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ÍNDICE TEMÁTICO 
35
Revisitando o número 1
ano XVIII - 2° semestre 2005
177 páginas
capa: Sérgio Sister
  
 

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Resumo
Este comentário sobre o artigo de Regina Schnaiderman assinala correspondências entre o pensamento da autora e sua atividade de psicanalista.


Autor(es)
Camila Salles Gonçalves
é doutora em filosofia pela fflcusp, psicóloga pela pucsp, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, autora de publicações sobre psicanálise e filosofia.


Notas

1. Afirmação de Fabio Herrmann, in Leda Affonso Figueiredo Herrman, Andaimes do real: a construção de um pensamento, tese de doutorado em Psicologia Clínica, PUC/SP, São Paulo, 2004, p. 12.

2. Afirmação de Isaías Melsohn, in Sister, Bela e Taffarel, Marilsa, Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida – setenta anos de histórias paulistanas e a formação de um pensamento renovador na psicanálise, São Paulo, Escuta, 1996, p. 71.

3. Sister, B. e Taffarel, M., opus cit., p. 71.

4. “A ‘Instituição Psicanalítica’ Regina Schnaiderman”, Taffarel, M., Jornal de Psicanálise, São Paulo, 34 (62/63):253-257, dez.2001.

5. Taffarel, M., op. cit., idem, ibidem.

6. Taffarel, M., op. cit., idem, ibidem.



Abstract
Regina Schnaiderman was an inspiring figure for a whole generation of colleagues and disciples. This paper retraces her career and places it in the context in which she became an analyst: the years after Word War Two, which witnessed rapid modernization and industrialization in our country. The author pays homage to her integrity as a researcher, to her wisdom as a leader, and to her generosity as a teacher.

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 TEXTO

Ressonâncias

Echoes
Camila Salles Gonçalves


Estudar, “dos marxistas à neurologia positivista do século XIX” [1], era o que Regina propunha, do mesmo modo que Isaías Melsohn, para os que desejavam tornar-se analistas. Já no primeiro parágrafo desse texto, publicado no primeiro número de Percurso, é fácil encontrar fundamentos para sua proposta. Se a história do movimento psicanalítico pode ser escrita em torno do problema de formação de psicanalistas, as políticas, que fazem parte das determinações de tal formação, seguem o curso da história, no qual se podem assinalar pontos de inflexão, tais como a Segunda Guerra Mundial. Esse marco apontado pela autora sugere, de imediato, sua visão de que não é possível uma compreensão do movimento da história que possa ser neutra em relação a filosofias da história.

Regina e Isaías conheceram-se em 1945, nos “anos de militância” [2]. Não pretendo utilizar circunstâncias da vida da autora para acrescentar sentidos a seu texto, mas para lembrar o momento da história do Brasil e da psiquiatria em que se situa o depoimento de seu amigo sobre os primórdios dessa camaradagem: “Prestes tinha sido vilipendiado e preso pela ditadura Vargas: sua mulher, Olga, como sabemos, fora expulsa e entregue à Alemanha nazista por instruções de Filinto Müller, chefe de polícia, que trabalhava sob as ordens diretas de Getúlio.” [3 ]No âmbito chamado de Saúde Mental, vencido o nazismo, no Hospital do Juqueri, os psiquiatras militantes denunciavam a reação conservadora da administração diante de suas reivindicações de melhores condições para o atendimento dos pacientes. Administração que, segundo consta das entrevistas de Isaías, tirava proveito dos recursos naturais do Juqueri, apropriava-se de terras etc. Regina, nessa época muito anterior, óbvio, à sua escolha de tornar-se psicanalista, não pode ter deixado de testemunhar o que a Segunda Guerra produziu e permitiu, nos tempos que se seguiram à data do armistício, em relação a políticas supostamente relacionadas à saúde pública. Mas vemos que seu texto em Percurso não é depoimento pessoal e, sim, apresentação madura e articulada de idéias que situam a formação psicanalítica, no mundo e na rede específica de poderes, que a envolve e tem condições de controlá-la de diversos modos. Esse é um dos motivos pelos quais defende um posicionamento crítico.

Para Regina, não havia sentido em se falar a respeito das necessidades e pressupostos da formação em psicanálise como se estes pudessem ser considerados sem referência à história da epistemologia e das ciências e como se não estivessem relacionados com poderes e discursos de poder.

Os primeiros autores citados, Lacan e Valabrega, trazem, de um lado, a questão da conformidade a um modelo institucional, por parte daqueles que estão em formação, e, de outro, a das relações entre o exercício da psicanálise e o poder legal, a ameaça possível e fundamentada de aquele vir a ser pressionado para integrar-se num sistema qualquer de assistência médico-social. Todos nós sabemos, creio, que estas questões não podem ser mais atuais. No texto, delimitam, primeiro, uma espécie de lugar, a partir do qual Regina apresenta ao leitor sua concepção do objeto da psicanálise e a respeito daquilo que a caracteriza como atividade. Encontramos formulações de simplicidade profunda e esclarecedora: a psicanálise é a atividade de fazer falar e seu objeto é o sentido encarnado ou significação materializada. Encontramos o objetivo da ruptura, da militância freudiana dos psicanalistas, isto é, de sua luta: reconhecida a diferença entre o paciente e o sujeito, impedir que este seja dissolvido no universal abstrato do anormal.

Destaquei a frase, que trai leituras filosóficas e contato com a dialética hegeliana, menos para lembrar a erudição de quem a escreveu, do que para investir no alcance da precisão do seu vocabulário. O universal corresponde a uma idéia de Homem em geral, de Homem normal em geral, de Homem anormal em geral. Quem determina o que é este ou aquele? O universal abstrato não é o sujeito do sentido encarnado, que se situa na história.

Os defeitos do funcionamento psíquico produzidos pela doença
não correspondem àquilo que uma ciência das verdades eternas descobriria. Mas, se essa afirmação é acaciana, não o é a ruptura provocada pela psicanálise, em relação aos detentores de um saber que se apresenta como ciência, da propagação de uma epistemologia ou teoria do conhecimento que tem, sim, como pressuposto não declarado, a crença, de boa ou de má-fé, na sua posse de verdades definitivas sobre as doenças mentais.

Regina prossegue em sua apresentação da atividade que faz falar como projeto de transformação, e esta é a atualização de um poder ser. Não querendo me deixar fascinar pela ordem das razões de seu texto, nem ser tomada pelo desejo de exibi-la, contenho-me para pelo menos assinalar o modo pelo qual nos conduz à íntima relação entre o poder ser e a desalienação, como essenciais à atividade psicanalítica.

No que diz respeito ao ensino, o projeto visado pela autora implica a desalienação do discurso sobre o saber psicanalítico. Fundadora do curso de psicanálise, que deu origem a nosso Departamento, e do Instituto Sedes Sapientiae, Regina foi a “primeira instituição psicanalítica de São Paulo fora da IPA”, como escreveu Marilsa Taffarel [4]. Relatos sobre sua prática de supervisão anterior ao Sedes também nos permitem imaginar efeitos desalienantes de uma postura ética, pois “dizia Regina, num tempo em que esta atitude absolutamente não era lugar-comum: a supervisão deve ser ouvida e esquecida, senão vira um conjunto de normas” [5].

Se, neste momento comemorativo, a imagem da autora se aviva como “fonte de referência” e “mestra identificatória”, e podemos pensar a partir de suas idéias, ela nos possibilita ser, em algum lugar acolhedor, como a árvore do sonho de uma psicanalista, que contou: “quando a Regina morreu sonhei com uma árvore bem grandona. Só podia ser ela”. Tendo começado com Regina o aprendizado, acrescentou: “era generosa, acolhedora, superanfitriã com todos os que chegavam” [6]. Tudo indica que seu modo afetivo de estar no mundo tinha traços comuns com a maneira pela qual recebia e compartilhava pensamentos, novas contribuições à psicanálise, inquietações da prática.

Se Regina achava esse seu texto pequeno, no sentido de nos apresentar “poucas” considerações, leitora, hoje, concordo e discordo. Com efeito, não se alonga na exposição do pensamento investigativo de que parte. Mas, por outro lado, esta se mantém aberta como inspiração e como indagação inesgotável.
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