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ÍNDICE TEMÁTICO 
35
Revisitando o número 1
ano XVIII - 2° semestre 2005
177 páginas
capa: Sérgio Sister
  
 

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Resumo
A partir do texto de 1988 e de dois artigos posteriores, a autora observa em seu trajeto um caminhar em direção a formas expressivas para além do discurso, no qual assume proeminência cada vez maior a noção de intensidade afetiva.


Autor(es)
Miriam Chnaiderman Chnaiderman
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, doutora em artes, documentarista.


Notas

1. M. Chnaiderman, O hiato convexo: literatura e psicanálise, São Paulo, Brasiliense, 1989.

2. Idem, Ensaios de psicanálise e semiótica, São Paulo, Escuta, 1989.

3. Idem, Percurso, ano VI, nº 11.

4. Idem, Percurso, ano XII, nº 25.

5. M. Chnaiderman “Narrativa e imagem: movimentos do desejo”, Percurso, ano 1, nº 1, 2º sem. 1988.

6. C. Katz, “Prova de vigor – ensaios comprovam a vitalidade da psicanálise brasileira”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, 26-8-89.

7. Op. cit.

8. J. Lacan, “Lituraterre”, in Littérature n.3, Paris, Larousse, out. 1971.

9. G. Deleuze, Logique de la sensation, Francis Bacon, Paris, ed. De la Différence.

10. J. Derrida, Gramatologia, São Paulo, Perspectiva, 1973.

11. M. Chnaiderman, “De um ao outro século: a psicanálise”, Revista da APPOA, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 18, junho, 2000.

12. M. Chnaiderman, in “Cintilações múltiplas,,,”, op.cit.

13. G. Deleuze, Logique de la sensation, Francis Bacon, Paris, ed. De la Différence.

14. C. Lispector, A hora da estrela, São Paulo, Ática, 1996.

15. M. Chnaiderman, “Passeando entre a literatura e a psicanálise”, in Suplemento Literário de Minas Gerais, nº 1.091, 19-12-1987.

16. C. Lispector, “Escrevendo”, in Mas já que se há de escrever, São Paulo, Ática, 1984.

17. J, Derrida, Enlouquecer o subjétil, São Paulo, Ateliê Editorial, Imprensa Oficial, Ed. Unesp, Fund., 1998.



Abstract
Under this poetic title, the author examines her work in the past twenty years. She notices that the direction she has taken both in her practice and in her writings has led her to stress expressive forms beyond discourse, and to strive towards what she calls affective intensity. Her study of structuralism (Popper, Jakobson, Lacan) showed the limitations of this approach; her later work opens more room for meaning. Deleuze and Derrida were useful in this new direction, which blurs frontiers between the arts (music, drawing, poetry), and between them and the task of the psychoanalyst.

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 TEXTO

Caminhos de mim

Ways of me
Miriam Chnaiderman Chnaiderman


Introdução

O ensaio “Narrativa e imagem: movimentos do desejo”, publicado no primeiro número da revista Percurso, é um resumo cuidadoso – pois, conforme nota, foi minha fala na Association Freudienne em Paris – de minha dissertação de mestrado, posteriormente retrabalhada para o livro O hiato convexo: literatura e psicanálise [1]. Esse mesmo ensaio depois foi parte do meu livro Ensaios de psicanálise e semiótica [2]. Penso que, de fato, aí se iniciava um longo caminho de reflexão sobre as relações entre arte e psicanálise. Fui tomando outros rumos, todos eles bem passíveis de serem acompanhados em outros números de Percurso. Escolhi outros dois ensaios que considero marcos em meu pensamento, para apontar como fui me transformando. São eles: “O processo psicanalítico, a experiência mítica e mística na passagem do sagrado ao trágico” [3] e “Cintilações múltiplas: fendas para mundos possíveis” [4].

Sobre o ensaio “Narrativa e imagem: movimentos do desejo” [5]

Foi Chaim S. Katz quem me apontou, em resenha publicada no Jornal do Brasil [6] o quanto ainda me encontrava presa à noção de estrutura, embora todo o ensaio se pautasse em uma crítica a alguns conceitos lacanianos, como o de letra, linguagem e significante. Ainda considero atual e pertinente a discussão destes conceitos. Mas, hoje, posso dimensionar quanto é verdadeira a observação de Chaim Katz.

A segunda parte desse ensaio, onde, baseada no formalista russo V. Propp, busco uma lógica do conto de fadas para a psicanálise, estava inteiramente movida pela paixão pela filosofia da ciência, pela busca de uma álgebra que fundamentasse epistemologicamente a escuta do inconsciente. Hoje, não mais busco um universal que dê conta da minha clínica enquanto psicanalista.

Sobre o ensaio “O processo psicanalítico: a experiência mítica e mística...” [7]

Esse ensaio é fruto de uma fala realizada em congresso na Bahia em junho de 1993, colóquio “Psicanálise e religião – O império do sentido”, promovido pela Revue Littoral de Paris e Colégio de Psicanálise. Trata-se de uma indagação sobre as relações entre psicanálise e religião, que se detém na questão da mística, o que implica em um interrogar além do discursivo e lógico.

Assim inicio: “É a partir das mulheres e dos místicos – por exemplo, São João da Cruz – que Lacan vai pensar em um gozo que está mais além da palavra e que o leva a crer em Deus. Como esse gozo, segundo afirma, não existe e não significa nada, vai colocar-nos, conseqüentemente, na via da descoberta mística. Não existir, para Lacan, significa não poder ser nomeado”. É interessante observar que nesse ensaio, escrito seis anos depois, é um outro Lacan que passa a me interessar: o Lacan que quer pensar o que está além da fala. De fato, é bom lembrar, em “Lituraterra” [8], ele afirma que a psicanálise faz buraco (fait trou), irrompe na linguagem. Em minhas proposições faço-me então acompanhar por Jacques-Alain Miller, que “passou a reconhecer que a função da fala não esgota aquilo que revela do campo da linguagem” [9]. Observo, “o além da fala tem a ver com um ‘ser da significância’, operação de engendramento do significante”. Indago-me então: “ocorreria a significância ainda dentro do campo da linguagem?”.

Baseada em meu trabalho com Derrida – juntamente com Renato Janine eu traduzira a Gramatologia [10] – apontava o quanto a divisão entre significante e significado tem a ver com toda a metafísica ocidental, correspondendo à antiga divisão entre espírito e matéria. Cito também Kristeva, que frisou que tal divisão impede o estudo científico dos fenômenos ditos do espírito. É preciso distinguir práticas simbólicas e práticas semióticas. O simbólico teria como base a linguagem discursiva, e teria a ver com a Semiologia tal como foi exercida por Greimas. Barthes também afirmou ser a semiologia um dos ramos da lingüística. Assim, para a Semiologia, a matriz é a Lingüística. A Semiótica é a abertura para outros signos além daqueles trabalhados pela lingüística. É o filósofo Charles S. Peirce que vai sistematizar o estudo dos signos de maneira geral. Kristeva está interessada na corrente semiótica da simbolicidade. Ou seja, naquilo de não linguageiro que há em todo discurso. Minha questão era: “Seria esta corrente semiótica a abertura para o que é da ordem da sensualidade?”. Colocava-se então como inevitável a pergunta: “como ouvir as pulsões? Como não permanecer apenas no simbólico, e poder, no simbólico, aprender o que é da ordem da semiotização?”.

A diferença que Kristeva faz entre sentido e significação ainda hoje me norteia. O sentido é pura possibilidade expressiva – são as formas não-discursivas, não-representativas na consciência. Ao final do ensaio eu afirmava a profunda conexão da linguagem com expe- riências expressivas primárias.

Sobre o ensaio “Cintilações múltiplas: fendas para mundos possíveis”

Foi quando, depois de expor a crítica que Monique Schneider faz aos estruturalistas na reflexão que fazem sobre o conto (haveria uma luta entre Cronos e Logos), faço uma autocrítica que considero importante: “Há muito tempo me debruço sobre a relação existente entre a estética e a psicanálise, sempre movida pela busca da compreensão de minha clínica. Minha dissertação de mestrado que foi publicada no livro O hiato convexo: literatura e psicanálise é uma reflexão sobre esse tema. Aí, cheguei inclusive a propor, para pensar a clínica, uma lógica do conto maravilhoso, tal como foi pensada por Propp, autor que se enquadra perfeitamente na crítica feita por Monique Schneider. Propp, a partir do trabalho com o que denomina o ‘conto maravilhoso’, buscou um sistema universal de relações. Eu também buscava alguma lógica, ainda que fosse a lógica do conto maravilhoso, para pensar a clínica. Naquele momento, eu já dava bastante importância à noção de primeiridade, categoria estabelecida por Peirce, e que tem a ver (aqui é citação do ensaio, acho que tem que deixar como está lá....) com o icônico, com a qualidade de sensação, com o que não é da ordem do discursivo. Mas, nos parâmetros que me norteavam, eu não conseguia pensar além da significação, incluir na minha reflexão a noção de sentido. Ainda me são úteis as premissas que utilizava, como por exemplo a idéia de que no símbolo há sempre algo de não simbólico (primeiridade). Até então, pensava o não simbólico como sendo da ordem do imagético: na escuta analítica era preciso transformar a fala em imagem – eu usava como exemplo a poesia concreta. Hoje, penso este para além do símbolo mais como um real expressivo” [12].

Eu terminava o ensaio citando Isaías Melsohn, que afirma que não há por que buscar o sentido por trás da expressão, que é preciso apreendê-lo em sua própria expressão. Refere-se a uma escuta do sentido.

Propunha então que, em nossa clínica, para além da linearidade de uma fala buscamos os movimentos intencionais expressivos pré-sígnicos articulados e mobilizados.

Naquele momento, a descoberta do estudo de Deleuze sobre Bacon, o ensaio Peindre le cri [13], foi revelador. Refletindo sobre a arte, Deleuze afirma que a questão não é reproduzir ou inventar formas, e sim captar forças. Para ele não existe arte figurativa. A tarefa da pintura seria tornar visíveis forças que não o são. Na música, tornar sonoras forças que não o são. A força está em relação estreita com a sensação, pois é preciso que uma força se exerça sobre um corpo. Mas nunca a força é sentida. Quando analisa o grito como objeto da pintura de Bacon, afirma que a questão não é dar cores a um som. Na música, tampouco trata-se de tornar o grito harmonioso, mas, sim, de tornar visível o invisível. Nesse momento do ensaio eu recorro a A hora da estrela [14] e cito Clarice Lispector: “A minha vida a mais verdadeira, é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique.” Em texto meu, “Passeando entre a literatura e a psicanálise”, eu detinha- me em Clarice Lispector a fim de pensar o processo psicanalítico. O que dera origem a esse ensaio foi minha fala em 1978, no I Congresso de Psicoterapia Interpretativa. Em 1987 foi publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais e em 1989 fez parte da coletânea Ensaios de psicanálise e semiótica [15]. Vejo-me hoje mais próxima do que propunha em 1978 do que de minha dissertação de mestrado. Aliás, assim inicio um texto ainda inédito que escrevi para livro organizado por Edith Derdyck: “O que atrapalha ao escrever é ter que usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais eu teria entrado pelo caminho da palavra.” [16]

Hoje

Nesse mesmo texto inédito utilizo- me do conceito de subjétil, tal como Derrida o resgata de Artaud [17]. Artaud usou o termo subjétil sempre que escreveu sobre seus desenhos. Subjétil, onde o Eu (Je em francês) fica sutil, estabelece uma semelhança total entre o subjetivo e o projétil. Derrida nos explica que a palavra subjétil não é nova e vem do francês ou do italiano. Pertence ao jargão da pintura e designa o que está de certo modo deitado embaixo (sub-jectum) como substância, e que pode ser um sujeito ou um súcubo. Fica entre a parte de baixo e a de cima, sendo ao mesmo tempo um suporte e uma superfície – é, na pintura e na escultura, tudo o que nelas se distinguiria da forma, tanto quanto do sentido e da representação. Subjétil é o que não é representável. Uma espécie de pele, perfurada de poros. No subjétil escreve-se e pinta-se o intraduzível e não representável. Descrever ou representar aquilo que se vê provoca uma dissociação entre olhar e fala e, assim, a perda do olhar que a língua porta em si. Essa relação do olhar com a fala é a condição do ato poético de uma fundação da língua. O subjétil é o suporte, a superfície ou o material, o corpo único da obra em seu primeiro acontecimento, no nascimento, aquilo que não se deixa repetir, aquilo que se distingue tanto da forma quanto do sentido e da representação. O subjétil talvez nem seja alguma coisa – talvez apenas anuncie. O subjétil, enlouquecido, abre passagem para o inato que um dia foi assassinado. Uma obstetrícia violenta atravessa as palavras. À força de música, de pintura, de desenho, opera a fórceps.

Pictograma é, para Derrida, essa obra na qual a pintura – a cor, mesmo preta – o desenho e a escritura não suportam qualquer parede divisora, nem a das artes nem a dos gêneros, nem a dos suportes nem a das substâncias. Proto-escritura na qual são projetados todos os mitos de origem, virtudes encantatórias ou conjuratórias, trajetória do que atravessa o limite entre pintura e desenho, entre escritura e desenho e pintura, atravessamento das artes do espaço e das outras, entre o espaço e o tempo. Trata-se sempre da inscrição de um projétil no que é chamado de palavras e imagens, aquilo que no símbolo é portador da iconicidade. Abertura para o semiótico de todo símbolo. Ícone peirciano ligado à categoria da primeiridade, buscando a pura qualidade e a qualidade em si mesma é um poder ser, não acontece necessariamente. A branquitude pode ou não realizar-se como branco. No poema e no desenho, há inscrição de subjéteis que aceleram e precipitam palavras e imagens, grafismos em ritmos tresloucados. A poesia toma o signo como signo, a palavra torna-se imagem da palavra, e o desenho grafa em imagem o precipitado de sons que se tornam escrituras. O limite foi atravessado, foram abolidas as fronteiras entre as artes, tudo é figuração do outro em leque que se abre e multiplica. Sem o movimento as figuras tornar-se-iam tais quais idéias claras, mortas e acabadas. A pictografia é escutada – as letras transcrevem fonemas que não pertenceriam a nenhuma língua natural. A língua natural enlouquece e tem que voltar a um estado anterior a seu nascimento, cópula interposta, nos termos de Derrida entre o –jeto do objeto e o –jeto do sujeito. Letra anterior à palavra numa língua intraduzível, suspendendo o valor representativo da linguagem. Anterioridade que não é origem, pois a originalidade é sempre secundária – uma origem secundária não pode mais ser nem originária nem secundária, e não existe portanto origem. A escritura, anterior à fala, acentua o risco do desvio pelo sensível implicado em todo significante. O ponto de origem torna-se inalcançável. O grafo deixa de ser mero reflexo da oralidade. Pelo contrário, a língua oral já pertence à escritura.

Em meu texto para o livro de Edith Derdyck, eu propunha que como analistas devíamos “melecar essa linguagem purificada e ir atrás do desenho da fala que está nas coisas. Fazer Vênus, voltar à carnalidade do desejo...”. Inspirada em Fédida eu propunha: buscar o dom nas palavras, ir de encontro ao desenho do mundo.

Assim, com Deleuze, Fédida, Derrida, Clarice Lispector, fiel a Freud e Lacan, vou passeando por mundos da minha clínica e leituras, pois, é preciso deixar claro, meu percurso entre a arte e a psicanálise nasce de uma busca de compreensão daquilo que dá especificidade à escuta clínica.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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