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Resumo
Ao contrário do usual, Freud, que produzia seus escritos com rapidez e sem vacilações, empenha-se em redigir, entre 1908 e 1911, o que em sua literatura epistolar e da maneira abreviada ele chama de “Methodik”. O projeto será abortado, dando lugar aos pequenos artigos técnicos publicado a partir de 1911. Para além do reconhecido pudor de escrever sobre a técnica psicanalítica, procura-se aqui explicar essa indecisão de Freud como resultante das novas aquisições ocasionadas pela neurose obsessiva: nesse sentido, a análise do “Homem dos Ratos” representa também um marco que anuncia o fim de uma “época de ouro” para a psicanálise.


Palavras-chave
clínica psicanalítica; Methodik; Freud; Ferenczi.


Autor(es)
Fernando Aguiar
é doutor em Filosofia e professor no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


Notas

1 A. Haynal, "Introduction". In:  S.  Freud  e  S.  Feren- czi, Correspondance (1908-1914), p. XVI.

 

2 S. Freud. "Le Dr. Sandór Ferenczi (pour son 50e anniversaire)" (1923).  In: Oeuvres complètes, v. xvi, p. 327.

3 Neste artigo, serão amplamente citadas as correspondências de Freud com K. Abraham, S. Ferenczi, C. G. Jung e O.  Pfister. Visando a evi-    tar um excesso de notas de rodapé, o número de página da obra - logo antes referida e de onde a citação foi retirada - é indicado no próprio corpo do texto.

4 S. Freud. "Remarques sur  un  cas  de  névrose  obsessionnelle" (1909).  In: Cinq psychanalyses, p. 201.

5 S. Ferenczi. "Foi, incrédulité et conviction sous l'angle de la psycho- logie médicale" (1913). In: Oeuvres complètes, t. II, p. 45.

6 S. Freud. "Contribution à l'histoire du mouvement psychanalytique" (1914). In: Cinq leçons de psychanalyse, p. 107.

7 A. Haynal, op. cit., p. xxiii.

8 Cf. S. Freud. "Conseils aux médecins sur le traitement psychanalyti- que" (1912). In: Oeuvres complètes, v. xi.

9 J. Strachey. "Introdução do editor inglês". In  S.  Freud,  "As  perspec- tivas futuras da terapêutica analítica" (1910). Edição Standard brasi- leira das obras completas de S. Freud, v. XII, p. 113.

10 S. Freud, "As perspectivas futuras  da  terapêutica  analítica",  op.  cit., p. 27.

11 S. Freud, "Fragment d'une analyse d'hystérie" (1905). In: Cinq psy- chanalyses, op. cit., p. 6.

12 J. Strachey, op. cit., p. 111.

13 A. Haynal, op. cit., p. xix.

14 Expressão utilizada por Ludwig Binswanger, em Analyse existenc- tielle, psychiatrie clinique et psychanalyse. Discours, parcours et Freud, p. 271.

15 Cf. E. Jones, La vie et oeuvre de Sigmund Freud, v. 1, p. 397, n. 2 e E. Jones, La vie et oeuvre de Sigmund Freud, v. 2, p. 272-3.

16 J. Laplanche e J.-B. Pontalis. Vocabulaire de Psychanalyse, p. 209.

17 J. Laplanche e J.-B. Pontalis, op. cit., p. 344.

18 S. Ferenczi. "Transfert et introjection"  (1909).  In:  Oeuvres  complè-  tes, t. I, p. 100.

19 Conforme Strachey (op. cit.), a escrita do Methodik teria sofrido uma interrupção com a viagem (e respectivos preparativos) aos Estados Unidos. Mas, ainda naquele verão de 1909, Freud contou  a  Jones  estar "planejando ‘um pequeno memorando sobre máximas e nor- mas de técnica', que deveria ser distribuído, privadamente, apenas entre os seus mais chegados seguidores" (p. 113).

20 Frequentemente, Freud e Ferenczi utilizam o termo "psicanalítico" como adjetivo epíteto. Eis alguns exemplos (ou recorrência): sinceri- dade psicanalítica (p. 169); resignação psicanalítica (p. 171); escla- recimento psicanalítico (p. 196); honestidade psicanalítica (p. 196); franqueza psicanalítica (p. 227).

 

21 J. M. Masson, A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904), p. 181.

22 S. Freud, "Psychanalyse" (1926). In: Oeuvres complètes, v. XVII, p.

287-96.

23 S. Freud, "Les chances d'avenir  de  la  thérapie  psychanalytique" (1910). In: Oeuvres complètes, v. X, p. 24-8. No  texto  sobre  Leo-  nardo, igualmente de 1910, Freud refere-se  às  dificuldades  do  pintor em finalizar suas obras, ao tempo dedicado a algumas delas, por vezes considerando-as inacabadas...

24 Conforme a nota 1 (p. 97) da edição consultada desta correspon- dência, "trata-se de uma variação feita por Freud, no sentido de uma astúcia, de uma expressão alemã (derivada do hebreu) e corrente na época: ‘Ein Geheimnis dürfe nur auf vier Augen stehen' quer dizer: ‘Não deveria haver segredo senão entre quatro olhos'".

25 S. Freud, "Les chances d'avenir de la thérapie psychanalytique", op. cit., p. 64.

26 S. Freud, op. cit., p. 64.

 

27 J. Strachey, op. cit., n. 2, p. 128.

28 L. Flem. Freud et ses patients, p. 87.

29 Lemos sem mais, na correspondência entre Freud e Abraham (nota  de rodapé da p. 64) que "este trabalho [Methodik] se integrará mais tarde aos escritos sobre a técnica psicanalítica". Está bem,  mas  de  que forma isso se deu? E, ainda, qual o destino (se de fato existiu) do referido memorando sobre máximas e normas de técnica, que deve- ria permanecer privado e restrito aos seguidores mais próximos? Em outras palavras, o que do Methodik permaneceu no memorando ou nos artigos técnicos publicados? Nenhum dos pesquisadores (tradu- tores, biógrafos) aqui citados, inclusive quem teve acesso aos docu- mentos de Freud, se interessou em informar a seus leitores.

30 Apud A. Haynal, op. cit., p. XXIII.

31 S. Freud. L'homme aux rats. Journal d'une analyse (1955), p. 159.

32 S. Freud. op. cit., p. 159-61.



Referências bibliográficas

Binswanger L. (1970). Analyse existenctielle, psychiatrie clinique et psychanalyse. Discours, parcours et Freud. Paris: Gallimard.

Freud S. (1914/1973). Contribution à l'histoire du mouvement psychanalytique. In: Cinq leçons de psychanalyse. Paris: Payot.

         . (1955/1974). L'homme aux rats. Journal d'une analyse. Paris: puf.

         . (1890/1984). Traitement psychique (Traitement d'âme). Résultats, idées, problèmes, I, 1­24. Paris: puf.

         . (1912/1991). Conseils aux médecins sur le traitement psychanalytique. In: Oeuvres completes, v. xi. Paris: puf.

         . (1923/1991). Le Dr. Sandór Ferenczi (pour son 50e anniversaire). In:

Oeuvres completes, v. xvi. Paris: puf.

         . (1905/1992). Fragment d'une analyse d'hystérie. In: Cinq psychanalyses. Paris: puf.

         . (1909/1992). Remarques sur un cas de névrose obsessionnelle. In: Cinq psychanalyses. Paris: puf.

         . (1926/1992). Psychanalyse. In: Oeuvres completes, v. xvii. Paris: puf.

         . (1910/1993). Les chances d'avenir de la thérapie psychanalytique. In:

Oeuvres complètes, v. x. Paris: puf.

         ; Abraham K. (1969). Correspondance (1907­1926). Paris: Gallimard.

         ; Ferenczi S. (1992). Correspondance (1908­1914), v. 1. Paris: Calmann­Lévy.

         ; Jung C. G. (1975). Correspondance (1906­1914). Paris: Gallimard.

         ; Pfister O. (1996). Correspondance (1909­1939). Paris: Gallimard.

Ferenczi S. (1909/1968). Transfert et introjection. In: Oeuvres complètes, t. i. Paris: Payot.

         . (1913/1970). Foi, incrédulité et conviction sous l'angle de la psychologie médicale. In: Oeuvres complètes, t. ii. Paris: Payot.

Flem L. (1986). Freud et ses patients. Paris: Hachette.

Haynal A. (1992). Introduction. In: S. Freud; S. Ferenczi, Correspondance (1908­ 1914). Paris: Calman­Lévy, p. xiv­xxxii.

Jones E. (1958). La vie et oeuvre de Sigmund Freud, v. 1. Paris: puf.

         . (1961). La vie et oeuvre de Sigmund Freud, v. 2. Paris: puf.

Laplanche J.; Pontalis J.­B. (1973). Vocabulaire de Psychanalyse. Paris: puf.

 

Masson J. M. (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904). Rio de Janeiro: Imago, p. 181.

 

Strachey J. (1910/1969) "Introdução do editor inglês". In S. Freud, As perspec­ tivas futuras da terapêutica analítica. In: Edição standard brasileira das obras completas de S. Freud, v. xii. Rio de Janeiro: Imago.

 





Abstract
Unlike his usually fast and non-hesitating way of writing, Freud strives to compose, between 1908 and 1911, a text he refers to in his letters as “Methodik”. It will finally be aborted, giving place to short technical articles published from 1911 on. Over and abo- ve his admitted modesty in writing about psychoanalytic technique, the author tries here to explain Freud’s vacillation as a consequence of new acquisitions brought up by his study of obsessive neurosis: in this sense, the analysis of the “Rat man” represents a landmark an- nouncing the end of the “golden age” for Psychoanalysis.


Keywords
psychoanalytic clinic; Methodik; Freud; Ferenczi.

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 TEXTO

A Methodik: um embaraço na escrita de Freud

The Methodik: an embarrassment in Freud´s writing
Fernando Aguiar

O "esplêndido isolamento" de Freud, que abrange o perío­ do final de gestação da Psicanálise, parece confirmar­se por um detalhe curioso da biografia de Sándor Ferenczi. Embora dado a experiências com a hipnose desde os tempos de colégio em sua cidade natal (Miskolc), e tendo realizado seus estudos médicos em Viena na última década do século xix, o então psiquiatra e neurologista húngaro, e no futuro um dos mais importantes psicanalistas da primeira geração, só viria a co­ nhecer o trabalho de Freud dez anos depois de retornar ao seu país natal e instalar­se em Budapeste em 1897. Segundo A. Haynal, "... no momento de seu encontro com a obra freudiana, [Ferenczi era] um homem de personalidade afirmada, dotado de ideais culturais amplos, de extensa experiência médica e terapêutica, incluindo a hipnose - tudo como Freud"1.

 

Já em sua primeira carta a Freud, de 18 de janeiro de 1908, revela que o ensino do mestre lhe ocupa o espírito desde o ano anterior - por coincidência, também o ano em que a primeira edição de seiscentos exemplares do livro fundador da psicanálise, e um dos mais importantes do século, afinal se esgotara. Ferenczi não deixou assim de figurar entre os primeiros e relativamente poucos leitores de A interpretação dos sonhos.

 

Não sem alguma resistência: conforme viria a relatar mais tarde o próprio Freud, durante algum tempo, "não se sabe se por enfado ou aversão", Ferenczi teria repelido sua obra. Fora antes atraído pelo renome da clínica de Zurique (da qual fa­ zia parte Jung, já então um adepto da psicanálise, e Bleuler, simpatizante), para só depois dirigir­se à Viena no intuito de "falar com o autor do livro que de maneira tão desdenhosa deixara de lado"2. Não o largaria mais, ao menos naquele ano: em 5 de dezembro, agradecendo o envio de "Teoria sexual infantil", cuja segunda leitura "muito lhe havia ensinado", Ferenczi refere­se ao livro do sonho: "A propó­ sito me vem ao espírito que eu deveria retomá­ lo [...] uma quarta vez; quando compreendemos as coisas um pouco mais, aproveita­se muito melhor da leitura de seus trabalhos" (p. 33)3. Os lei­ tores subsequentes assinariam embaixo.

 

Também em 1907, logo depois do retorno das férias de verão europeu, o Homem dos Ratos, tal como acabara de fazer Ferenczi, chega à psicanálise através de uma fonte bibliográfica: folheando "A psicopatologia da vida cotidiana", ali encontrara a explicação dos encadeamentos de palavras estranhas, que lhe teriam feito recordar suas próprias "elucubrações cogitativas"4. Ora, o fato de um pa­ ciente não ser mais tão ingênuo em sua demanda de análise parece premonitório do fim de uma época para a clínica psicanalítica. A própria terminologia da nova disciplina, como no seu tempo ocorreu com a kantiana, não demoraria em fazer parte do vocabulário comum - e, na própria análise, muito mais para encobrir que revelar. Doravante, Freud e os primeiros analistas passariam a contar cada vez mais com essa nova e "grosseira" modalidade de resistência na análise. Em 1913, Ferenczi já era capaz de observar um fato extraordinário:

 

[...] entre as neuroses, a grande histeria, que chega a deslocar por completo da esfera psíquica a dúvida e os sentimentos incompatíveis com a consciência, parece tornar­se cada vez mais rara. Talvez haja relação com a observação recente segundo a qual a proporção das pessoas hipnotizáveis parece em recuo. Em contrapartida, o número dos obsessivos vem crescendo5.

 

Com a análise do Homem dos Ratos em andamento fazia pouco mais de dois meses, na carta de 9 de janeiro de 1908, a Abraham, então às voltas com um caso de obsessão, Freud confirma ser a técnica empregada nesta neurose mais difícil do que aquela empregada com a histeria; e diferentes os meios de recalcamento (tomado aqui no sentido amplo de "defesa") das duas neuroses. Mas, a seu ver, a neurose obsessiva não passava "de um outro dialeto, e nada mais" (p. 27).

 

Seis anos mais tarde e mais preciso, afirma não ter encontrado nessa neurose o esquecimento que parecia ser a regra na histeria. Quando ainda fazia uso do método da velha hipnose catártica, presenciara a típica surpresa experimentada pelas histéricas (sobretudo nos casos clássicos de conversão) diante do que nelas fazia surgir as livres associações. Em troca, em meio às resistências manifestadas na clínica pelo obsessivo, ocorrem muito mais reações derivadas de um processo de "dissociação": o paciente sabe de algo sobre o qual não pensa de maneira consciente. Num dado grupo de prcessos psíquicos, o material esquecido infantil deve ser buscado nas recordações encobridoras, e às vezes de maneira tão transparente que cabe a dúvida se estamos mesmo diante de um verdadeiro esquecimento (ou recalque). Resta a lembrança de algo que não foi jamais consciente, logo, que a rigor não foi esquecido: "Em particular, é nas múltiplas formas da neurose obsessiva que o ‘esquecimento' consiste, sobretudo, na supressão dos vínculos entre ideias, no desconhecimento das conclusões a retirar e no isola­ mento de algumas lembranças"6.

 

Tais asserções, é certo, são frutos de uma reflexão continuada mas que ganha impulso nos primeiros meses de 1908. Em 25 de fevereiro, cinco meses após o início da análise do Homem dos Ratos, Freud confessa a Jung que "a entidade da histeria vem se dispersando" para ele - agora seu interesse volta­se mais para a neurose obsessiva (p. 174). Na Páscoa, por ocasião do primeiro congresso psicanalítico, em Salzbourg, apresenta o relato do caso do Homem dos ratos durante cinco horas, sem interrupção7, embora - em par­ te fiel a sua própria recomendação de não submeter um caso clínico ao tratamento científico antes de seu término8 - só viesse a escrevê­lo em definitivo entre junho e julho do ano seguinte. Duas cartas, ambas a Ferenczi, constituem disso provas definitivas: em 13 de junho de 1909: "Estou redigindo o Homem dos ratos de Salzbourg para o Jahrbuch" (p. 75) - que vem a ser o primeiro periódico psicanalítico, fundado justamente naquele ano. Em quatro de julho: "Terminei a história do Homem dos ratos, ela está pronta para ser enviada a Jung, mas esgotei toda minha capa­ cidade de trabalho para a estação" (p. 77).

 

Mas estamos ainda em 1908 (26 de novembro), e depois de dez meses de intensa e profícua correspondência, Freud conta a Ferenczi de seu empenho recente de escrever sobre o método psicanalítico: "Penso ser muito importante para aqueles que já praticam a análise. Quem não estiver envolvido com ela não compreende­ rá uma palavra" (p. 29). Ora, a despeito de quase 40 páginas escritas, o trabalho jamais seria concluído tal como projetado no início.

 

Este artigo resgata com alguma minúcia esse episódio já referido por E. Jones, o biógrafo oficial de Freud, por J. Strachey, seu tradutor inglês, e pelos editores da correspondência de Freud e Ferenczi, e que diz respeito à indecisão persistente do mestre­fundador em redigir "uma metodologia geral da psicanálise" (Allgemeine Methodik der Psychoanalyse), presumivelmente, segundo Strachey, um trabalho sistemático sobre técnica. Mencionado desde 1908, o projeto original seria de vez abortado em algum momento antes de fevereiro de 1911, quando afinal publica o primeiro ("O manejo da interpretação do sonho em psicanálise") dos seis curtos ditos "artigos sobre a técnica" ("Sobre a dinâmica da transferência", o segundo da lista, é de 1912).

 

Pode­se mesmo afirmar com alguma segurança que Freud jamais despendeu tão longo tempo a escrever um texto, e hesitou tanto (salvo com o caso Dora, mas pela questão do sigilo) em sua publicação. Para Strachey, a relativa escassez de trabalhos [...] sobre técnica, bem como suas hesitações e demora em produzi­los, sugere que havia de sua parte um sentimento de relutância em publicar esse tipo de material". Por um lado, temia que seus pacientes viessem a conhecer os pormenores de sua técnica; por outro, era muito "cético quanto ao valor, para principiantes, do que se poderia descrever como "Manuais para jovens analistas" 9.

 

Em função dessas circunstâncias, a prioridade na abordagem das questões de método - quase três anos antes de o fundador da psicanálise autorizar­se a fazê­lo - caberia  ao  ainda neófito Ferenczi, com o seu "Transferência e introjeção". Publicado em fins de 1909, o artigo guardava, segundo o próprio Freud, estreita relação com o Methodik (a maneira abreviada pela qual em sua literatura epistolar ele se refere ao artigo inacabado). Deve­se ainda notar a novidade de aparecer em título o termo transferência.

 

Freud e seu "Método geral da psicanálise"

Anuncia Freud em 1910, em "As chances futuras da terapia psicanalítica":

 

Estamos agora perto de reconhecer que a técnica analítica deve necessariamente sofrer algumas modificações segundo a forma de doença e segundo as pulsões que predominam no paciente. É verdade que partimos da terapia da histeria de conversão para a histeria de angústia (as fobias), é preciso mudar um pouco nosso procedimento10.

 

Em publicações, continuava valendo o que ele escreveu em Dora cinco anos antes: "Com exceção dos sonhos, e salvo em raros lugares, a técnica do trabalho analítico [...] não foi revelada"11. Havia o relato "muito completo" do procedimento psicanalítico nos Estudos sobre a histeria:"[...] desenvolvi­ do com base nas descobertas de Breuer" e descrito como a técnica de "pressão", "incluía consideráveis elementos de sugestão, embora estivesse avançando bem rápido no sentido daquele que cedo ele deveria chamar de método ‘psicanalítico'"12. Registra­se ainda, sobre a técnica, "duas descrições, muito superficiais", em "O método psicanalítico", de 1904, e em "Da psicoterapia", de 1905; e "Trata­ mento psíquico: tratamento anímico", cuja particularidade é ter sido escrito em 1890, e não 1905, como se pensou no início.

 

Assim é que em 29 de novembro de 1908, três dias depois do anúncio da Methodik e "agradavelmente surpreso", Ferenczi afirma a "imensa necessidade" desse trabalho, pois "nos poupará muito em dificuldade e decepção" (p. 30). O curioso é que Freud escrevera algo semelhante a Abraham, mas no começo daquele ano (19 de janeiro): "Ainda a propósito de técnica [...], esta foi a conquista mais dura e é mesmo por esta razão que gostaria de poupar meus sucessores de uma parte do tormento e do preço da lição" (p. 31). Talvez já pensasse neste momento, ou mesmo antes, em sua Methodik. Como se conhecesse a passagem acima, Ferenczi dá­se conta de"[...] haver algo de doloroso em oferecer sem mais nem menos, aos mais jovens, conhecimentos ad­ queridos à custa de tantas dificuldades e sacrifícios" (p. 30). Em seguida também anuncia uma novidade: "Antes de ir a Viena, espero dar conta de um pequeno trabalho que toca igualmente o aspecto técnico das análises e para o qual já reuni os materiais...". Sua vontade de não chegar de mãos vazias na certa o "[obrigaria] a trabalhar mais e de modo mais assíduo" (p. 31).

 

Na resposta de 11 de dezembro de 1908, além de estimular Ferenczi a trazer todos os seus projetos, Freud adverte que sua Methodik talvez não fosse exatamente o que dele esperava o discípulo, propondo­lhe em troca, quando de sua visita a Viena, a leitura das 34 páginas já escritas - de um total estimado em 40 a 50 - na expectativa de uma avaliação. Apressado em publicar os próprios textos e fiel a sua promessa, passado o Natal Ferenczi leva a Freud o manuscrito de "Transferência e introjeção", texto composto de dois capítulos. A Jung, já em 30 de dezembro, o mestre menciona o evento:

 

Ferenczi trouxe­me um ótimo trabalho sobre a transferência, destinado ao segundo meio­tomo [do Jahrbuch], mas que em seu interesse gostaria de publicar mais cedo, por ser muito próximo da seção correspondente à minha "metodologia geral da psicanálise". Se ele não encontrar acolhimento fora - já fui recusado [por Marcuse, o editor da revista Sexualproblem] uma vez - nos será necessário passar­lhe este trabalho (p. 264).

 

Mas dois dias depois, ao próprio Ferenczi, Freud refere­se a dois possíveis editores (Mar­ cuse e Bresler), antes de lhe propor o segundo meio­tomo do Jahrbuch, "ao lado de meu grande artigo" sobre a técnica - se o psicanalista húngaro renunciasse "à prioridade merecida" (p. 37). Como na época as cartas entre Budapeste, Viena, Zurique e Berlim não tomavam mais de 24 horas para chegar ao destino13, já no dia seguinte Ferenczi responde sem qualquer reticência:

 

Antes de tudo, muito obrigado por suas numerosas provas de benevolência da qual sou mais uma vez beneficiado. Se não soubesse que ser reconhecido é também estar em dívida, o que separa as pessoas mais do que as reúne, me deixaria levar sem retenção por este sentimento. Apenas tomo o que o senhor me oferece como um presente de minha boa sorte, e eu penso em suas palavras de Berchtesgaden: "O homem também deve saber aceitar presentes" (p. 38).

 

Lamenta o fato de Freud ter passado por tantas dificuldades em prol de seu artigo, quando de sua parte tendia a evitar uma comparação direta entre os dois trabalhos: "Se a existência desse pequeno artigo se justifica por si, eu sei muito bem que não será este o caso depois do aparecimento do seu" (p. 38).

 

Logo, via Jung, ele quer tentar o Journal für Psychologie und Neurologie, ou qualquer outra revista. Atento, adverte: "De maneira toda particular, evitei usar o que aprendi em seu Methodik" (p. 38). Trata­se do jovem Ferenczi, que não havia publicado então mais do que quatro artigos psicanalíticos, e cuja clínica - disso ele se dá conta "sem se deprimir", pois sabe que ela virá com o tempo - acaba de perder três de um total de cinco analisandos.

 

A prioridade de "Transferência e introjeção"

De fato, Jung se pôs em contato com K. Brodmann, o redator­chefe do Journal für Psychologie und Neurologie, embora seja Freud quem reporta o fato a Ferenczi, acrescentando que Brodmann "merece todos os nossos esforços". Esclarece ser a questão da prioridade, muito complicada e confusa, que o impede de favorecer a apresentação das ideias do discípulo húngaro na "Sociedade da Quarta­feira à Noite"; e apenas no seu interesse estaria colocando dificuldades (passageiras, aliás) em publicar seu artigo no Jahrbuch. Mais a frente: "Para a conferência da Associação médica, eu não gostaria de o aconselhar mais do que já considerou por si próprio. É certo que ainda devemos nos repetir várias vezes" (p. 40). Em seguida, malchance oblige, e também a propósito dos prazos: "Deixe de lado o pessimismo terapêutico que nos últimos tempos o habitava, logo vai passar" (p. 40).

 

Na sequência da carta e à guisa de melhor esclarecer sua posição, sem dúvida delicada, Freud comete um lapsus calami:

 

Não tenho por você (ou por outros) sentimentos de benfeitor e, portanto, (não) atribuo à minha maneira de agir os temores, por outro lado justificados, de que fala. E levando em conta minha idade acho que devo deixar livre o lugar para outros que vêm depois mim; em tudo, por­ tanto, eu ajo apenas pela causa, que no fundo é mais uma vez a minha - e isso quer dizer proceder de maneira absolutamente egoísta. Entre meus sucessores e continuado­ res, deve ser­lhe assegurado um lugar eminente (p. 40).

 

Em que pese o cortejamento do mestre, Ferenczi, já atento psicanalista - "como fiel discípulo de seu ensino, não posso assim considerar como destituído de significação um erro de escrita, assim como também significa alguma coisa o esquecimento total de minha parte desses te­ mores" (p. 42) - não deixa escapar o lapso: "De­ pois de muito procurar, não tenho lembrança de lhe ter externado qualquer temor. Suponho que a frase esteja estropiada de alguma maneira, tal­ vez lhe falte um ‘não' ou outra negação" (p. 42), escreve em carta de 11 janeiro. Ora, com a psicanálise sabemos que um lapso jamais é destituído de importância e interesse, e neste caso preciso ele ocorre na carta em que Freud repele votos de reconhecimento, de agradecimento, de dívida... a separar os homens em vez de os reunir. A "negação", omitida por Freud e denunciada por Ferenczi, não seria mero deslize gramatical. Vejamos a sucessão dos acontecimentos.

 

A resposta de Freud se limita num primeiro momento a acusar um "terremoto interior" - imagem pertinente, se levamos em conta que na carta do primeiro dia de 1909, pesaroso, ele faz referência ao terremoto do último 28 de dezembro, que destruíra quase por completo a cida­ de italiana de Messina. Tivera ainda uma forte enxaqueca no dia anterior à  carta, que  como de hábito em situações similares o fazia contradizer­se. Estava certo, porém, de não haver qualquer "significação mais deplorável" em sua manifestação. Ora, supõe­se que o fundador da psicanálise se analise sempre, logo, o assunto deveria ainda se prolongar.

 

Em carta não datada - os editores (p. 45,n. A) informam que seu conteúdo determinou a colocação nesta ordem, confirmada também pelo papel de carta - Ferenczi retoma mais uma vez o assunto com visível constrangimento: "La­ mento ter de falar sobre meu trabalho, pois, não sendo possível tomar meu opúsculo como [...] destituído de valor - sobretudo depois de sua elogiosa apreciação - preferia ver este dossiê ar­ quivado e abandoná­lo a seu destino" (p. 43­4). É que sem explicação, afirmando não poder publicá­lo, Brodmann havia retornado o manuscrito: foram 24 horas em depressão, confessa Ferenczi, antes de enfim concluir tratar­se da "política partidária" que entrava "a livre expressão das opiniões" em publicação científica.

 

Ora, a carta de Freud de 18 de janeiro, cruzada com a precedente, e que se inicia com o incomum "prepare­se para rir de mim", fala primeiro da satisfação de ter em mãos os 14 primeiros cadernos do Jahrbuch, a seu ver, "qualquer coisa de magnífico" - trabalho que ele credita a Jung como redator­chefe. Mas um arrependi­ mento lhe pesa no coração: o fato de Ferenczi "não [figurar] neste volume, que, com tanta repercussão e todo ele em nossa honra, não se renovará tão cedo. Eu me disse que foi por minha culpa..." (p. 45). Explica­se:

 

[...] por um cuidado de discrição inoportuna ou sabe Deus por quê, eu havia retirado do segundo meio­tomo o seu belo trabalho sobre a transferência. Pensei que você podia escrever com facilidade um outro artigo


para este segundo meio­tomo, mas então me fizeram ver que lhe seria quase impossível produzir em um ano algo de tal importância (p. 45­6).

 

Sem estar ainda a par da resposta (negativa) do editor vienense - e antes de esclarecer seu ato falho, como veremos na sequência deste artigo - propõe com hombridade, além de movido por um claro desejo ainda não de todo consciente de reparar: "Sinto­me na obrigação de lhe pedir para considerar como terminada minha antiga oposição, e avaliar mais uma vez se não prefere retirar seu artigo do jornal de Brodmann para destiná­lo ao Jahrbuch". Sublinha: "Isso me pareceria agora muito mais justificável" (p. 46), antes de enfim concluir: "Com Jung, jogue sobre mim todo o aspecto desagradável dessa inconsequência; com Br.[odmann], não há por que dar provas de consideração, invoque não importa qual razão. Bem, ria de mim, mas agora faça o que lhe aconselho" (p. 46).

 

Dois dias depois, em vez de rir do mestre, Ferenczi relembra o dito de Lichtenberg, naturalista e escritor alemão conhecido pelos aforismos e máximas: "Vale sempre mais que um cargo seja inferior às capacidades", para se referir à dúvida que sempre o invade: "com o passar do tempo, estaria eu à altura de justificar a confiança que deposita em minhas atividades?" (p. 47). Ainda se reprova pela frequência com que Freud desperdiça um tempo precioso com seus "ensaios literários", e emenda sem pestanejar: "Veio bem a propósito o seu lisonjeiro convite de publicar meu artigo no primeiro volume [do Jahr- buch], ele chegou quase ao mesmo tempo que a recusa de Brodmann. Seria por acaso?" Aceita todos os conselhos: "Enviei logo o manuscrito  a Jung, dizendo­lhe da alegria de me apresentar em companhia tão agradável, entre pessoas que partilham as mesmas convicções e as mesmas opiniões" (p. 48).

 

Poderia passar por uma fina ironia. Sem nenhuma queixa, encerra com chave de ouro um episódio prenhe de significados à luz da história, e também revelador  da  política  interna e externa do movimento psicanalitico em seus primórdios (tal como podemos ler, com mais frequência e sutilezas, nas minutas das reuniões das quartas­feiras dos primeiros psicanalistas). Para o próprio Ferenczi, o episódio significou sua autorização profissional, em particular, junto ao "bando vienense"14.

 

Freud, o primeiro a receber uma das cartas cruzadas acima mencionadas, escreve­lhe também em 20 de janeiro de 1909 (um único parágrafo, deve­se notar): "Viva Brodmann! É a melhor solução. Uma parte dessa força, etc." -  a frase resumida refere­se às palavras de Mefistófeles, no Fausto de Goethe: "Uma parte dessa força que ora quer o mal e ora faz o bem" (p. 46). Freud recorda: "Console­se, no passado ele aplicou-me o mesmo golpe, com a análise de Dora", segundo Jones, com o argumento de violar o segredo médico15; e insiste mais uma vez - "Agora escreva de imediato a Jung, conte­lhe os meandros de minhas hesitações e arranje as coisas por lá" (p. 46) - sem ainda saber que a demanda já se cumprira.

 

De sua parte, gentil e preocupado com a questão da prioridade, Ferenczi finaliza a carta de mesma data: "Peço­lhe notar que utilizei [...], em paráfrase, suas palavras sobre a transferência (‘Qualquer que seja a maneira pela qual um psiconeurótico é tratado, sempre o tratamos pela transferência'"). Nada mais tem a esclarecer no episódio.

 

Ao contrário de Freud, que escreve em 2 de fevereiro:

 

Espero que seu artigo esteja agora em lugar seguro, sob o abrigo do Jahrbuch. Há três dias meu comportamento neste assunto de repente tornou­se compreensível de maneira bem racional, e os enganosos floreios afetivos se desprenderam. Compreendi - de repente, parece - que eu não podia terminar minha obra sobre a técnica durante os meses de trabalho, e que devia empurrá­lo até julho­agosto [período de férias de verão europeu]. Logo, ele não pode aparecer senão no segundo tomo do Jahrbuch: no primeiro, há agora lugar para seu artigo. É plausível que essa compreensão me tenha vindo já há muito tempo, apenas dela não retirara as consequências antes de formular a hipótese (p. 47­8).

 

Ferenczi aceita sem dificuldade essas justificativas finais: "Os motivos de sua mudança de opinião nesse assunto estão plenamente esclarecidos, e eu posso esperar o aparecimento do segundo tomo com toda tranquilidade na alma". Sente­se aliviado do antigo receio de ver seu artigo comparado ao do mestre, fossem  eles publicados juntos, e de não ter que adiar ainda mais, como autor­psicanalista, a "severa crítica da parte da medicina oficial" (p. 49) - para a qual se diz já preparado. Quase quatro anos depois desses acontecimentos, em 26 de dezembro de 1912, Ferenczi escreveria o que segue a Freud:


Sem dúvida, o senhor é o único que se pode permitir passar por analista; [...] não lhe é uma vantagem, isto é, para sua análise, mas uma necessidade: acontece que o senhor não dispõe de um analista que lhe seja seu igual e, menos ainda, superior, pois pratica a aná­ lise há quinze anos mais que todos os outros, acumulando uma experiência que ainda nos falta. Apesar de todos os defeitos da autoanálise (com certeza mais longa e mais difícil que a análise por um outro), devemos esperar do senhor a capacidade de dominar seus sinto­ mas. Foi o senhor quem em grande parte encontrou as verdades que nossa prática confirma todos os dias - e isso em sua autoanálise [e que] teve a força de ultrapassar em si mesmo, sem guia (pela primeira vez na história da humanidade), as resistências que no geral o gênero humano opõe aos resultados analíticos... (p. 470­1).

 

Certo é que, depois de publicado o artigo de Ferenczi, mais de dois longos anos iriam ainda se passar antes que, sempre relutante, Freud assumisse o já antigo projeto de dissertar sobre seu método - o que de resto, como veremos mais adiante, ao menos no começo da nova fase, ele consideraria um "trabalho de encomenda". Nesse contexto, seu ato falho envolvendo o artigo de Ferenczi talvez, no mínimo, manifestasse alguma censura a essa iniciativa prematura. Ressalte­se ainda uma vez que a prioridade de escrever sobre a transferência coube assim ao mais jovem dos psicanalistas, e que a questão da prioridade, como se sabe, sempre foi muito sensível e cara a Freud.

 

A publicação de "Transferência e introjeção"

Em 3 de junho de 1909, Freud sela enfim sua decisão, fazendo­a chegar por carta a Jung: "Voluntariamente deixo para o próximo ano o trabalho sobre os métodos, primeiro, por querer que Ferenczi apareça antes, segundo, porque ainda não posso prometer terminá­lo durante as quatro semanas de férias em julho. Os senhores leitores estão longe de nos recapturar" (p.305). Apenas uma semana depois, Ferenczi envia a versão final de seu artigo a Jung, "depois de tê­lo revisto de maneira sumária e introduzido sua teoria masoquista da sugestão" (p. 73). Quatro meses mais tarde, quando faz a correção das provas do artigo, considera superficial a primeira parte, e a segunda, sobre a hipnose, um pouco mais elaborada. Pede ao mestre que publique logo "seu trabalho sobre a técnica, para que sejam eliminadas as imprecisões que ainda não pude evitar" (p. 86). Enfim, apenas em novembro "Transferência e introjeção" seria lido pelos leitores - portanto, um ano depois de seu autor tê­lo começado a escrever (p. 37).

 

Não há uma palavra de Ferenczi sobre sua tão aguardada publicação - salvo, de forma muito indireta, em 20 de novembro, ao retomar sua noção de "hipnose paterna" para conjeturar sobre o método utilizado sobre uma vidente, certa Sra. Jelinek (cujo marido era o hipnotizador) como técnica auxiliar em sessões telepáticas. De maneira curiosa, e talvez não por acaso, esse foi o mês das cartas recheadas de relatos sobre este tema ("transferência de pensamentos"), que muito mobilizou Freud, Ferenczi e Jung nesse período.

 

O próprio Freud foi o primeiro, em três de dezembro, a colocar o assunto do artigo em dia: "O Jahrbuch me esperava em Viena, é uma suntuosa realização. Espero que os próximos volumes não sejam dominados de maneira tão visível pelo meu nome. Reservo seu artigo para o do­ mingo..." (p. 117). De maneira surpreendente, na carta seguinte (7 de dezembro), Ferenczi mais uma vez não faz nenhum comentário sobre o aparecimento do Jahrbuch, nem sobre seu próprio artigo. Passado o domingo, mais uma vez Freud retoma o assunto:

 

Seu artigo no Jahrbuch agora está sendo lido por todo mundo. Em vez de lhe dar meu próprio julga­ mento, transmito­lhe o de um terceiro competente. Ele achou excelente toda a primeira parte, e menos original a segunda, que trata da sugestão, pois você teria se limitado a desenvolver minha observação que se encontra na Teoria da Sexualidade (p. 120).

 

De certa forma, uma opinião divergente daquela, como vimos, do próprio Ferenczi. A sublinhar o fato de ser a primeira parte a que apresenta um tema mais técnico, logo, alguma prioridade deve ser mantida. Mas na segunda parte havia quando nada a noção de hipnose paterna: em 1910, em nota de rodapé nos Três ensaios..., Freud daria ao discípulo os devidos créditos pela relação entre sugestionabilidade e "complexo paterno". Havia ainda uma maneira original de apresentar o conceito de introjeção [Introjektion], de resto, introduzido pelo próprio Ferenczi. O fundador da psicanálise finaliza seu comentário avaliando agora em nome próprio: "Não duvido do pleno sucesso do conjunto, contudo, parece­me incerto que o termo Introjeção possa ser mantido" (p. 120).

 

Manterá sim o termo, mas para designar o processo relacionado à identificação, pelo qual de modo fantasmático o sujeito faz passar de "fora" para "dentro" objetos e qualidades inerentes a esses objetos. Opõe com clareza introjeção à projeção [Projektion] - que diz respeito à localização no "outro, pessoa ou coisa, de qualidades, sentimentos, desejos, até mesmo ‘objetos', que ele desconhece ou menospreza em si"16 - o que Ferenczi não faz mais do que indicar, assinalando uma espécie de comportamento neurótico (em particular, entre os histéricos) de natureza projetiva. A sublinhar que seu texto antecede em quase quatro anos a análise do caso Schreber,   a partir do qual sabemos que a projeção, defesa de origem muito arcaica, é encontrada "em operação na paranoia, em particular, mas também nos modos de pensamento ‘normais' como a superstição"17.

 

Em seu artigo, Ferenczi utiliza o termo in­ trojeção no sentido mais amplo de uma "paixão pela transferência", referindo­se ao enorme interesse que os neuróticos manifestam pelas coisas do mundo exterior, tornando­as "objeto de fantasias conscientes ou inconscientes... [na] busca perpétua de objetos de identificação, de transferência; isso significa atrair tudo que ele pode para sua esfera de interesses, ele os ‘introjeta'"18. Tudo ao contrário do que faz, por um lado, o "de­ mente precoce" (termo de Kraepelin para "esquizofrênico", de Bleuler), que retira por completo seu interesse do mundo; e, por outro lado, o paranoico que, incapaz de fazer como o esquizofrênico, projeta no mundo exterior seus desejos tornados penosos, crendo reconhecer em ou­ trem todo o amor e todo o ódio que ele nega em si mesmo. Enfim, o interesse no mundo exterior do neurótico se  dispersa "livremente", visando a conservar suas fantasias conscientes e inconscientes. Em contrapartida, o interesse do paranoico, tingido de sentimentos de desconfiança e de perseguição, não consegue senão, no fim das contas, recolher­se sobre o eu. Como podemos ver, tais distinções, de grande importância descritiva, não comprometem nem se contrapõem à lógica e ao raciocínio psicanalíticos.

 

Apenas em 27 de dezembro, Ferenczi voltará por um breve momento ao seu trabalho: "Tive forte interesse por sua crítica de meu artigo sobre a introjeção; [Otto] Rank também me escreveu nesse sentido, ou seja, que a primeira parte [sobre a técnica] tem mais valor. De toda maneira, fico satisfeito que contenha algo de utilizável" (p. 125). Na clínica, sem dúvida.

 

Sobre o destino da Methodik

Sobre seu próprio texto, Freud comunica a Jung já em 2 de abril de 1910:"Em nenhum caso estou contando entregar ao Jahrbuch o trabalho sobre a metodologia geral; ficar em repouso só vai lhe fazer bem"(p. 21). Mas já no dia seguinte escreve a Ferenczi que, entre outras intenções de trabalho, conta "retomar o artigo sobre a técnica" (p. 166).

 

Desde sempre reconhecendo uma lacuna quanto aos detalhes da técnica, Freud não deixa de brindar seus alunos mais próximos com "conselhos privados". Por exemplo, a Jung, em 25 de janeiro de 1909: "Eu sei, ocorre com qual­ quer um, depois de ultrapassar os primeiros sucessos, sucede­lhe uma época amarga e ruim na psicanálise, durante a qual ele a maldiz, a ela e a seu fundador. Mas isso termina por se acalmar, chegando­se a um modus vivendi. Eis as realidades! C'est la guerre!", exclama em francês. E acrescenta sobre o sucesso da empreitada: "Tal­ vez o ensaio sobre a metodologia (que de fato não termino) ajudará no mais importante, mas é certo que não muito" (p. 277).

 

Freud jamais o terminaria, ao menos sob   a forma projetada no início, como desde sempre parecia anunciar sua recorrente hesitação. Quando conta a Ferenczi, em 26 de novembro de 1908, estar trabalhando num método  geral da psicanálise, duvida se naquele ritmo se­ ria ainda possível falar de trabalho: "Salvo aos domingos, não chego a escrever senão algumas linhas; estou na página 24" (p. 29). Já se queixara a Jung pouco antes, no dia 8 de novembro,


dos mesmos aborrecimentos: "Um tratado começado, Metodologia geral da psicanálise, cujo nome diz tudo, avança de maneira muito lenta; agora não posso escrever senão algumas páginas aos domingos" (p. 243­4). Ainda assim, pensava em propor sua publicação "no 2º fascículo dos pequenos escritos, que Deuticke está prestes a publicar, e onde deve reaparecer ‘Dora'". Mais uma vez a Jung, então redator­chefe do Jahrbuch, no dia 12 de novembro e já um pouco aflito: "O trabalho avança muito devagar; é que eu estou de 8­8 h escravizado. Você o aceitaria para o segundo meio-tomo [ já vimos que ele posterga­ ria mais uma vez para o segundo tomo, antes de finalmente desistir do projeto] se, frente à minha resistência interior à indiscrição, fracassar minha outra contribuição - sobre o homem da obsessão com os ratos?" Explica­se: "Não quero me dirigir às outras revistas com coisas tão específicas; não será, aliás, compreensível senão para o nosso público mais próximo, pois supõe o conhecimento dos Estudos e Deus sabe o que mais ainda" (p. 247). A Abraham, no mesmo dia 12: "Trabalho num Método [Methodik] geral da psicanálise, cujo lugar de publicação não está ainda fixado, e que em todo caso aparecerá - talvez de modo exclusivo - no segundo volume de meus escritos sobre a teoria das neuroses. Infelizmente tenho tão pouco tempo que o trabalho avança muito devagar" (p. 64). Enfim, mais uma vez a Abraham, em 26 de dezembro: "Em consequência da absorção de todas as minhas forças pelas análises, não consigo prosseguir meu trabalho: ‘Método geral da psicanálise', que, após semanas, parou na página 36" (p. 69). Não se trata de um mero exagero: eram 34 em 11 de dezembro, quando estimava, como vimos, que a obra não devesse ultrapassar 40­50 páginas 19.

 

A leitura das cartas permite verificar que, nos últimos meses do ano seguinte, apesar do sucesso da análise do Homem dos ratos ("O homem vai muito bem", escreve em 20 de novembro de 1909), e de sua clínica tout court, Freud demonstra pouco entusiasmo com seus pacientes. Por exemplo, em 10 de novembro de 1909, "bloqueado, no plano científico, pelas conferências americanas", confessa a Ferenczi com toda "honestidade psicanalítica" (p. 106)20: "A época está mais para morna, estou completamente tomado, e de maneira intencional reduzi meu trabalho; alguns [pacientes] são fastidiosos, e nenhum caso novo se apresenta..." (p. 106). Se­ ria um erro ver aqui apenas problemas de circunstância: ir aos Estados Unidos representa de fato um reconhecimento importante de sua disciplina; e, considerando que os conceitos psicanalíticos de base estão já descritos no essencial, as próprias conferências americanas têm o porte e o alcance de um balanço.

 

Contudo, à glória exterior (e do estrangeiro) opõe­se esse descontentamento íntimo que se manifesta primeiro na clínica. Por exemplo, também a Ferenczi, em 22 de outubro de 1909, pode dizer de seus pacientes que "eles são odiosos [mas de toda maneira lhe] fornecem a ocasião  de  novos  estudos  técnicos" (p.  93). Com Abraham, em 23 de novembro, mostra­se ainda menos tranquilizador: "Jamais tive tantos pacientes como nesses dois últimos meses, mas também nunca minha prática tinha sido tão aborrecida" (p. 88). Protegidas pela intimidade epistolar, tais confissões nos soam sinceras, mesmo brutais, pois vindas do homem que durante tantos anos exercitou como poucos o fizeram a escuta paciente dos mais diversos destinos humanos. Em 1920, Freud não hesita em confessar a Pfister: "Saiba, com efeito, que na vida eu sou terrivelmente intolerante com os loucos..." (p. 122).

 

Embora "terapeuta contra a vontade"21, como escrevera ao amigo W. Fliess, em 1896, em meio às tormentas teóricas que o levariam à fundação do campo psicanalítico, Freud se daria conta, trinta anos depois, que os anos anteriores a 1910 constituíram para a psicanálise "o mais importante e o mais interessante período de sua história"22. A afirmativa  ganha  relevância  se  confrontada  a outra, dirigida a Ferenczi mas datada daquele ano­limite: "Com a Dieta [assembleia política] de Nuremberg termina a infância de nosso movimento" (p. 166). Nuremberg foi a cidade­sede do primeiro congresso mundial de psicanálise - "extraordinariamente bem­sucedido", diz ele, três dias depois do evento - e marco­fundador da Associação Internacional de Psicanálise (ipa, na sigla em inglês). Em contrapartida, finaliza, "... minha conferência não teve sucesso, não sei por quê. No entanto, ela continha muitas coisas [...] dignas de interesse" (p. 165).


Na conferência, Freud apresentara um tema prático - aliás, este era mesmo o objetivo do congresso - visando despertar um interesse mais clínico que científico, pois supunha que a maior parte dos auditores "já [teria passado] pelas duas fases conhecidas dos debutantes, a de encanta­ mento quanto ao crescimento insuspeitado de nossa ação terapêutica, e a de depressão frente à amplitude dos obstáculos impostos aos nossos esforços"; parece­lhe "claro que todo  progresso de nosso saber significa um ganho para nossa terapia". Sobre o tratamento da neurose obsessiva, e como dissera a Abraham dois anos antes por correspondência, afirma a necessidade de modificações da técnica, que, no entanto, "não es­ tão ainda suficientemente maduras para que as julguemos"23. Nada, a meu ver, poderia justificar melhor a resistência em finalizar a Methodik.

 

A Jung confessa, em 5 de abril de 1910, sua "impressão de [naquele] momento estar para­ do diante de uma barreira e esperando um novo impulso" (p. 76). Mas é a Abraham que em 28 de agosto daquele ano expõe as nuances desses momentos decisivos:

 

Nossa causa, acredito, porta­se muito bem no conjunto, e agora não está mais só entre meus quatro olhos24. É seguro que a partir de agora os progressos se­ rão mais difíceis; a superfície foi desnatada, os últimos e decisivos resultados não são talvez visíveis com clareza, e é necessário nos defender não apenas dos nossos inimigos, mas também dos nossos colaboradores muito afoitos. Mas talvez seja eu o único a ter a impressão da necessidade de uma desaceleração, enquanto os mais jo­ vens farão as coisas avançar com energia (p. 97).

 

É mesmo nesse tempo em que ultrapassando os muros de Viena se faz reconhecida por um público mais vasto que, como referido, a psicanálise apresenta dificuldades clínicas, teóricas e político­institucionais não negligenciáveis. Freud escreve na carta de 23 novembro de 1910: "Estou lhe dizendo, era com frequência melhor no tempo em que eu estava só" (p. 246). Não é mais o único a praticar a análise: pelo contrário, os candidatos a analista começam a se tornar numerosos; as defecções de Adler e Stekel, e logo depois de Jung, estão mesmo em gestação; as regras de formação de analistas (dos anos 1920) estão longe até mesmo de se esboçar; e, como vimos, ele próprio ainda hesita em tornar públicos os detalhes de sua técnica. Não faz mais do que tocá­las em sua conferência de Nuremberg.

 

Freud lembra que o tratamento analítico, duro e cansativo no início - "era preciso que o próprio paciente dissesse tudo, e a atividade do médico consistia em pressioná­lo sem parar"25 -, resume­se agora, primeiro, em liberar para o analisando a representação de expectativa consciente [bewußte Erwartungsvorstellung] mais próxima da representação recalcada, que se abre assim à possibilidade de se manifestar. Esse procedimento do tratamento analítico (mais uma ajuda intelectual, visando ao levantamento das resistências entre o consciente e o inconsciente) não é, entre­ tanto, o único em operação. O outro, "muito mais enérgico", escreve de passagem, é a transferência. Ora, como na mesma  época afirma em privado a Pfister (5 de junho de 1910), a transferência, tema do artigo pioneiro de Ferenczi, permanece a cruz da psicanálise (p. 75). Em público, ele anuncia no Congresso de Nuremberg: "Vou me es­ forçar para em breve tratar de todas essas coisas importantes à compreensão do tratamento em uma ‘Metodologia geral da Psicanálise'"26. Na verdade, esse esforço datava então de ao menos dois


anos: a nota de rodapé de Strachey confirma tratar­se de"um trabalho sistemático sobre a técnica psicanalítica, [planejado] e pelo menos em parte [escrito], por Freud, em 1908 e 1909, mas nunca [publicado]"27.

 

Tudo indica que apesar de anunciada em público a existência da Methodik (em 1910, re­ pito, no Congresso de Nuremberg), nada lhe tenha acrescentado depois dessa data, e mesmo antes, conforme os extratos de cartas aqui cita­ dos. Enfim, podemos ainda ler que em 29 de janeiro de 1911, três anos depois de anunciar (a Jung, com vimos, em primeiro lugar) sua intenção de escrever a Methodik, Freud continua a  se justificar perante Pfister, que de tempos em tempos lhe pede informações sobre o trabalho:

 

Estou profundamente endividado a seu respeito e lhe devo várias cartas [...]. Pode ser que suas repetidas questões a respeito de minha metodologia tenham tido alguma responsabilidade neste atraso; é visível que não gosto muito de ouvir falar disso. Terminei uma parte há um ano e meio, mas o todo não está maduro e o autor está muito cansado. Não posso assim prometer nada antes de muito tempo. Até lá, deixemos as técnicas crescerem em estado selvagem (p. 84).

 

Um mês mais tarde ele retoma o assunto:

 

"Mortifica­me muitíssimo que permaneça com o objetivo preciso de esperar minha metodologia. Sinto­ me tão longe dela que pressinto seu retorno não antes de longos anos. Trate você mesmo de se ajudar" (p. 84).

 

A herança da Methodik

Ora, de maneira inesperada, no último dia de 1911, Freud alerta Jung sobre a próxima chegada de "um primeiro trecho da técnica" - "O manejo da interpretação dos sonhos" -, "de uma indigência decepcionante" (p. 237). Demora ainda menos - e para isso talvez tenham contribuído as defecções de Adler e Stekel - com o segundo ("A dinâmica da transferência"). Continua descontente: "[Ele] não será melhor, será apenas menos claro. Nunca dá certo quando escrevo de encomenda, sem necessidade interior, como foi o caso desses ensaios" (p. 237).

 

A encomenda - uma exigência pessoal, é certo, mas desta vez sobretudo da "causa" - se tornará uma realidade, pois a seguir não cessarão as notícias a respeito. É assim que, seis meses mais tarde, anuncia a Ferenczi em 6 de junho de 1912: "Pesquisei ontem suas proposi­ções para a segunda sequência dos ‘conselhos'. É preciso que eu inaugure o novo ano [universitário] com um ensaio desse gênero" (p. 400). Nem chegaria a tanto: o primeiro da série, "Conselhos aos médicos sobre o tratamento analítico", seria publicado ainda naquele mês de junho. Enfim a Abraham, em 29 de julho:

 

Estou contente de haver terminado, nos últimos dias de calma, dois artigos técnicos, um sobre o amor de transferência e o outro intitulado: "Rememoração, repetição e perlaboração". Creio que minha maneira de apresentar as coisas se transformou; desde o ajuste de contas [ Jung], tornei­me mais sincero, mais arrojado e mais direto (p. 191).

 

Vemos assim que em questão de meses (e às vezes dias entre um e outro) Freud realiza quatro comunicações curtas, pontuais e ao mesmo tempo sortidas sobre o tema - ele que, diria uma historiadora no futuro, "deixou muito poucos escritos técnicos, [e] ficava mais à vontade em utilizar metáforas do que longas e complexas explicações para descrever o processo do trata­ mento psicanalítico"28. Mas esses textos, por vá­ rios motivos tão importantes, respondem antes de tudo às dificuldades que se apresentam aos analistas pioneiros e de primeira geração. Coincidem com o período em que Freud aguarda, como vimos, um novo impulso teórico - que de fato virá, ao longo dos anos seguintes e em sua plena maturidade intelectual, na forma dos ditos escritos metapsicólogicos. A reviravolta teórica dos anos 1920 - segunda teoria das pulsões e segunda tópica - inauguraria a nova década.

 

Sobre a própria Methodik, nada sabemos de certo sobre seu destino. Teriam sido destruídas as quase quarenta páginas escritas, em meio às faxinas periódicas que Freud fazia em seus escritos, depois de repartido seu conteúdo entre as curtas comunicações sobre a técnica aqui citadas?29 Ou elas se conservam ainda hoje nos Freud Archives (doados por Anna Freud à Biblioteca do Congresso americano)? De concreto, conforme já referido, sabe­se que uma das seções da Methodik era muito próxima do "ótimo trabalho sobre a transferência", de Ferenczi (p. 264). A transferência fora reconhecida desde 1895, nos Estudos sobre a histeria - e lá como o pior dos "obstácu­ los", próprios para incomodar as relações do do­ ente com seu médico, e que deveria ser sempre vencida, depois "incluída na natureza das preocupações terapêuticas". Enfim, inerente ao procedi­ mento analítico e, como tal, encontrada "em toda análise mais séria"30, mais do que nunca ela exigia ser levada em conta - ainda mais à luz das mudanças teóricas que se avizinhavam.

 

Sob os efeitos da transferência, as histéricas podiam imaginar­se grávidas, como Anna O., e desejar serem beijadas por Freud, ou até mesmo abandonar a análise, como Dora... O Homem dos ratos manifesta transferências de outra maneira, imaginando por exemplo - em uma sessão "repleta da transferência mais assustadora, e na qual experimenta uma enorme dificuldade em contar"31 - que uma "grande infelicidade" te­ ria ocorrido à família Freud no passado.

 

[...] um de meus irmãos, um garçom, [teria cometido] assassinato em Budapeste e [sido] executado. Começo com uma risada: de onde ele tirou isso? [...] todo seu afeto desaba. Fora seu cunhado, conhecido de meu irmão, que lhe contou para provar que a educação não quer dizer nada e a predisposição, tudo. [...] Sei que se tratava de Leopold Freud, o assassino do trem, quando eu estava no terceiro ou quarto ano da escola. Asseguro­lhe que não temos parentes em Budapeste. Aliviado, confessa que por esta ra­ zão desde o início estava vindo com certa desconfiança32.

 

Desconfiança, culpabilidade, pensamentos de morte, crueldade, ódio, cujo alvo aparente­ mente é o analista. A Ferenczi, quatro anos de­ pois, em 23 de dezembro de 1912, comenta de maneira divertida ("de todos os lados os irmãos caem sobre mim") que se confirma na prática sua construção da "refeição totêmica" - antes de contar que um de seus pacientes nada falou durante uma semana por não poder assumir    a crueldade de lembrar­lhe que um seu irmão ou tio tinha sido executado por roubo e assassinato (os editores da correpondência de Freud e Ferenczi confirmam em nota não se tratar do Homem dos ratos). O pai, como elemento simbólico - o pai morto, como Lacan sublinha em sua obra - tão determinante para o Homem dos ratos, será desenvolvido em Totem e tabu, de 1912­1913, depois de escrever "A dinâmica da transferência", em que introduz a modalidade negativa da transferência.

 

Em 13 de fevereiro de 1910, conta a Ferenczi sobre o Homem dos lobos:

 

Um jovem russo, rico, que eu atendo por causa de uma paixão amorosa compulsiva, confessou­me depois da primeira sessão as seguintes transferências: judeu bandido, ele gostaria de me pegar por trás e me cagar na testa. Com a idade de seis anos, o primeiro sintoma manifesto consistia em injúrias blasfematórias contra Deus: porco, cachorro, etc. Sentia­se incomodado quando via na rua três montes de merda por causa da S.[anta] Trindade, e ansiosamente buscava um quarto [monte] para destruir a evocação (p. 149).

 

Em outra oportunidade, também a Ferenczi e a respeito da análise do jovem russo de Odessa, Freud contrapõe: "Estou mais eficaz do que nunca" (p. 144).

 

Não há por que duvidar (e um ano depois, como vimos, sairiam em sucessão os artigos técnicos). Mas é certo que a devida dimensão clínico­epistemológica da transferência - identificada (no plural) em Os estudos sobre histeria e reconhecida em Dora (um fracasso terapêutico,


mas ainda assim, ou pour cause, uma preciosidade clínica) como parte integrante da análise - não poderia se tornar compreensível em todo seu alcance e abrangência senão com a revira­ volta dos anos 1920. Em particular, e depois de estabelecer sua relação com a resistência e a repetição, nos artigos sobre técnica, e sua diferença com a sugestão, em Psicologia das massas e análise do eu, sua integração plena à rede conceitual da psicanálise se fará com a noção de pulsão de morte (segunda teoria da pulsões).

 

Na clínica analítica, a transferência negativa, que se traduz na ambivalência do analisando em relação ao analista, funciona como limite à sugestão, e sua manifestação - emblemática, particular e profícua, se sustentada de maneira devida pelo analista - anuncia o começo do fim da análise. Era talvez, igualmente, o começo da maturidade de sua disciplina, pela qual Freud tantas vezes ansiou antes de se sentir capaz de apresentar particularidades de seu método para o grande público.


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