p. 161.

25. N. Braunstein, “Lingüisteria”, op. cit., p. 215/6

26. J. Derrida, “El Cartero de la verdad” in La tarjeta postal. De Freud a Lacan y más allá, Siglo XXI, México, 1986.

27. J. Derrida, “Pour l’amour de Lacan”, op. cit., p. 411.

28. J. Derrida, “Envois” in La carte postale de Socrate a Freud et au delá. Flamarion, Paris, 1980.

29. Este é um ponto das postulações de Derrida do qual os movimentos feministas têm usado. Isso não significa que coloquemos Derrida como um feminista.

30. J. Lacan, Escritos, Siglo XXI, México, 1984, p. 665.

31. J. Lacan, Escritos, op. cit., p. 704.

32. J. Lacan, Le Seminaire, Livre XX, Encore, Seuil, Paris, 1975.

33. J. Derrida, “Pour l’amour de Lacan”, op. cit., p.418.

34. J. Lacan, Le seminaire, Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Seuil, Paris, 1973, p. 131.

35. S. Michel, The New York Times Magazine, Jan. 23, 1994.



Abstract
Lacan and Derrida are among the most influential thinkers of the second half the 20th century. Both were labeled as “structuralists”, and both denied energetically that label. Late Mexican analyst F. Saal examines here the differences and points of approximation between the work of these two giants of French thought.

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 TEXTO

Lacan à Derrida *

Lacan à Derrida *
Frida Saal


Ao começar minha fala, quero ressaltar alguns paradoxos que se irão esclarecendo – espero, – no correr da própria exposição. O primeiro se inscreve na história desses Colóquios da Fundação Mexicana de Psicanálise, dos quais participei em quase todos, desde o início. Se em todos eles apresentei um trabalho escrito, neste, dedicado ao tema da escritura, farei uma intervenção oral, que posteriormente será escrita.

Relacionar Lacan com Derrida não tem, em si, nada de novo. Muito já se escreveu sobre o assunto a partir de diversas posições, às vezes tratando de aproximar suas propostas, outras vezes tratando de opô-las. Alguns autores têm falado de Lacan com Derrida; outros preferem considerar Lacan contra Derrida. De qualquer forma, é indubitável que o nome de Derrida não pode estar ausente em um colóquio dedicado ao tema da escritura em sua relação com o inconsciente.

Nossa proposta é colocar a punção () entre os dois nomes, porque na relação / não relação que se estabelece entre Lacan e Derrida aparece uma tensão que implica um duplo movimento de união e disjunção, na perspectiva de um encontro teórico que é, ao mesmo tempo, necessário e impossível. A punção tem assim a função de juntar e, ao mesmo tempo, separar os dois nomes. Indica-se, assim, que seria totalmente impossível sobrepor a obra de um à do outro, sem que deixem ambos – e em muitos momentos – de se influenciarem reciprocamente. É uma relação em que o que prevalece é a diferensa, que será um dos temas centrais de nossa exposição e que esclareceremos mais adiante.

No campo dos paradoxos se incluem as características absolutamente opostas dos dois homens. De um lado, Lacan, mais conhecido por vocês, personagem apaixonado, exuberante, cujo ensino, que deixa profunda marca, é essencialmente oral, e que publica seu livro mais importante com o título, talvez discutível, de Escritos. Do outro lado, em Derrida, encontramos um personagem incomensuravelmente comedido, cujas aulas se resumem à leitura de textos cuidadosamente escritos, nos quais tenta apagar do enunciado, tanto quanto possível, sua presença. O ensino de Derrida alcança uma notável repercussão nos Estados Unidos, território em que Lacan sempre quis ter acesso e no qual só pôde chegar de maneira parcial: nunca por meio das sociedades psicanalíticas, e sim, com dificuldades, por meio dos Departamentos de Literatura de algumas universidades.

Entre tais personagens, o que se pôs em cena foi um encontro, de filosofia, de belas artes, de ciências políticas, que, como todo encontro, teve muito de desencontro. Lacan e Derrida se encontraram pessoalmente apenas em duas ocasiões; desses momentos há dois relatos: o de Elisabeth Roudinesco [1] e o do próprio Derrida [2]. O primeiro encontro aconteceu em 1996, em Baltimore. Na ocasião, Derrida já havia publicado na revista Critique o artigo que deu origem a seu livro Da Gramatologia [3], o qual Lacan lera cuidadosamente. Os Escritos de Lacan estavam então no prelo e ainda não haviam aparecido. Lacan diz então a Derrida: “Foi necessário vir até aqui, no estrangeiro, para nos encontrarmos!”.

Nesse momento, segundo Derrida, o tema que os une, de maneira velada e secreta, é o tema da morte. Às vésperas do aparecimento de seu livro, Lacan se preocupa em como seriam lidos seus trabalhos quando Derrida e ele já não estivessem vivos. Os temas da transcendência e da posteridade estavam implícitos nessa conversa. Também falaram da escritura sobrevivendo à morte e da relação da escritura com a morte.

“Assim, ele tinha a morte entre nós, ele fez questão da morte, direi mesmo somente da morte de um de nós, como ocorre com ou entre aqueles que se amam. Ou, mais ainda, ele falava, ele, sozinho, pois em nenhum momento eu disse coisa alguma, ele falava sozinho, de nossa morte, da sua que não tardaria a chegar e da morte ou, mais ainda, do morto no qual, segundo ele, eu gozava.” [4]

Para abordar a relação de Lacan com Derrida em termos teóricos, precisaríamos muito mais tempo do que dispomos agora. O que ali importa implica em sutilezas, detalhes, em tênues alusões, em minúcias que não poderemos explorar a fundo agora. O que vou tentar é uma espécie de resumo, um esqueleto estrutural, que nos permita ver em que, não toda a obra de Derrida e não toda a obra de Lacan se aproximam, se relacionam entre si e em que, portanto, suas contribuições devem ser diferenciadas. Se darei mais ênfase a Derrida, é por acreditar – talvez equivocadamente – que ele é menos conhecido para vocês.

A formação filosófica de Derrida se enriquece com um marcado interesse pela literatura, esse que o leva a propor um apagamento das fronteiras entre ambas e a propor modos de trabalho cuja fecundidade é visível na multiplicação dos textos de orientação derridiana. No campo da filosofia, sustenta uma postura ativa que impugna a “metafísica da presença”, metafísica que Derrida assinala como solidária das psicologias da consciência. O pressuposto que sustenta essa metafísica, aliada dessas psicologias, é o da transparência, da proximidade do significado, que prometeria um acesso à presença da coisa por meio do signo que a representa para a consciência. Na colocação derridiana, esse acesso direto é impossível. É dessa forma que as considerações filosóficas o levam a se interessar pelos problemas da lingüística.

Derrida encontra na leitura da obra freudiana um poderoso questionamento à concepção do que haverá de entender como escritura e descobre, na concepção do inconsciente, o instrumento maior que permite problematizar a metafísica da presença.

O próprio Derrida afirmou sobre sua primeira obra:

“Da Gramatatologia” era o título de um artigo e de um livro, aparecido uns cinco anos antes, e esse é um dos numerosos erros e desconhecimentos de Lacan e de tantos outros nesse assunto, pois jamais propus uma gramatologia, alguma ciência ou disciplina positiva que leve esse nome; pelo contrário, fazia grandes esforços para demonstrar a impossibilidade, as condições de impossibilidade, o absurdo de princípio de toda ciência ou de toda filosofia que leve o nome de gramatologia. Esse livro, que tratava da gramatologia, era tudo, menos uma gramatologia.” [5]

Podemos dizer que Da Gramatologia é uma desconstrução. Que implica esse termo tão estritamente associado com os trabalhos de Derrida? É mais fácil começar por uma definição negativa: não se trata de um método ou de uma técnica. Numa aproximação positiva, podemos afirmar que é uma estratégia, estratégia de leitura, por meio da qual, indo além das intenções explícitas do autor, pode-se pôr em evidência o texto em si, em sua capacidade produtiva. O trabalho desconstrutivo enfatiza o tropeço em que se põe de manifesto outro significado presente no texto, além das intenções do autor e põe especial atenção e ênfase nas margens, nas bordas, nos enquadramentos que, por meio de novas contextualizações, abrem espaço para novas leituras que são, por sua vez, novas escrituras.

A desconstrução põe em evidência que não há um significado transcendental. A disseminação é constante e nos abisma no fracasso da transmissão e na impossibilidade de fechamento do sentido. Tampouco há referências objetivas que possam abarcar a árdua questão da realidade ou abrir um caminho que garanta a presença do objeto. Sempre temos de nos ver às voltas com relações de intertextualidade ou, para dizê-lo em termos nietzschianos – e Nietzsche é autor caro a Derrida – que se trata, sempre, de interpretações. Há, pois, uma multiplicidade de sentidos e interpretações, a realidade em sua totalidade tem um caráter textual, está feita de textos que criam e recriam essa realidade. O que (acreditamos que) há... são efeitos de textos.

A desconstrução que é posta em jogo em Da Gramatologia é uma desconstrução da lingüística por meio da análise da obra de três autores essenciais e diferentes: Ferdinand de Saussure, no que dele nos legou como Curso de lingüística geral; Levi-Strauss, pelo que produz no campo da antropologia e, mais ainda, por sua interpretação da lingüística; e Rousseau, por seu Ensaio sobre a origem das línguas.

Em primeiro lugar nos confrontamos com os pressupostos que organizam o conceito de “signo” na obra de Saussure. Já se sabe que o signo, em sua dupla vertente de significante e significado, aparece como representante e substituto de uma presença originária, presença da coisa em si que o signo viria a substituir. Nesse sentido, a teoria do signo continuaria sendo subsidiária e sustentação de uma metafísica substancialista. Derrida se propõe então a “destruir o conceito de signo e toda a sua lógica”. [6]

O signo, como nos diz Derrida, encontra sua essência formal na presença suposta da coisa, e o significado adquire um privilégio por sua proximidade ao logos como phoné, à razão como palavra falada. Nietzsche, ao assinalar o caráter de interpretação de tudo o que é pensado, contribuiu para liberar o significante de sua dependência metafísica do logos, colocando-se assim como precursor das críticas ao fonologocentrismo, antes mesmo da concepção formal do signo.

Convém que nos detenhamos numa chamada de pé de página:

“...não quer dizer, por uma mera inversão, que o significante seja fundamental ou primeiro. A “primazia” ou a “prioridade” do significante seria uma expressão insustentável e absurda de se formular ilogicamente dentro da lógica que pretende, sem dúvida legitimamente, destruir. Nunca o significante precederá de direito o significado, sem o qual deixaria de ser significante, e o significante “significante” já não teria nenhum significado possível. O pensamento que se anuncia nessa impossível fórmula, sem conseguir instalar-se nela, deve, portanto, enunciar-se de outra maneira: não poderá fazê-lo senão tornando suspeita a própria idéia de signo, de “signo de”, que sempre permanecerá ligada ao que aqui questionamos. Portanto, no limite, destruindo toda a conceptibilidade ordenada em torno do conceito de signo (significante e significado, expressão e conteúdo, etc). [7]

Detivemo-nos amplamente nessa citação porque nela se explicita um dos pontos mais polêmicos da relação Lacan-Derrida.

Lacan persiste na referência ao signo saussuriano e, seguindo Levi- Strauss, propõe a primazia do significante, subvertendo assim a concepção de signo. Na passagem citada, Derrida pontua e destaca as conseqüências inadvertidas de tal operação. Cremos que essa pontuação será levada em conta por Lacan sem chegar a reconhecê-lo explicitamente: assim, a passagem da concepção de palavra plena (1953) para a de dizer pela metade (1973), bem como o abandono da proposta do ponto de basta (ponto ideal da suposta concordância entre significado e significante), seriam admissões de Lacan da pertinência de ditas pontuações, ainda que não sejam somente elas as determinantes de suas mudanças no discurso.

A lingüística do signo persiste prisioneira da ilusão dos sistemas escriturais fonológicos que nos fazem supor que a escritura é secundária e que a fala é o primário. Ferdinand de Saussure, convencido da natureza primordial da palavra falada, chega a excluir a escritura do campo da lingüística: “Língua e escritura são dois sistemas de signos distintos; a única razão de ser do segundo é a de representar o primeiro; o objeto lingüístico não fica definido pela combinação da palavra escrita e da palavra falada, esta última é a que constitui, por si só, o objeto da lingüística.” [8]

Essa ilusão desconhece que não há nenhuma escritura que seja puramente fonética: as pontuações, os silêncios que escandem as palavras, são elementos claramente não fonéticos, mas sem os quais a escritura seria impensável. Do outro lado, as escrituras hieroglíficas ideográficas incluem sempre elementos fonéticos, sendo esse o caminho que permitiu decifrar a escritura hieroglífica.

Diz Derrida:

“A distinção entre a escritura fonética e a escritura não-fonética, mesmo levando em conta quão indispensável e legítimo ela o é, permanece como totalmente derivada frente ao que se poderia denominar uma sinergia e uma sinestesia fundamentais. Disso se conclui que não somente o fonetismo nunca é todo-poderoso, como também que, desde sempre, começara a trabalhar o significante mudo”. [9]

Não podemos seguir passo a passo a análise que Derrida faz das teses de Saussure. Em todo caso, põe em evidência que, ao colocar a escritura como representação da língua falada, dá-se à escritura um caráter de exterioridade, uma exterioridade puramente instrumental e secundária.

Agregado ou suplemento de uma fala em si plena, o salto à escritura aparece, pois, como um fato de violência, uma “usurpação” que remete então à possibilidade de uma essência não contaminada inscrita na fala.

Depois de denunciar a metafísica inerente à idéia de signo, Derrida sustenta que a língua oral é já escritura. Essa reversão implica uma modificação profunda do conceito de escritura. Sua pretensa “derivação” requer uma condição: que não tenha existido nunca a pressuposta linguagem original, natural. Tal linguagem primária já foi, desde sempre, escritura. Esse é o conceito da arquiescritura, outro nome da diferensa [10], da qual falaremos mais adiante.

Derrida aplica os mesmos princípios desconstrutivos em sua leitura dos textos de Levi-Strauss. O fundador da antropologia moderna maneja uma concepção da linguagem de inspiração saussuriana, a partir da diferença corriqueira entre língua falada e escritura. O aparecimento secundário da escritura estaria ligado, para o antropólogo, a sociedades em que se exerce a exploração do homem pelo homem. Ao negar assim o caráter de escritura para a língua falada, produz-se um apagamento da arquimarca que permite voltar a esse outro mito das origens, o do bom selvagem, o dos povos anteriores à escritura e nos quais não existiria a exploração do homem pelo homem. Mas – sustenta Derrida – a postulação da existência de povos sem escritura é uma ilusão daqueles que reduzem a escritura à forma vulgar, considerando- a a gráfica de uma pretendida substância fonética.

Derrida assinala o etnocentrismo que está em jogo em tal concepção.

“Mas um etnocentrismo que, pelo contrário, considera-se como anti-etnocentrismo, etnocentrismo dentro da consciência do progressismo liberador. Ao separar radicalmente a língua da escritura, ao colocar esta última abaixo e fora, ao crer pelo menos poder fazê-lo, ao fazer-se a ilusão de liberar a lingüística de toda passagem pelo testemunho escrito, pensa-se efetivamente devolver o estatuto de língua autêntica, de linguagem humana e plenamente significante a todas as línguas praticadas pelos povos que, apesar de tudo, continuam sendo chamados de “povos sem escritura”. Idêntica ambigüidade afeta as intenções de Levi-Strauss, e não por acaso.” [11]

Essa não é uma crítica de pouca monta, quando recai sobre o investigador que denunciava o etnocentrismo presente na denominação de “povos primitivos”, ou sobre quem colocou em evidência a complexidade estrutural das estruturas pretensamente elementares do parentesco.

É por isso que, voltando ao paradoxo do começo, quando ironizávamos, dizendo que, nesse colóquio dedicado à escritura, fazíamos uma exposição oral, é necessário agora matizá-la invertendo-a, por assim dizer, desconstrutivamente: é somente porque, de alguma forma, está escrita, que esta colocação pode ser expressa em sua forma falada.

Em um trabalho anterior [12], parafraseando Thomas Mann, dizíamos que o sonho foi sonhado porque já fora antes interpretado. No mesmo sentido, que o falado esteja já escrito não nos deve surpreender. Por isso, não é casual que o poster que representa esse colóquio seja uma pintura de Miró [13]: escritura sem significado, pontos e traços sobre um azul infinito, forma de escritura que inclui, forçosamente, sem poder excluí-la, a pintura. Isso se aplica também a essas inscrições ponteadas de certas etnias às quais Levi-Strauss nega a hierarquia de escritura e frente ao que Derrida abre um enorme ponto de interrogação: com que direito, sob que princípios, pode-se sustentar tal denegação?

O termo-chave para dar conta dessa concepção não restrita da escritura, e que já o tínhamos mencionado, é a diferensa. Derrida esclarece que não se trata de uma palavra nem de um conceito, mas de um mecanismo, que ele chama la différance. [14] Consiste em uma mudança de uma letra na escritura em francês da palavra différence na qual se substitui um e por um a. Fonologicamente essa mudança de uma vogal não pode ser reconhecida. Produz-se assim uma marca muda, uma intervenção gráfica e transgressiva calculada para poder abrir a questão da escritura e a relação desta com a fala.

Foram feitas duas propostas para a tradução desse neologismo derridiano: a primeira é chamá-la diferancia, e nos parece que essa proposta não cumpre o requisito da marca muda, já que em espanhol essa substituição do e pelo a produz uma diferença fônica. A segunda proposta é traduzí-la por diferenzia, e com isso se recuperaria o valor homofônico da proposta em francês com os requisitos de marca muda e seu caráter transgressivo ortográfico. De nossa parte, preferimos traduzi-lo por diferensia, que reúne os requisitos antes mencionados com o acréscimo, em espanhol, da inclusão ali do ens, do ente, produto também da escritura. ...

“...se a diferensa é (ponho o “é” barrado) o que faz possível a apresentação do presente, ela não se apresenta nunca como tal” [15].

A diferensa nos põe mais claramente na pista daquilo a que aponta Derrida quando critica a metafísica da presença.

Ao carecer de essência e de existência, não sendo palavra nem conceito, a diferensa é uma proposta estratégica, que permite evitar ou prevenir toda a possível reapropriação ontológica ou teleológica.

A análise semântica permite que nos aproximemos da compreensão do que consiste esta aventura, este jogo da diferensa. Diferir tem dois sentidos (isto é válido tanto em francês como em espanhol): o primeiro remete a postergar, deixar para mais tarde, especifica uma determinação temporal. Derrida usa para isso o termo “temporalização”. O segundo sentido de diferir, que é também o mais utilizado, tem a ver com o diferente, como o não-idêntico nessa acepção destaca a importância da repetição, do espaçamento.

“... ‘diferensa’ designa a causalidade constituinte, produtiva e originária, o processo de ruptura e de divisão cujos diferentes ou diferenças seriam produtos ou efeitos constituídos.” [16]

Aplicando isso à lingüística do signo, evidencia-se que ele (o signo) se apresenta como uma presença diferida, como uma postergação do momento de encontro com a coisa em si, essa que supostamente poderia, em virtude do signo lingüístico, encontrar-se ante quem fala. A diferensa questiona essa origem, questiona toda possibilidade de encontro com a coisa e a re-presentação não teria assim um caráter secundário. A diferensa é a que produz as diferenças e não está antes delas, e, mais ainda, nunca está presente. Assim, coloca-se em questão toda idéia de origem. Trata-se de um deslocamento indefinido, já que é a origem que não é originária. O que importa não é o encontro, senão o eterno desencontro com coisa. Aquilo que, sendo diferido, necessita da repetição diferenciadora. Desencontro entre o que se passa pela primeira vez e a segunda vez (primeira vez que nunca ocorreu e que é efeito retroativo do espaço que abre a própria diferensa). Para empregar os termos de Nietzsche, a máscara abre o espaço da representação, e a representação é a própria realidade, não remetendo a nenhuma presença que estaria atrás dela.

Por isso Derrida questiona a possibilidade de se perguntar: o que difere?, quem difere? – perguntas que necessitam ser impugnadas por estarem habitadas pelos pressupostos de um que ou de um quem, anteriores à própria diferensa. O que e o quem são produtos dessa diferensa.

Deste modo, a diferensa nos põe em relação com o que ignoramos e que excede a alternativa da presença e da ausência. É a essa alteridade radical que Freud deu o nome de Inconsciente.

“... o inconsciente não é, como se sabe, uma presença escondida de si mesma, virtual, potencial... Essa alteridade radical, com relação a todo, modo possível de presença, se assinala em efeitos irredutíveis de destempo, de retardamento.” [17]

Em Nietzsche, em Freud, em Levinas, Derrida vê delinear-se um fechamento do tempo da ontologia e o início de uma nova perspectiva onde a diferensa encontrará um lugar.

De Levinas toma essa magnífica expressão, com a qual se define o enigma da alteridade: “um passado que nunca foi presente” e que, para nós, define o próprio campo da atividade psicanalítica.

Por essa via de encontros, Derrida realiza uma meticulosa e rigorosa leitura dos textos freudianos. Tal leitura não teria sido possível sem o retorno a Freud de Lacan.

A pergunta que instiga a investigação freudiana é: em que consiste a memória? Aquilo que puder explicar a memória em todas as suas formas – incluindo o esquecimento – explicará a realidade psíquica.

Derrida reconstrói o trajeto de Freud, desde o Projeto de uma Psicologia para Neurologistas de 1895 [18], até a Nota sobre o Bloco Mágico de 1924. [19] Tudo ali está marcado pelas referências escriturais que, no entender de Derrida, não são metáforas: “Indubitavelmente, Freud não maneja metáforas, se manejar metáforas é fazer alusões com o conhecido a respeito do desconhecido. Mediante a insistência de sua inversão metafórica, torna enigmático, pelo contrário, aquilo que se acreditava conhecer sob o nome de escritura” [20].

No Projeto, Freud se vê obrigado a conceber diferentes aparelhos supostamente neurológicos, que têm de responder a um duplo requisito: serem capazes de apagar a marca do estímulo para deixar sempre livre e receptiva a superfície, e conservar em outro sistema aquilo mesmo que apagou. Nisso consiste o próprio mistério da memória.

Do Projeto podemos passar para a famosa Carta 52 de sua correspondência com Fliess, de 6 de dezembro de 1896. Ali apresenta um esquema de aparelho psíquico que inclui vários sistemas diferenciados em suas funções. A possibilidade da passagem das marcas de um sistema a outro, ou de seu estancamento, dependem de sua “reordenação segundo novos nexos, uma retranscrição (Umschrift)... a memória não preexiste de maneira simples, mas múltipla, está registrada em diversas variedades de signos.” [21] O modelo de uma memória que já é escritura impregna toda essa carta.

De A Interpretação dos Sonhos só nos reterão dois aspectos. Primeiro: as considerações de figurabilidade – mecanismo do trabalho de sonho que tem de dar conta do caráter visual desse sonho. Freud ilustra a formação dos sonhos fazendo alusão a diversas analogias – os hieróglifos, o rebus, os comics ou a escritura ideográfica; todos eles modelos escriturais. Os modelos escriturais abrem a cena onde o sonho e a história poderão se representar [22]. Segundo: o aparelho psíquico que tem de dar conta dessa colocação em cena, a outra cena, está constituído por traços mnêmicos, marcas escriturais que poderão ou não ser ativadas, segundo suas vias de facilitação (Bahnungen).

Em Mais além do princípio do prazer, Freud apresenta o jogo do fort-da, com o seu neto lançando e recolhendo o carretel. A repetição aparece ali como fundadora da marca. É no Seminário II que Lacan trabalha esse texto de Freud, postulando a relação da linguagem com a morte. Ali Lacan desmonta toda referência biologista da pulsão de morte e propõe o registro simbólico como aquele onde a palavra, sendo a morte da coisa, faz da morte condição de possibilidade da vida. Derrida aceitaria, seguramente, essa homologação da linguagem com a morte, sempre e quando essa linguagem seja já uma escritura.

Chegamos assim à Nota sobre o Bloco Mágico, esse artefato consistente de uma superfície encerada e uma folha solta de celulóide que a cobre e que permite conservar na superfície encerada o que foi escrito sobre o celulóide e que se apaga sempre que o celulóide é separado da superfície encerada. Esse artefato permite a Freud exemplificar maravilhosamente o duplo requisito da memória, o requisito do apagamento e da conservação, ou, melhor dito, que a memória permite conservar porque foi apagado.

Os sistemas de transcrições que Freud propõe supõem uma escritura primeira, uma origem. Esse é o limite que Derrida vai questionar, postulando a inexistência de tal origem. Trata-se de um deslocamento perpétuo. Sempre teremos de nos haver com transcrições que são – ao mesmo tempo – originais e cópias, porque o “verdadeiro” original está sempre deslocado.

Freud inventa uma primeira experiência real de satisfação, para dar conta da satisfação alucinatória do desejo. Esse grau zero da escritura e da memória é, na realidade, uma experiência primeira e nostálgica que nunca aconteceu. Mas é também um mito teoricamente necessário: um passado que nunca foi presente, efeito retroativo de uma limitação ao gozo que procede da própria natureza, mas que o sujeito oscilará logo em atribuí-la ao Outro ou a si mesmo. No campo da literatura, essa situação foi reiteradamente trabalhada por Rilke, e a esses trabalhos Cláudio Magris dedicou um excelente ensaio em seu livro El Anillo de Clarisa [23]. Rilke, o escritor da nostalgia, também se pergunta constantemente: quando é o presente? Vivemos constantemente empurrados para um passado mítico, a partir de um agora que também será mitificado.

Realizamos até aqui um rápido percurso por alguns textos freudianos. Tratamos de sublinhar a incidência dos escritos de Freud no pensamento de Derrida e os pontos em que insere seus comentários críticos. Isso pelo lado de Freud e no modo como este é lido por Derrida.

Entremos agora pelo lado de Lacan. Da Gramatologia faz duas referências implícitas a Lacan, ainda que seu nome não seja citado. São os pontos em que Derrida menciona a impossibilidade da palavra plena. Todos sabemos que esse é um tema lacaniano por excelência, proposto e amplamente considerado no Discurso de Roma (1953), quando a lingüística saussuriana está mais presente para Lacan e é o instrumento que lhe permite realizar uma leitura absolutamente original da obra de Freud. Não obstante, essa associação não dura muito e entra em crise quando Lacan impugna um conceito fundamental da lingüística saussuriana, qual seja, o conceito de significação [24]. A separação de Lacan dos enunciados de Saussure fica marcada com a cunhagem de dois neologismos: a significância e a lalíngua. A significância, como efeito de significação, trata de subtrair- se ao que Derrida critica como efeito de presença por meio do significado. Enquanto a lalíngua, Brausntein [25] assinala que o equívoco se produz no aparecimento de uma marca escritural e não fônica, o que responde estritamente à definição de diferensa de Derrida.

São essas mudanças uma resposta de Lacan a uma interpretação implícita na leitura derridiana? Deixemos aberta a pergunta, conformando- nos com a mera sugestão.

Sabemos que Lacan passará da proposta de palavra plena para o de dizer pela metade (mi-dire), e à condição de não toda, que caracterizará, em sua obra, A mulher (que só existe barrada, quer dizer, tal como a diferensa) e a verdade. Ambas, A mulher e a verdade só podem se dizer pela metade. Essas modificações que Lacan introduz em sua obra, e que estamos sublinhando, vão na direção dos assinalamentos de Derrida, movimentos de incompletude, de não-fechamento.

Outro ponto de encontro / desencontro entre os autores que nos ocupam surge da cuidadosa leitura que Derrida faz do Seminário que Lacan dedicou ao conto de Edgar Allan Poe, A carta roubada [26]. O próprio Derrida se ocupa de assinalar os pontos polêmicos entre ele e Lacan a respeito da leitura do texto de Poe e explicita oito deles [27]. Remetemos o leitor ao texto integral de Derrida. De nossa parte, nos deteremos em três pontos que consideramos fundamentais na controvérsia.

O primeiro ponto é o do trajeto próprio e circular da carta (da lettre): se a carta sempre chega ao destinatário – como postula Lacan – ainda que ela sofra um desvio, significa que a carta, a letra (carta e letra são homônimas em francês), tem um destino próprio. Isso deixaria aberta a possibilidade de um encontro, em algum momento, do significante com o significado, questão sobre a qual já nos estendemos ao abordar o problema do signo, e na qual Derrida postula explicitamente seu desacordo com Lacan. A quem pertence a carta? Há um texto fascinante de Derrida, intitulado Envois [28], texto que Derrida diz não saber se é legível. Trata-se de cartões- postais enviados entre 3 de junho de 1977 e 30 de agosto de 1979. Há um eu que escreve e um tu destinatário, sem idade, sem sexo definido, às vezes homem, às vezes mulher, nessa carta aberta que é um cartão postal. Esse divertimento pode ser pensado como uma resposta lúdica de Derrida a Lacan em torno do tema da carta. Lacan é indubitavelmente um dos destinatários, um entre todos, pois quem quiser poderá sê-lo. Não obstante, à luz dessa conversação secreta, o texto produz, a cada volta, efeitos caleidoscópicos. Derrida analisa ali inúmeras situações críticas sobre a questão da carta, desde o cartão postal, passando pela análise de uma história da rainha Ester, tema da festa de Purim na tradição judaica que contém – como no conto de Poe – um rei, uma rainha, um ministro e o uso do selo real. Depois, detém-se na análise das cartas de Platão, 13 cartas de autenticidade duvidosa em distintos graus, para fazer ainda mais complexa e variada a gama de possibilidades: de quem é ou a quem está dirigida uma carta de autenticidade duvidosa? De nossa parte, poderíamos acrescentar o exemplo das Cartas a Milena, de Kafka, a recompilação destas cartas inclui referências a uma carta de Milena a Kakfa, de cujo conteúdo este nunca chegou a se inteirar, desde que Milena pediu encarecidamente a Kafka que a devolvesse sem lê-la. A pergunta sobre a quem pertence a carta permanece aberta.

Contextualizemos o momento em que Lacan dita o seminário consagrado a A carta roubada. Ele se coloca como o autêntico herdeiro da letra freudiana frente à princesa Marie Bonaparte. Daí a necessidade de sustentar que a carta sempre chega a seu destino, que a carta forja o destino, esse é o desígnio de Lacan. Para Derrida, o significante nunca se encontra com o significado e, por isso, não se pode pretender fechar a significação em algum ponto, por importante que este seja. Desse modo, o conto de Poe continua aberto à disseminação e não remete a nenhuma verdade.

O segundo tema problemático que separa a leitura que esses dois autores fazem do conto de Poe é conseqüência do anterior. Trata-se da verdade como desvelamento. Essa conceituação, próxima do pensamento de Heidegger, permite a Derrida assinalar que ela não consegue superar a metafísica, como supunha. Heidegger, levando a metafísica a seus limites, fica no campo da ontologia – e sua conceituação da verdade é uma das razões pelas quais não consegue transcendê-la – diferentemente de Nietzsche, a quem Derrida diz seguir. Para Nietzsche, não há verdade com maiúscula, tampouco existe significante algum que seja transcendente. Assim nos vemos levados ao tema seguinte.

O terceiro ponto que nos interessa sublinhar na polêmica diz respeito à posição transcendental do falo, ponto em que, paradoxalmente, a interpretação de Lacan coincide com a da princesa Marie Bonaparte. Os dois psicanalistas apontam para o falo, o pênis faltante da mãe. Sobre esse ponto, Derrida objeta que não há possibilidade de falocentrismo sem falocratismo, que a diferença não é uma simples distinção, já que implica sempre numa hierarquização [29].

Mas assim como assinalamos o afastamento de Lacan da lingüística saussuriana, também vale a pena sublinhar o caminho que vai, na produção lacaniana, desde A Significação do Falo (1958) [30] e Idéias diretivas para um congresso sobre a sexualidade feminina (1960) [31] até o Seminário XX, Encore [32], onde Lacan postula as fórmulas de sexuação e propõe, além do gozo fálico, a existência de um outro gozo, o gozo do Outro, gozo feminino, entendido como suplementar. O falocentrismo segue sendo um eixo na teoria; não obstante, o gozo fálico não é mais o único.

Lacan aborda o gozo feminino chamando-o de suplementar. Esta palavra provoca evocações que não acreditamos serem gratuitas. Quando Derrida analisa na Da Gramatologia o ensaio de Rousseau sobre A origem das línguas, sublinha, com especial ênfase, a categoria de suplemento. Se para Rousseau a escritura é um suplemento da fala, assinalando assim o seu caráter secundário, Derrida se detém na qualidade multívoca do termo, já que também se supre o que não há, o que falta. É nesse sentido que Derrida postula a necessidade de uma nova lógica do suplemento.

Será o gozo feminino, o gozo suplementar, a resposta lacaniana a essa nova pontuação de Derrida? O gozo feminino que se caracteriza porque não pode se dizer e que, não obstante, pode escrever-se, marca escritural, então, e não fônica, com o que responde à própria definição de diferensa.

A esta altura de nossa exposição, podemos afirmar que o trajeto lacaniano vai desde um assunto de linguagem, em “Função e campo da palavra em psicanálise” a um assunto de escritura, em A Instância da letra no inconsciente (1957) (texto que Lacan se dá ao trabalho de esclarecer que é “anterior a toda a Gramatologia”). A partir de então, a reflexão de Lacan não deixa de se ocupar da escritura. Como exemplo, vale recordar o Seminário XX, Encore, onde, além de formular a proposta do gozo feminino, Lacan define o Real como “aquilo que não cessa de não escrever-se” e ao Simbólico como “aquilo que não cessa de escrever-se”. Mais adiante ainda, poderíamos chegar até o seminário consagrado a Joyce onde, justamente, Lacan postula a possibilidade de estabilização e de suplência do Nome-do-Pai na psicose por meio da escritura.

Seguimos o percurso de Derrida mostrando como o encontro com a obra de Freud permitiu-lhe propor novas hipóteses e articulações. Assinalamos os pontos críticos de sua relação com Lacan e a maneira pela qual Lacan foi modificando suas posições, aproximando-se cada vez mais das postulações de Derrida. Vimos que Derrida postula em Da Gramatologia a impossibilidade da primazia do significante e da palavra plena, posições que Lacan se viu levado a abandonar. Em “O carteiro da verdade”, Derrida aponta para a impossibilidade de um destino préestabelecido que permitiria esperar o encontro harmônico do significante com o significado. Lacan define mais adiante o S (sujeito barrado), e em fading entre um S1 impronunciável e um S2 que vem representá-lo. Será demasiado arriscado afirmar que essa definição tem aproximações com a diferensa: o sujeito como efeito da repetição entre um primeiro tempo irrecuperável e um segundo tempo que virá representá-lo? Mais adiante, nas fórmulas de sexuação, o gozo fálico já não reina como único, e mais: Lacan reconhece a possibilidade de outro gozo, o gozo suplementar da sexualidade feminina. Concluiremos por isso que ambos estão dizendo o mesmo ou que Lacan se tornou derridiano (como sugere Derrida em Pour l´amour de Lacan)? Ou, como propõem alguns supostos defensores de Lacan, que a crítica de Derrida não tem cabimento porque o que Lacan queria dizer é o que Derrida disse?

Não creio que nenhuma dessas seja a resposta adequada, pois com elas estaríamos assimilando um ao outro. Melhor seria conservar a diferensa e os efeitos de fecundação recíproca que estão em jogo nessa particular intertextualidade.

Passemos, para terminar, a outra anedota de desencontro relatada pelo próprio Derrida: Lacan havia dito a René Girard em Baltimore [33]. “Sim, sim, mas a diferença entre ele (Derrida) e eu é que ele não tem de lidar com gente que sofre”. Derrida considera muito imprudente essa expressão referida a algo sobre o que Lacan não poderia saber, nem quanto ao sofrimento das pessoas com quem tinha de lidar, nem quanto à transferência. Em outras palavras, Derrida lhe negava, dessa forma, o lugar que Lacan pretendia arrogarse, o de Sujeito Suposto Saber.

Também aqui Derrida tem razão: tudo o que tem que ver com a escritura tem que ver com o sofrimento, porque a escritura é enfrentamento com a morte, e tem também que ver com a transferência, à medida que seu lugar é o de sustentação de múltiplas transferências. E, não obstante, também Lacan tem razão. Porque o que, em nosso entender, marca um hiato, uma diferença radical em suas práticas, é que o psicanalista dever encarregarse do problema da psicose.

Se, no campo da literatura, a leitura em abismo abre ao infinito a possibilidade de outras leituras, que acontece quando no sujeito falta esse tamponamento que pode pôr limite ao deslizamento infinito dos significantes? Tal situação é a própria experiência da loucura.

Esse papel de tampão para o incessante deslocamento significante na loucura é cumprido, no ensino de Lacan, pelo significante do nome-do-pai que deve substituir o desejo da mãe na metáfora paterna. Quando essa função falha, e desencadeia-se a psicose, é a metáfora delirante a que corresponde a função de tamponar, de frear o escoamento dos significantes e permitir assim um processo de restauração, de estabilização de alguma realidade, por pessoal que seja.

Essa diferença, qual seja, em Derrida a disseminação que é infinita e em Lacan a de se repetirem os modelos que buscam um ponto de estabilização, pode ser rastreada em distintos momentos na obra de Lacan. Para mencionar alguns: no Seminário XI34, Lacan propõe o modelo da rede de pesca com uma abertura em que coloca o objeto a, o que possibilita a “pulsão temporal do inconsciente”; e, quando mais adiante, encontramo-nos com a fórmula do fantasma S a, o objeto a vem também obturar o mais além do nada e produz assim o umbral do representável.

Gostaria, assim, para terminar, de deixar colocada a hipótese de que a principal diferença que fica em pé nesse campo cultivado por Lacan e Derrida é a elaboração lacaniana do objeto a, perda necessária para que se constitua o sujeito. Por isso o campo da psicose é o lugar das diferenças e da diferensa.

A relação de Lacan com Derrida merece, por sua complexidade, um estudo detalhado de tudo o que aqui fica apenas esboçado.

Muitas perguntas permanecem pendentes: será que a desconstrução e o recorrer à diferensa permitem à filosofia sair do campo da metafísica? Da mesma forma que Heidegger, de quem Derrida diz que fica dentro do campo da ontologia que pretendia superar, também ele não permaneceria na mesma disjuntiva? Será uma disjuntiva insuperável?

Em recente entrevista jornalística [35], Derrida sustenta que a desconstrução é a experiência do impossível. Se bem que são distintas práticas que fazem incursões até o limite do impossível, não podemos deixar de ter em conta que tanto Lacan como Freud definiram a psicanálise como a prática do impossível.

Derrida psicanalista? Um Derrida lacaniano?

Maio de 1994

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