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Resumo
Resenha de "O amor que rouba sonhos: um estudo sobre a exposição feminina ao HIV" - João Alberto Carvalho. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003, 195 p.


Autor(es)
Eliane Costa Dias
é psicanalista, psicóloga, mestre em Psicologia Social pela PUC/SP, membro da Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise – CLIPP, onde é coordenadora no Núcleo de Pesquisas em Psicanálise e Medicina, membro da comissão de ensino e docente junto ao Curso de Formação em Psicanálise mantido por essa instituição.


Notas

1. Carlos G. Motta, Sida: un nombre de lo real. Texto apresentado no XIII Encontro Internacional do Campo Freudiano e Primeiro Encontro Americano, Buenos Aires, set./2003, disponível nos anais eletrônicos do congresso – >info@eamericano.com.ar<.

2. Brasil: CN DST/AIDS, Boletim Epidemiológico: Aids. Brasília, dez/2003.

3. A esse respeito ver, por exemplo, a discussão desenvolvida por Lacan na introdução de seu Seminário livro 4 – A relação de objeto, Rio de janeiro, Zahar, 1995, e o texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957)” in Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 2000.

4. Jacques Lacan, Seminário livro 20 – Mais, Ainda, Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

5. E. Z. Schermann, O gozo en-cena: sobre o masoquismo e a mulher, São Paulo, Escuta, 2003, p. 167.

6. Serge André, O que quer uma mulher?, Rio de Janeiro, Zahar, 1998, p. 256.

7. V. Rocca, “Del brillo que puede configurar un sujeito HIV+, ”Psicoanalisis y el Hospital, ano 10, n. 20, nov./2001.



Abstract
By Eliane Costa Dias – review of João Alberto Carvalho, O amor que rouba sonhos. The vulnerability of women to HIV infection is here discussed, both from an epidemiological point of view and in a dialogue with Psychoanalysis and the social sciences. Gender relations, the author concludes, are organized in a way that favors exposure to the virus in an increasing scale: women’s ideals of romantic love make it difficult for them to believe that their partners have been infidel and contracted HIV.

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 LEITURA

Mas, afinal, o que querem essas mulheres?

After all, what do these women want?
Eliane Costa Dias


Um dos primeiros pontos que chama a atenção no texto de João Alberto Carvalho é a clareza com que apresenta seu tema de estudo e sua proposta de investigação e discussão teórica do mesmo. Seu tema – a vulnerabilidade feminina à infecção pelo HIV/Aids.

Após mais de duas décadas de enfrentamento da epidemia, a Aids continua sendo um grave problema de saúde pública mundial, com repercussões sociais, políticas, econômicas, culturais e psicológicas que lhe conferem o estatuto de um verdadeiro “fenômeno” da cultura contemporânea ou, nos termos de Carlos Gustavo Motta [1], de um fantasma no laço social. Um problema de saúde pública ainda em expansão, particularmente em alguns subgrupos populacionais, entre os quais destaca-se a população de mulheres.

No Brasil [2], a chamada feminização da epidemia é evidenciada pela variação na proporção entre o número de casos masculinos e femininos, que em 1985 era de 25/1 e em 2003 chega a 1,8/1. A transmissão sexual segue sendo a principal via de contágio entre as mulheres maiores de 13 anos (54% do total de casos notificados), destacando-se que aproximadamente 70% dos casos femininos encontram- se na faixa etária de 20 a 40 anos, ápice da vida produtiva e reprodutiva.

Na tentativa de contenção dessa trajetória feminina da Aids no Brasil, muitos esforços e recursos têm sido investidos em programas de informação, orientação e assistência, visando instrumentar a população de mulheres no reconhecimento das noções de risco e prevenção. No entanto, vários estudos constatam que um nível básico de conhecimento sobre a doença e seus meios de prevenção não resulta efetivamente, entre as mulheres, em uma capacidade de avaliação realista sobre suas possibilidades de risco, muito menos em adoção de cuidados de prevenção.

Desta forma, como abordar a dificuldade feminina de negociar o chamado “sexo seguro”? Como compreender os inúmeros casos de mulheres que se relacionam sexualmente sem proteção ou engravidam com parceiros sabidamente soropositivos? Como explicar a persistência de uma certa “tolerância”, por parte das mulheres, em relação aos comportamentos de risco de seus parceiros?

Partindo destas mesmas interrogações, João Alberto Carvalho se propõe a investigar e compreender a vulnerabilidade feminina à infecção pelo HIV/Aids recorrendo à interlocução com a psicanálise e com a produção teórica das ciências sociais sobre as relações de gênero. Esse tema de estudo, no entanto, é o fio condutor de uma articulação teórica complexa e instigante.

Desde o início, o autor explicita a hipótese fundamental que norteia todo seu trabalho: há um posicionamento das mulheres que contribui para a exposição à infecção. Um posicionamento ativo, de reprodução de um ethos cultural dominante que estabelece à mulher uma condição de assujeitamento no cenário das relações de conjugabilidade e das parcerias afetivas e sexuais.

No desenvolvimento desta tese, o autor nos convoca a refletir sobre as relações entre a constituição da subjetividade e da singularidade do desejo e as determinantes culturais impostas pela ordem simbólica, pelo contexto histórico e social. Nessa articulação, parte da afirmação de que a noção de funcionamento imaginário, como formulada pela psicanálise, oferece subsídios importantes para pensar o papel que o processo de adoção de ideais sociais desempenha na constituição da subjetividade e da identidade de cada sujeito.

Aplicando este referencial de leitura ao presente tema, João Alberto Carvalho parte da hipótese de que a maneira como as mulheres posicionam-se nos relacionamentos afetivos e sexuais é determinada pela identificação, imaginária, com ideais sociais sobre ser mulher, historicamente construídos e em plena circulação no imaginário social. “Trabalhamos com a hipótese de que as relações de gênero e os ideais românticos amorosos impõem arranjos reforçadores da subordinação feminina e que, por isso, podem facilitar a exposição da mulher ao HIV. Esses modelos de relação repercutem do ponto de vista individual, no imaginário, ou seja, a noção psicanalítica de imaginário traz subsídios, a nosso ver, para entender a adesão das pessoas a padrões culturalmente constituídos” (p. 21).

Na discussão sobre o imaginário psicanalítico e os ideais sociais, Carvalho recorre basicamente às noções freudianas de narcisismo e de ideal e à noção de imaginário como desenvolvida por Jacques Lacan, dialogando o tempo todo com a leitura que Jurandir Freire Costa faz desse conceito psicanalítico, ao propor a existência de relações entre a dinâmica intra-subjetiva de constituição dos ideais do Eu e a adesão dos indivíduos a certos ideais sociais, encarados como imagens socialmente constituídas e historicamente determinadas.

Ao reconhecer o estado de desamparo fundamental que é constituinte do humano e a pulsão como uma força ativa sempre em busca de satisfação, a psicanálise nos apresenta um sujeito movido pela busca constante de um objeto, que, por ser essencialmente um objeto perdido, institui o humano na condição de ser um ser desejante.

Em Freud, as noções de narcisismo e de ideal vêm explicar esse movimento de constituição do sujeito e sua relação com a pulsão e com os objetos: “para Freud a instalação do narcisismo primário e secundário, respectivamente, pressupõe dois movimentos essenciais: no primeiro, as pulsões sexuais parciais, que até o momento funcionavam de uma maneira auto-erótica, fragmentada, são unificadas, constituem o ego e o tomam como objeto; no segundo movimento, esses mesmos investimentos, que já foram direcionados ao mundo externo, retornam ao ego, tomando- o novamente como objeto. Além do auto-erotismo e dos narcisismos há a etapa da escolha objetal, que se dá diante do enfrentamento do mundo externo. Dividir a mãe com outros indivíduos exige um partilhamento do olhar antes concentrado na díade mãe-bebê e ocasiona uma ferida no narcisismo infantil. Perde-se o imediatismo do amor, mas, por meio do reconhecimento da incompletude, parte-se para buscar a recuperação da perfeição narcisista por meio dos ideais e das representações socioculturais. É nesse sentido que Freud situa os ideais como herdeiros do narcisismo infantil, permitindo a ultrapassagem para o convívio social mais amplo” (p. 52).

Partindo da noção freudiana de narcisismo, Carvalho retoma a formulação lacaniana de estádio do espelho para evidenciar como a constituição do Eu (e a conquista de uma identidade) se apóia na relação especular com o outro, numa dimensão imaginária, mediada pela ordem simbólica. O que se passa nesse momento é estruturante, na medida em que constituinte do Eu (enquanto imagem unificada do corpo próprio e objeto de investimento libidinal), mas joga um papel importante também no confronto do sujeito com a castração e no estabelecimento dos modos de relação com o objeto – objeto causa do desejo. Na passagem da ilusão do ser para a dialética do ter o falo, a criança, de ambos os sexos, é levada de maneira incontornável ao jogo das identificações.

Apoiado na leitura que Freire Costa faz da articulação lacaniana entre imaginário e simbólico (evidenciada por Lacan no esquema L [3]), e partilhando com este autor a idéia de que “no entendimento do sujeito há elementos que são constantes, como as pulsões e o inconsciente e, também, elementos variáveis, como o conteúdo do ego e dos ideais” (p. 30), Carvalho propõe pensarmos que “o ego se apresenta dentro de uma estática identificatória, baseada na sua apresentação imaginária, imutável e narcísica, que lhe permite sempre se mostrar diferente, sendo as diversas faces da identidade egóica culturalmente constituídas e reafirmadas” (p. 63).

Desta forma, no contexto das relações de conjugabilidade, seria possível relacionar as incessantes buscas amorosas do sujeito, por um lado, com os resíduos dessa dimensão especular e imaginária constitutiva da subjetividade e, por outro, com os conteúdos decorrentes de uma ordem social que, no caso da vulnerabilidade feminina à infecção pelo HIV, nos remete aos ideais de gênero.

Na análise dos ideais sociais do ser mulher, Carvalho sustenta o desafio de interlocução entre a psicanálise e outros campos de saber na área das ciências sociais, assumindo um claro alinhamento com os pressupostos de uma antropologia interpretativa e do referencial teórico do construcionismo social, considerando o homem como uma estrutura (ao mesmo tempo estruturada e estruturante), marcada pela cultura e pela imersão em uma rede simbólica.

Partindo de uma breve retomada das principais abordagens que pautaram a pesquisa acerca da sexualidade a partir dos anos 60, constata que o modelo social de feminino organiza-se em torno de dois agrupamentos de ideais: os referentes aos papéis de gênero e os relacionados ao amor romântico.

Embora constituindo um entre vários sistemas possíveis para pensar a sexualidade, a noção de gênero acabou por se impor como um eixo de ordenamento das relações sociais entre homens e mulheres, configurando uma ideologia de gênero que traduz o masculino e o feminino a partir de contingências históricas e culturais. Ficções históricas que acabam por determinar fixações de identidades sexuais definidas a partir de relações hierarquizadas e estereotipadas. Desta forma, nesse sistema, as imagens de homem e de mulher foram definidas como pares antitéticos firmemente estabelecidos: força/fraqueza, inteligência/sedução, atividade/passividade, poder/submissão, execução/criação-procriação. É inquietante perceber, no entanto, o quanto essa categoria de ordenamento do pensamento ainda persiste, apesar das intensas modificações de conduta introduzidas por uma ordem cultural que preconiza novas pautas para o exercício da intimidade e da sexualidade, baseadas no individualismo e na igualdade (ou seria na padronização e na pasteurização do desejo?).

O outro pólo identificatório que sustenta um modelo social do feminino diz respeito à persistência da valorização do amor romântico. Segundo Freire Costa (uma das principais referências do autor na discussão desse tema), arquitetada por Rousseau, a idéia romântica de amor tornou-se parte essencial da cultura ocidental moderna, assumindo uma força significativa à medida que o sujeito retraía-se cada vez mais para a esfera do privado. Na opinião desse autor, “o romantismo é mais que uma prática sentimental, é uma visão de mundo. Do ponto de vista psicanalítico isto quer dizer que a imagem ideal do Eu e o próprio sentido da existência são moldados por essa visão e têm a finalidade de mantê-la viva tanto quanto possível. [...] E, ao definirmos como ideal de felicidade o encontro amoroso romântico, estamos dizendo, nas linhas e entrelinhas, que sem essa felicidade não faz sentido viver” (p. 12). Mais uma vez, João Alberto Carvalho chama a atenção para o fato de que, mesmo confrontado com o caráter de urgência e a lógica do consumismo que caracterizam os tempos atuais, esse ideal de amor eterno persiste com um despotismo impressionante.

Acabamos por constatar uma sobreposição entre a manutenção de relações hierárquicas de gênero e o modelo romântico de amor. “Dessa forma, pelo amor, se estabelecem novas bases para os relacionamentos, constituindo-se um ideal. O sexo, retirado do conceito essencial de pecado, passa a ressaltar a complementaridade entre homens e mulheres, que só podem ser concebidos como completos, acabados, um em função do outro. Esta perspectiva oferece uma definição de sociabilidade, na qual a desigualdade constitui uma ordem necessária, estimulando a interdependência e a busca da fusão em um só ser” (p. 146).

Seguindo o raciocínio do autor, assistimos, no plano do imaginário social, ao tecer de uma ilusão que se articula com a fantasia imaginária de cada sujeito de restituição fálica através do amor.

Infiltradas no texto, deslizando por entre as articulações teóricas, as vozes femininas ecoam. O discurso das mulheres (soropositivas e soronegativas) ouvidas por Carvalho neste trabalho nos dá testemunho dessa coexistência de mudanças e permanências, de sobredeterminações inconscientes e variáveis sociais:

Márcia, soropositiva, falando de sua visão de homens e mulheres, diz: “Acho que tem uma diferença. Mulher é mais sentimento, muito mais... [...] Ela é mais ligada na parte emocional do que na parte realista, do que no objetivo. É isso! Homem é muito mais objetivo e a mulher mais subjetiva, em tudo o que ela faz” (p. 104).

Kátia, soropositiva, diz: “Sou uma mulher muito feminina. Muito feminina no sentido de ter muito forte um lado mulher, que é cuidar da casa e viver para aquele homem que a gente ama, de querer ver que ele está bonito, limpo, cheiroso, arrumado, até para as outras morrerem de inveja, sabendo que eu sou uma mulher realizada e muito bem servida, obrigada!” (p. 150).

Cleide, referindo-se ao seu casamento (agora está viúva) afirma: “era maravilhoso, MARAVILHOSO, a gente se amava demais, muito mesmo, é como se fosse aquela pessoa... quando você encontra sua alma gêmea, se completa... Era como se nos completássemos, os gostos eram iguais, o jeito da gente falar...” (p. 151).

Na análise do discurso de suas informantes, Carvalho identifica a prevalência do relacionamento amoroso como ordenador do funcionamento da vida e dos projetos sociais, como um dos principais pilares de sustentação da identidade feminina e como um dos principais fatores contribuindo para a exposição à infecção pelo vírus HIV. Retomando sua tese central de que o funcionamento imaginário é propiciador da ocupação de lugares sociais tomados como ideais, conclui sustentando a afirmação de que a crescente presença feminina nas estatísticas da Aids pode ser relacionada, em parte, com o modo como, a partir da função imaginária dos ideais do Eu, os modelos sociais de gênero e os ideais românticos de amor colocam a mulher em lugar de vulnerabilidade para a exposição ao vírus.

O autor reafirma ainda sua aposta na possibilidade da psicanálise, ao propiciar a escuta de diferenças, contribuir para desordenar as crenças nestas mesmas identidades, cunhadas socialmente, desconstruindo ideais, valores, estereótipos cristalizados, questionando seu sentido e função.

Embora partilhando do cuidadoso trabalho de articulação realizado por João Alberto, pensamos que a psicanálise, na própria abordagem da feminilidade, nos oferece ainda mais alguns subsídios para pensar a vulnerabilidade feminina ao HIV/Aids.

Compreendemos com Freud e Lacan que o que define o humano é ser um ser-de-cultura. É pela entrada em uma ordem simbólica que o antecede e significa que o corpo (pedaço de carne) torna-se corpo humano e o recém-nascido (pedaço de carne vivo) torna-se ser humano.

No entanto, a imersão na ordem simbólica e da linguagem impõe uma perda fundamental – uma perda no real do corpo, uma perda em gozo. Como assinala Lacan, à intrusão do significante corresponde uma extrusão de gozo. Um assujeitamento ao significante que impõe que o desejo esteja em permanente defasagem com o gozo e nos conduz à verdade da não existência da relação sexual. Um princípio de heterogeneidade irredutível que caracteriza o ato sexual como um encontro sempre faltoso e o prazer como uma experiência sempre contingencial e fugaz, que nada tem a ver com duração, mas apenas com instantes. No entanto, a resistência em aceitar essa perda conduz os seres falantes, de ambos os sexos, a se instalarem no parecer, no semblante, na demanda de amor.

Assim, inserindo na discussão a noção de gozo e o arco do real do nó borromeano de Lacan, a psicanálise tem a dizer que o amor está ligado diretamente ao semblante e tem por função preencher um vazio: o amor procura realizar o encontro que, pelo lado do gozo, se verifica impossível. Assim, o amor é dar o que não se tem.

Para Lacan [4] a relação masculino/feminino tem a ver com duas posições diferentes diante da castração e do gozo. Entretanto, como existe apenas um significante para representar o sexual (o falo), a mulher é privada de um significante que defina o ser mulher. Se o sujeito masculino encontra o significante de sua virilidade no mesmo lugar onde encontra o significante de seu gozo sexual e, por isso, pode ter a ilusão de ser todo fálico, a mulher terá que buscar esse significante fora de si. “Como suprir a privação senão buscando-a no corpo do parceiro?” [5]

Para Serge André, o que uma mulher demanda é subjetivar essa parte insubjetivável de si própria que representa o seu corpo. Na busca desesperada de significação para o seu ser e submetida à ordem fálica, a mulher quer ser o falo, ser o objeto que realiza o desejo do Outro, que preenche a falta do Outro, numa eterna demanda de amor. “Não é de admirar que as mulheres questionem sistematicamente o amor, nem que elas o demandem de seu interlocutor. É preciso amá-las e lhes dizer isto, menos por uma exigência narcísica do que por causa dessa defecção subjetiva pela qual elas são marcadas enquanto mulheres. Se querem ser amadas, não é porque esse anseio tenha a ver com uma passividade natural, como acreditava Freud, mas porque querem ser feitas sujeitos lá onde o significante as abandona” [6].

É no ser e no reconhecimento daquele a quem dirige sua demanda de amor, que uma mulher busca encontrar o significante do seu próprio desejo. Para uma mulher, o equívoco em sobrepor no parceiro o objeto de amor e o objeto de desejo faz com que, na posição feminina, o amor oculte o desejo.

Mas, se amar é dar o que não se tem, o amor experimentado por uma mulher pode conduzi-la a uma angústia devastadora. O que leva Lacan a afirmar que, para uma mulher, o amor por um homem pode ser muito pior que um sintoma, ou seu pior sintoma!

Desta forma, o “homem castrado”, o “estropiado” é uma escolha tentadora na medida em que evidencia em seu próprio corpo uma falta (o alcoolismo, a droga, a promiscuidade, o HIV+, a depressão etc.) que a mulher pode farejar e sobre a qual vai se alojar na tentativa de dar um sentido a sua própria falta-a-ser. No cenário da epidemia de Aids este movimento fica cada vez mais evidente no fenômeno crescente dos pares discordantes – casais (hetero ou homossexuais) onde um parceiro é HIV+ e o outro soronegativo. O sujeito HIV+ acaba recoberto de um valor fálico que o posiciona (no fantasma do parceiro) no lugar de objeto. Uma escolha amorosa constituída para seguir velando a falta em ambos os integrantes do casal. No entanto, como alerta Viviana Rocca [7], uma escolha que se converte em armadilha: para o sujeito soronegativo não há lugar para a perda do amor e para o sujeito HIV+, não há saída dessa captura amorosa.

No campo do enfrentamento da epidemia de HIV/Aids, a psicanálise tem a dizer, portanto, que parte da vulnerabilidade feminina à infecção está relacionada com a própria constituição da feminilidade, para cada mulher. Tem a ver com a forma como ela vive e se coloca nas relações sexuais e afetivas, a partir de ideais socialmente constituídos e, principalmente, a partir da forma como se posiciona em relação ao Outro e em relação ao desejo e a seu modo de gozo.

É evidente que compreender e abordar a vulnerabilidade das mulheres, não apenas à infecção pelo HIV, mas na área da saúde em geral, é uma tarefa complexa e multifacetada, mas certamente estéril se não pudermos levar em conta essa dimensão da subjetividade feminina, sem que os profissionais de saúde possam ajudar suas pacientes a se fazerem questão sobre o ser mulher.

Assim, talvez possamos contribuir para que essas mulheres, seres falantes do sexo feminino, possam passar do amor desmedido, que rouba os sonhos (ideal e sempre além), para o amor vivido (o amor possível, o amor realizável).
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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