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Resumo
Resenha de Karina Codeço Barone, Realidade e luto: um estudo da transicionalidade, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, 128 p.


Autor(es)
Darcy Haddad Daccache
é psicóloga e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1 Sá Carneiro, Mário de, Dispersão – 12 poemas, Lisboa. 1914.

2 Pessoa, F., Obra Poética. Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1995, p.181.

3 Szondi, P., in Matos, "A experiência: narração e morada do homem" (2001) in Jornal de Psicanálise do Instituto de Psicanálise da SBPSP, São Paulo, 34 (62/63), 69-75, 2001.



Abstract
Review of Katrina Codeço Barone, Realidade e luto: um estudo da transicionalidade. Based on Winnicott’s ideas and on her own clinical experience, the author refl ects about the importance of elaborating mourning in the psychotherapeutic work with severely affected children. In this context, she points out the connections between Freud’s and Ferenczi’s theories, and stresses Winnicott’s very important contribution.

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 LEITURA

Realidade e luto

Reality and mourning
Darcy Haddad Daccache


Resenha de Karina Codeço Barone, Realidade e luto: um estudo da transicionalidade, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, 128 p.

"O passado não é aquilo que passou,
É aquilo que fica do que passou."
ALCEU AMOROSO LIMA

O livro de Karina Barone agradará certamente ao leitor interessado no tema, pois com linguagem elegante e despojada expõe com clareza as idéias de Winnicott. A autora, a partir de sua experiência com crianças gravemente enfermas, repensa o trabalho do luto, levando em consideração a importância que ocupa, na obra de Winnicott, a ilusão como constitutiva da subjetividade humana.

Afirma que a constituição do tempo transicional (Safra, 1999) é indispensável para o trabalho do luto, na medida em que é possível manter uma síntese entre a fantasia e a realidade. Isso ocorre porque, devido à manifestação do fen ômeno transicional, o sujeito não se aliena nem na alucina- ção, nem na realidade.

Expõe esse aspecto como fundamental no seu trabalho com crianças vítimas de severo trauma.

Barone apresenta uma investigação a respeito da maneira pela qual Winnicott compreende o contato com a realidade. Ela constata que apenas quando os pacientes conseguem elaborar suas perdas é que se torna possível obter a diminuição dos sintomas depressivos apresentados.

Sobre o trabalho do luto, o livro de Dráuzio Varella Por um Fio corrobora a opinião da autora; suas reflexões norteiam-se pela crença no seguinte princípio: “mais do que curar, o objetivo fundamental da medicina é aliviar o sofrimento humano”. Acredito que esta é a Þ nalidade de seu trabalho.

Ela não deixa passar despercebida a inß uência que, no princípio, a teoria de Melanie Klein teve no pensamento winnicottiano, sobretudo o estabelecimento da posição depressiva que possibilitaria a integração de amor e ódio, ainda que depois Winnicott tenha trilhado um outro caminho.

Ao longo do livro, discute como o tema do contato com a realidade havia sido desenvolvido por Freud e Ferenczi, objetivando mostrar a herança ferencziana presente no Grupo Independente e em Winnicott. Investiga também a teoria do desenvolvimento emocional primitivo de Winnicott, que considera precursora da teoria dos objetos e fenômenos transicionais. Para Barone, essa última constitui uma preciosa ferramenta para investigar, sob uma nova ótica, alguns temas psicanalíticos de relevância. As contribuições a respeito dos processos maturacionais do indivíduo introduzidas por Winnicott, no que se refere à apreciação da realidade, recebem também tratamento cuidadoso. A partir da análise de pacientes “difíceis”, pacientes que adoecem em decorrência de uma situação traumática, a autora mostra como a técnica interpretativa apresentada por Winnicott diferencia-se da proposta interpretativa de Freud e daquela de Ferenczi. Contudo, não deixa de chamar a aten- ção para as heranças freudianas e ferenczianas, discussão que faz com delicadeza ao longo do livro.

Barone alerta para o texto de 1933, “Confusões de língua entre os adultos e a criança”, no qual Ferenczi discute a relação assimétrica entre o adulto e a criança, uma vez que a criança fala a linguagem da ternura e o adulto a da paixão. Segundo a autora, Winnicott deu um passo à frente de Ferenczi porque propõe uma relação não traumática, baseada na existência de um ambiente potencialmente bom para atender às necessidades da criança. Destaca tanto a maneira pela qual a teoria de Winnicott apresenta conexões com a obra freudiana, quanto os momentos de maior independ ência dela. Sugere que essa foi tarefa de difícil sustenta ção, uma vez que o pró- prio Winnicott, em diversos momentos, manifesta-se como seguidor de Freud. Assim mesmo, a autora reconhece que há uma sistematização da influência de Freud em Winnicott.


Sobre o desenvolvimento emocional primitivo e a experiência compartilhada entre mãe e bebê, aspecto relevante na teoria e que ocupa todo um capítulo do livro, cito um verso do poeta Mário de Sá Carneiro [1] que sintetiza, como sabem fazer os poetas, o “entre” na teoria de Winnicott:

“Eu não sou eu nem sou o outro Sou qualquer coisa de interm édio”

Contemporâneo de Sá Carneiro, Fernando Pessoa [2], em seu poema “Eros e Psique ”, nos oferece em imagem poética a compreensão teórica a que só a emoção pode dar sentido.

“Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria
Um infante, que viria
De além do muro da estrada”
(...) E inda que tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia

A idéia central em Winnicott é baseada na teoria dos fenômenos transicionais, pois esta conduz a uma nova compreensão a respeito do indivíduo com a chamada realidade externa. A experiência de ilusão é uma trégua na perpétua luta para manter separadas realidade e fantasia, diz Barone.

Gostaria de citar aqui o Þ lme de W. Allen A rosa púrpura do Cairo para ilustrar essa experiência. O filme conta história de uma mulher infeliz no casamento e que nos mais intensos momentos de ang ústia se refugia no cinema. Ela apaixona-se pelo personagem principal de um Þ lme, que, não por acaso, era Þ sicamente idêntico a seu marido. um dia, na sua ilusão, esse personagem sai da tela e lhe diz: “Vem, Þ ca comigo”, mas, sábia e tristemente, a mulher responde: “Eu não posso Þ car com você, eu tenho que Þ car com ele.”

Sobre o espaço potencial, Barone diz na página 82 de seu livro: “Com o objetivo de compreender a fenomenologia dos objetos e fenômenos transicionais, há a necessidade de postular tanto uma nova modalidade de relação entre dois pólos da realidade – a experiência de ilusão – quanto a existência de uma terceira área de experiência – o espa ço potencial”. O “agora eu era” das brincadeiras infantis, eu diria.

A relação satisfatória com a mãe permite que o mundo possa ser permeado por aspectos relativos aos fenô- menos transicionais e, dessa forma, ele passa a ser um espa ço disponível a ser habitado pelo sujeito. Neste momento, Barone faz uma reß exão sens ível e, a meu ver, bastante apropriada sobre o desenraizamento, citando o comentário de Peter Szondi [3]:

“... em Paris, na comunidade dos judeus alemães foragidos do nazismo, estes conversavam sobre os países para onde deveriam emigrar: Inglaterra, Suíça, Estados Unidos. Um deles disse partir para o Uruguai – ao que todos, aturdidos, inquiriram: ’Mas por que tão longe?’. A resposta foi: ’Longe de onde?’. Perdido um lugar de ‘origem’ e ‘pertencimento’, dispersa-se a história e a subjetividade, com que todos os lugares se equivalem”.

Essa história comovente faz-me lembrar de um jovem que dizia que, quando crian- ça, era considerado manhoso, mas não chorava porque a mãe se ausentava e sim porque se sentia sozinho. Talvez esse rapaz/menino, tenha se sentido sempre estrangeiro nessa terra/mãe, e necessite elaborar essa erradicação real ou imaginária que lhe proporcione sustentação para enfrentar a vida e se responsabilizar por ela.

Cito outra vez a autora, que assim Þ naliza seu livro: “...eu precisava encontrar uma forma de trabalhar psicoterapeuticamente, apesar da doença. Para tanto, a doença não poderia ser um diferencial na minha atuação clínica. Contudo, a doença, este dado da realidade dos pacientes, não poderia ser por mim ignorada. Assim, era necessário suportar a natureza paradoxal dessa situa ção, e buscar um equilíbrio entre levar em conta a realidade e não sucumbir diante dela. Como procurei discutir ao longo desse livro, entendo que esta condição psíquica passa pelo estabelecimento de um contato saudável com a realidade e pelo trabalho do luto, por intermédio dos fenômenos transicionais.”

Diria que, para justificar suas opiniões, Barone se refere a um grande número de autores, o que, apesar do aparente excesso, pode ser justiÞ cado pelo fato de o livro ter sido produto de sua dissertação de mestrado e pela engenhosidade da autora em circular pelas diferentes teorias e postula- ções sempre orientada pelo Þ o condutor. Ressalto outrossim que deste trabalho surge uma jovem autora séria e talentosa que certamente trará muitas contribuições à literatura psicanal ítica.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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