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Resumo
Resenha de M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.), Hipocondria, São Paulo, Escuta, 2002, 201 p.


Autor(es)
Aline Camargo Gurfinkel
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso de Psicossomática, do mesmo Instituto. Mestre pelo Instituto de Psicologia da USP, é autora do livro Fobia (Casa do Psicólogo, 2001) e co-organizadora do livro Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (Escuta, 2002). Membro do “Projeto de Investigação e Intervenção na Clínica da Anorexia e da Bulimia”, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1. R. M. Volich, Hipocondria: impasses da alma, desafi os do corpo, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2002.

2. Sobre esta questão remeto o leitor ao texto: Fernandes, M. H. As formas corporais do sofrimento: a imagem da hipocondria na clínica psicanalítica contemporânea. In: R. Volich, F. M. C. Ferraz, e W. Ranña, (orgs.) – Psicossoma III: interfaces da psicossomática. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

3. P. Jeammet, “Abordagem psicanalítica dos transtornos das condutas alimentares”, in: R. Urribarri (org.), Anorexia e bulimia, São Paulo, Escuta, 1999.

4. D. W. Winnicott, “A reparação em função da defesa materna organizada contra a depressão” (1948), in: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1993, p. 198-9.



Abstract
Review of Maria Helena Fernandes, Hipocondria. This collection presents essays originally published in the Revue Française de Psychanalyse (1995), plus an extensive analysis of the subject by Brazilian psychoanalyst Maria Helena Fernandes. Several elements related to this condition are investigated: narcissism, primary masochism, persecutory objects, the overlapping of self-eroticism and self-preservation, etc. The history of hypochondria in medicine, its transcultural value and dream hypochondria as related to psychosomatic symptoms are also discussed.

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 LEITURA

A hipocondria e a linguagem dos órgãos

Hypochondria and the language of the organs
Aline Camargo Gurfinkel


Resenha de M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.), Hipocondria, São Paulo, Escuta, 2002, 201 p.

O corpo, no mundo contempor âneo, tem se tornado cada vez mais um enigma que exige ser decifrado. Ele se faz presente em diferentes esferas da vida cotidiana, tais como na alimentação, na atividade física e nas relações com o outro, e tem estado cada vez mais em evidência em nossa clínica, produzindo ruídos, sil êncios excessivos ou sintomas de diversas ordens.

A produção psicanalítica, que investiga o modo de vida contemporâneo e seus efeitos na clínica e, sobretudo, no corpo, tem sido vasta e profícua. O estudo da hipocondria tamb ém nos fornece importantes elementos para trabalhar o sujeito e seu corpo: um sujeito que está instalado num corpo, que antes de mais nada é corpo. Estamos aqui lidando com o conceito que Freud, em O ego e o Id, denominou de ego corporal. A hipocondria, tamb ém conhecida na antigüidade como a "sombria melancolia", faz o corpo falar uma linguagem que nos convida a adentrar um outro universo: o da linguagem do órgão.

A coletânea que apresentamos constitui uma refer ência muito importante sobre o tema. Trata-se da tradução dos trabalhos publicados na L’ hypocondrie, Monographies de la Revue Française de Psychanalyse, (1995) acrescida do texto de Maria Helena Fernandes, “A hipocondria do sonho e o silêncio dos órgãos: o corpo na clínica psicanalítica ”. O ano de 2002 mostrou-se fértil em importantes publica- ções sobre o assunto, já que nele também foi publicado o livro Hipocondria, da coleção clínica psicanalítica [1], escrito por Rubens Volich; um texto claro e envolvente, que nos conduz a uma viagem no tempo e na história desta patologia. Mas se por um lado o livro de Volich apresenta uma preocupa ção didática e introduz o leitor no tema ao apresentar a bibliograÞ a a ele referente, no livro que ora resenhamos o espírito é outro: trata-se de uma soÞ sticada teorização que pressupõe um bom conhecimento prévio dos conceitos ligados à constituição do sujeito nos diferentes desenvolvimentos pós-freudianos. São livros que se complementam e constituem uma referência necessária ao leitor interessado no tema, que encontrará neles um excelente material de pesquisa.

Hipocondria começa dando lugar privilegiado à hist ória ao apresentar o artigo de Angelo Hesnard. Trata-se de uma comunicação apresentada à Sociedade Francesa de Psicanálise, em 1931, e publicada na Revue Française de Psychanalyse na mesma época. Um prefácio acompanha o texto e situa-o num interessante contexto geopolítico, dando elementos para compreender a complexidade das relações do movimento psicanalítico internacional. Hesnard teve um importante papel na difícil penetração da Psicanálise na França. Em seu artigo, ele apresenta dois casos clínicos e distingue dois tipos de estados hipocondríacos: os que evoluem nas neuroses e os que evoluem nas psicoses. Acompanhando o pensamento de Freud e de Jones, o autor ressalta o papel da angústia hipocondríaca. Nos casos clí- nicos, especialmente no segundo que apresenta, ele revela dados importantes sobre a contratransferência, embora ele próprio não tenha podido elaborá-la suÞ cientemente em seu trabalho clínico.

O texto de Colette Guedeney e Catherine Weinsbrot traz importantes elementos de análise sobre o corpo na Psicanálise e na cultura contempor ânea, bem como sobre a instigante relação médicopaciente e analista-analisante. Na hipocondria, esta última assume características muito peculiares de ordem subversiva, análoga àquela da histérica com o médico e seu saber.

As autoras retomam a sinuosa história da medicina, e mostram como os grandes avanços, no estudo da hipocondria, foram sempre representados por uma certa volta às origens e ao pensamento médico da antigüidade.

Em 1860, por exemplo, podemos encontrar uma curiosa definição de hipocondria que mantém sua atualidade: “tipo de doença nervosa que, perturbando a inteligência dos doentes, faz-lhes crer que estão sendo atacados pelas mais diversas doenças, de modo que passam por doentes imaginários, sofrendo muito, e que estão mergulhados em uma tristeza habitual” (p. 31). Em 1781, outra deÞ nição interessante coloca o hipocondr íaco como angustiado com sua saúde, termo usado para sujeitos “extravagantes” e de “humor sombrio”.

Nos escritos hipocráticos e galênicos – conforme relatam as autoras – a hipocondria se encontra ligada à melancolia próxima da neurastenia, da histeria e dos delírios, e – associada ao lado obscuro da depress ão. Já no século IV a C. a hipocondria foi isolada como doença cuja responsabilidade era atribuída à “bílis negra”, ao “humor negro” da doutrina dos Quatro Humores. Surpreendentemente, a tradição humoral vai se manter ao longo da história através das met áforas ligadas à hipocondria, e permanecerão, de um certo modo, no próprio discurso neurobiol ógico do séc. XXI.

Na antigüidade, o doente se colocava entre os médicos e os Þ lósofos, que se uniam para aliviar o sofrimento do paciente, para que ele encontrasse a alegria de viver (eutimia). A Þ losoÞ a era quem libertava o homem das paixões. Não havia uma psiquiatria antiga, pois a dor física e a dor psíquica encontravam- se no mesmo plano. Para Hipócrates, no centro da hipocondria estão a tristeza e o temor duráveis. Outra idéia associada à hipocondria é a de que sua etiologia seria devida a uma espinha cravada nas vísceras! Já para Diócles de Caristo, o primeiro a deÞ nir a hipocondria, no séc. IV a C., a hipocondria seria como uma gastrite. Ora, como sintetizam Guedeney e Weisbrot, “a queixa hipocondríaca é justamente a da sombria melancolia, deste mal-estar que tanto fez sonhar e inspirou todo um imaginário não apenas médico ou Þ losóÞ - co, mas ainda poético, literário ou artístico, a ponto de fazer dela, além de uma doença ou uma disposição da alma, o temperamento dos homens excepcionais. Ela é distimia, náusea existencial, portanto, contrária à eutimia na qual a alma e o corpo estão em paz e harmonia” (p. 35).

A aproximação entre hipocondria e doença digestiva me parece bastante interessante, e nos remete ao tema dos transtornos alimentares. Tanto nestes últimos quanto na hipocondria estamos diante de patologias com um caráter transnosográÞ co, e em ambos observamos igualmente perturba ções da imagem corporal [2]. É curioso lembrar ainda que alguns casos da anorexia por vezes evoluem para um quadro de hipocondria, como apontou Jeammet [3].

Um desdobramento do aspecto digestivo no tratamento da hipocondria na antig üidade era a recomendação de evitar alimentos pesados e indigestos, além de “tratamentos para a alma”, como a reß exão, a música e a amizade. Um critério para diferenciar a hipocondria da melancolia, apontado pelas autoras, é o seguinte: será hipocondria quando “os sintomas digestivos ocupam a boca da cena e de melancolia quando os dist úrbios psíquicos, a dor moral são predominantes” (p. 36).

Segue a história com a separação radical entre o corpo e o espírito. No século XXI, com a hiperespecialização da medicina, haverá uma valoriza ção dos órgãos e das lesões que estimulam o hipocondríaco a falar destes em vez de falar do corpo. Exemplo preciso de como a cultura atravessa nossa relação com o corpo.

Após este interessante capítulo histórico, encontramos o texto de Fine: um ensaio de revisão dedicado mais às “hipocondrias pesadas, maciças e crônicas”. Do que se trata a hipocondria, interroga- se Fine. Podemos falar em fenômeno, já que nela há uma articulação entre Psique e Soma? Parece tratar-se de um drama com dois personagens, ou do encontro entre uma sensa ção, uma dinâmica individual e um discurso. “Quer se trate de abordagens médicas, psiquiátricas ou psicanalíticas, nenhuma delas é consensual, e a polissemia induzida deste termo não permite sua entrada em um quadro nosográÞ co especíÞ co” (p. 59).

Fine repassa as hipóteses freudianas, salientando o fato de Freud nunca ter se dedicado mais detidamente à hipocondria. Descreve um primeiro tempo da teorização freudiana no qual a hipocondria é aproximada à neurose atual, em um segundo, no qual é associada à parafrenia e à paranóia. Fine retoma também os trabalhos de vários autores contemporâneos de Freud, como Tausk, com o complexo do corpo materno, e Ferenczi, com as patoneuroses. Em seguida, dedica-se aos autores pós-freudianos que seguiram a abordagem de Klein. Aqui a ênfase recai sobre os dois esquemas da teorização da pulsão de morte: a projeção do sadismo sobre os objetos externos seguida da introjeção desses objetos, que passam, então, a atacantes internos, e do modelo da pulsão de morte surgido em 1948. A hipocondria estaria ligada ao jogo das posições esquizoparanóides e depressivas, que está assentado na inveja e na recusa da frustra ção. A tradição kleiniana tem enfatizado, ainda, que os sintomas hipocondríacos aparecem nas crianças precocemente. Sobre este aspecto, lembro-me de uma interessante observação de Winnicott sobre as manifesta ções hipocondríacas nas crianças: “provavelmente, consigo uma visão especialmente clara deste problema [hipocondria] em um departamento ambulatorial infantil porque um tal departamento é, na verdade, uma clínica para tratamentos da hipocondria em mães. Não há uma linha divisória nítida entre a hipocondria franca de uma mulher deprimida e a preocupação genuína de uma mãe por seu filho” [4]. Temos aqui um interessante campo de pesquisa: aquele compreendido pelo entrelaçamento dos sintomas no corpo do Þ lho com uma tendência hipocondr íaca da mãe, derivada de sua própria depressão.

Temos, em seguida, o trabalho de Pragier, um dos autores centrais do livro. Nele, encontramos a seguinte fala de um paciente: “É aí que isso acontece... sempre, sempre... é apertado, incha, causa dor... tudo explodiu no interior, o est ômago, o coração, não como, quero dormir... sempre, sempre... ” encolhe-se sobre a cadeira e, mostrando a barriga, modula sua melopéia: “É aí que isso acontece... sempre, sempre...” (p. 86-87). Eis um belo retrato da fala hipocondr íaca, da relação do sujeito com sua angústia.

Pragier nos diz que compreender os hipocondríacos não é fácil. São pacientes que raramente chegam ao analista, já que buscam preferencialmente o médico, e a gravidade dos sintomas vai da angústia hipocondríaca à convic ção e ao delírio. Nos raros trabalhos publicados sobre o tema, o analista vê-se frente à travessia de grandes diÞ culdades teóricas. Aqui podemos evocar as imagens do Þ lme Viagem fantástica, no qual as personagens, como viajantes espaciais, adentram um universo estranho chamado corpo humano, e enfrentam múltiplas e perigosas aventuras. Assim, trabalhar com o tema da hipocondria transporta-nos, tal como no Þ lme, a um universo no qual não há limites entre o fora e o dentro: o objeto, tão fundamental para o sujeito, é negado, e a alucinação aparece no negativo.

Pragier nos lembra que já está claro que o hipocondríaco identiÞ ca o órgão doente com o objeto mau, cuja perda recusa. Desse modo, a questão que se coloca agora é segundo qual mecanismo esta transforma- ção opera. Ora, esta é uma patologia que coloca, de saída, a questão dos limites do eu. Para o esclarecimento desta questão, ele evoca André Green: “conÞ rmando a import ância do objeto como função enquadrante da estruturação psíquica, o desinvestimento das representações de coisas e do inconsciente na hipocondria produz uma regressão narcísica despsiquizante.” (p. 83-4). A clínica da hipocondria contribui com importantes elementos para se pensar os processos que regem as ß utua ções dos limites entre o fora e o dentro do sujeito.

Pragier destaca ainda a necessidade de se trabalhar com a hipocondria em suas relações com outras patologias, tais como a histeria, a melancolia, a paranóia e a somatização. É preciso compreender a especiÞ cidade do investimento do corpo dolorido, que assume o lugar do objeto. O auto-erotismo ganha um lugar central e diferente de suas características habituais e de seu caráter ativo, já que o investimento das zonas eró- genas “parece se esfumaçar ao mesmo tempo que o objeto; a regressão faz com que o paciente volte ao período de indistinção eu-objeto.” (p. 84). Trata-se de um auto-erotismo muito arcaico, que investe globalmente o corpo em suas funções vitais mais autônomas que são mais independentes do objeto libidinal.

Ainda com este autor, vemos que a hipocondria consiste na falha da continuidade muda do corpo, que não é um vazio, mas uma “percepção contínua de impressões reasseguradoras ”, um fundo sobre o qual “se efetua normalmente o trabalho psíquico” (p. 85). Esta falha perturba uma boa identiÞ cação primária. Excesso ou falta nos cuidados maternos e a má qualidade da pára-excitação engendram a mesma fragilidade, que trará repercussões no sentimento do corpo. O objeto está lá desde o início, e suas falhas tornar-se-ão presentes em toda patologia na qual apare- çam alterações da percepção do corpo. “A representação da ausência de representação atingiria a percepção contínua de impressões tranquilizadoras que, como vimos, funda o silêncio do corpo. Haveria alucina ção negativa da representa ção – muda – de um corpo que funciona bem. É na falta deixada por esta ausência que se desenvolve a hipersensibilidade aos movimentos internos do corpo, e a interpretação pejorativa destes (...) O objeto perdido não é introjetado no eu, como na melancolia, mas recusado pela alucinação negativa, enquanto o corpo vem ocupar o lugar deixado vago.” (p. 102)

A recusa da perda do objeto afeta as capacidades do eu, de modo que este fracassa ao tornar psíquicas as sensações somáticas. Por outro lado, o sintoma hipocondr íaco evita a despersonaliza ção ao estabelecer uma representação psíquica destas excitações: a lesão de um órg ão ou uma doença grave. “O órgão hipocondríaco é, assim, recrutado pelo eu na express ão deslocada do sofrimento que limita a desorganização.” (p. 86).

Em uma perspectiva econ ômica estrita, Þ ca difícil diferenciar as diversas soluções somáticas: conversão, doença orgânica e hipocondria. A distin ção com relação à histeria, que hoje freqüentemente se expressa pelo sintoma da dor, pode ser difícil a princípio; não é o caráter próprio deste sintoma que possibilita o diagnóstico diferencial, mas a angústia, a vigilância intensa e o funcionamento do eu. Na hipocondria, “o órgão emite uma mensagem de sofrimento sem alcance simbólico.” (p. 86).

Como sabemos, a hipocondria é a terceira neurose atual proposta por Freud. O trabalho de M. Aisenstein parte desta premissa, e nos lembra que existe um núcleo hipocondr íaco em todas as organiza ções psicopatológicas. No seu texto sobre o narcisismo, Freud descreve a angústia hipocondr íaca como o protótipo da angústia narcísica. Assimila, assim, a tensão da excita ção do órgão doloroso ao órgão sexual. “Ele supõe a extens ão desta “erogeneidade” para o corpo inteiro que, pelo viés da dor hipocondríaca, adquire assim uma qualidade erógena correlata à distribui- ção das quantidades de libido do eu.” (p. 104).

Aisenstein nos lembra que a dor tem um papel predominante na construção da representação psíquica e que, portanto, o masoquismo tem um papel central no trabalho de representação. “O masoquismo primário permite, com efeito, um investimento do desprazer relativo à doença e à alucinação, investimento suÞ ciente para permitir a passagem do princípio de prazer ao de realidade. Ora, na hipocondria, a angústia hipocondr íaca pode ser pensada como investimento insuÞ ciente do desprazer. Haveria, então, impedimento de investir o tempo de espera, advindo daí um superinvestimento da dor em uma dimensão a-histórica” (p. 104-5). A dor não suscitaria um recurso sadomasoquista e nem um pensamento mágico, e a hipocondria seria vista como alerta de um perigo na esfera narcísica. Um investimento mínimo é correlato, pois, de um investimento pelo objeto (essencialmente a mãe) do desprazer e da tensão dolorosa, no momento das primeiras experiências de satisfação. Como um investimento de tipo hipocondríaco pela mãe, que a autora propõe como “análogo ao aumento hipocondríaco do sonho de que fala Freud, em 1917, quando evoca as capacidades diagnósticas do sonho.” (p. 106)

O texto de Aisenstein faz par com o de Gibeault, pois ambos enfocam o masoquismo primário. Este autor começa por indagar se a hipocondria não seria um estado psíquico temporário, que pode aparecer nas neuroses, nas psicoses, em certos momentos da análise e em certos momentos do desenvolvimento (como a adolescência, a crise de meiaidade e a senescência). Para ele, a angústia hipocondríaca é correlata às questões que se referem à bissexualidade psíquica. Nos dois sexos tratar-se-ia de integrar a passividade, que Freud propõe como feminina. A hipocondria seria uma defesa contra o terror do que está escondido: o continente negro. Gibeault contribui, assim, com alguns elementos signiÞ cativos para o estudo das relações entre masoquismo e feminilidade.

Tal como Aisenstein, Gibeault entende a hipocondria como sinal de alarme de um perigo na esfera narcísica; ela indica um estado de alerta relativo ao investimento narcí- sico do próprio corpo. Gibeault lembra Merleau-Ponty ao colocar que a auto-observação hipocondríaca do corpo enraiza- se numa “quase-reflex ão” deste, que mantém uma distância entre o corpo que sente e o corpo sensível. “Se este trabalho da hipocondria manifesta-se nas expressões patológicas próximas da psicose, pode igualmente mostrar a importância de um superinvestimento necessário do corpo na psique para que seja possível o reconhecimento da alteridade do objeto em seu corpo sexuado “ (p. 127).

O artigo de Fédida ocupa neste livro uma posição central. Começando por sua linguagem, já bem conhecida, que convida a entrar num mundo fantástico como o do filme evocado no início da resenha. No entanto, o fant ástico aqui nos lembra mais aquele do universo de Gabriel García Márquez. Fédida retoma as colocações de Ferenczi bem como alguns aspectos de sua biograÞ a, para situar o fantástico de suas criações teóricas. Assim Fédida apresenta as idéias de Ferenczi, em Thalassa, a respeito de um falso self deÞ nido como um si intragemelar deformado. “É em Princípio de relaxamento e neocatarse que Ferenczi compara ‘o psiquismo do neurótico a uma má-formação, um tipo de teratoma, poder-se-ia dizer.’ As ‘parcelas de gêmeos’ partenogen éticos alojadas pelo tumor são, com efeito, tecidos de si.” (p. 130). Se o bisturi do cirurgião indica que deva ser extirpado, o bom senso indica que isso pode ser uma ameaça à pessoa inteira.

Fédida frisa o grande alcance metafórico das coloca ções de Ferenczi. Fala da submissão deste a Freud, relacionando Þ gurativamente sua transferência não resolvida com a doença e a morte por anemia. “Será a identiÞ cação com a potência superior, em uma transferência que é poupada da agressividade, o meio de ‘apoio’ necessário para se preservar da ‘decomposição’?” (p. 132). Fédida entende que não há reß exão psicanalítica sobre o lugar da hipocondria sem levar em conta o recolhimento na carne do aporte de Ferenczi. Um dos elementos do pensamento de Ferenzci é o das falhas na relação da mãe com o bebê no período das trocas vitais, que se relaciona com lacunas no auto-erotismo. Nestes casos, observamos uma obsessionalização depressiva das angústias maternas, que leva ao investimento estésico das “funções” corporais pelo pensamento. “O hipocondríaco é um teórico do órgão psíquico de pensamento a serviço de uma justiÞ cação da auto-conservação. Como se fosse pressentida a ameaça que representaria o psíquico como força de desorganização do corpo.” (p. 134).

A hipocondria, como a neurose obsessiva, a anorexia e a toxicomania, são patologias que testemunham a sobreposição do auto-erotismo à auto-conservação. Vemos aqui uma nova relação entre a hipocondria e os transtornos alimentares, particularmente a anorexia. Isto se veriÞ ca na reconstrução das relações da criança com a mãe cujo corpo está como um intruso, presente demais. Mães com depressividade obsessiva, por exemplo, levam – freqüentemente o menino – a uma fonte de erotização negativa do pró- prio corpo, impedindo o autoerotismo. Na transferência, tal fenômeno aparece como uma exigência do paciente de que o corpo do analista seja um espelho receptivo de todos os reß exos de sua queixa.

O hipocondríaco apresenta uma grave perturbação na relação especular com outro. Isto se reß ete numa transfer ência que demanda e se dirige, freqüentemente sob a forma homossexual, ao corpo do médico, pois é ele que é o portador da esperança de receber a angústia de decomposi ção e de refletir a integridade do órgão. Com duas passagens clínicas ele ilustra de modo muito claro o lugar do corpo na transferência. Muito rico por sua originalidade, este é um artigo indispensável para o estudo da hipocondria.

O artigo de Marie-Rose Moro pode ser compreendido como um trabalho de etnopsican álise. Trata-se de uma concepção que aproxima a Psicanálise e a Antropologia, centrada no atendimento de pacientes de outras línguas e culturas, para os quais o sintoma recai na perda do referencial cultural que exp õe o sujeito a um profundo desamparo. A partir de um caso clínico, a autora ilustra a técnica e a abordagem do sintoma hipocondríaco nesse contexto. Não se trata de um dispositivo especíÞ co, mas de um setting psicoterápico complexo e mestiçado que permite o descentramento cultural dos terapeutas e a considera- ção da alteridade cultural dos pacientes migrantes. A língua e os elementos da cultura do sujeito passam de obstáculos a elementos do quadro terap êutico e fonte de criação para terapeutas e paciente. O trabalho é realizado com um grupo de terapeutas, baseado no complementarismo de Devereux e na técnica proposta por Nathan. No caso clínico apresentado, o paciente recompõe sua história e seus vínculos e, na volta à sua terra de origem, pode evitar viver um novo traumatismo, fato comum nestas situações.

Para encerrar nossa “viagem fantástica”, nos dirigimos ao artigo de Maria Helena Fernandes, que aborda a capacidade diagnóstica do sonho e que trata do que chama de “psicopatologia do corpo na vida cotidiana”. A autora se pergunta se “escutar” um sujeito é só ouvir sem ver, e comenta que existem situações clínicas nas quais perceber o corpo do outro é fundamental. “O ‘escutar-ver’ é ainda mais necessário quando nos deparamos com as palavras que, muitas vezes, pouco ou nada conseguem dizer além de evocar imagens confusas de um cenário freqüentemente violento.” (p. 176).

Em certos pacientes há uma espécie de “silêncio dos órgãos”. Fernandes toma esta expressão com um sentido diferente do que vimos anteriormente em Pragier. Ela se refere ao silêncio como mudez, como impossibilidade de se expressar, “uma espécie de sono do corpo, porém um sono sem sonho” (p. 186). Neste silêncio dos órgãos, aparece uma ausência de percepção do indício somático mórbido; nessas situações a experiência do corpo se assenta mais no registro da necessidade, anterior ao auto-erotismo, indicando uma falência da erogeneidade e do registro do prazer, da percepção e da dor. Assim, vê-se a grande import ância da erogeneidade para a percepção. Existem outros casos, porém, como ressalta Fernandes, em que a recusa dos sinais dos processos mórbidos está mais ligada a um processo defensivo. Aqui se trata do mecanismo de recusa da realidade, fenômeno que tem relação com o fetichismo e a psicose. A recusa, muito estudada pelos analistas nas patologias psíquicas, pouco foi analisada no campo das doenças somáticas, embora se encontre subjacente a elas mais freqüentemente.

Fernandes propõe reß etirmos sobre a maneira como os investimentos libidinais se organizam no interior da situa ção analítica, na qual “o corpo de ambos é solicitado a dar ouvidos àquilo que a palavra não tem condições de expressar” (p. 190). A autora lembra Fédida ao apontar que o corpo do analista é o cená- rio onde atuam os fantasmas do paciente, de acordo com a economia primitiva da troca com o corpo dos pais. “O contato com os pacientes somáticos rapidamente ensina que a expressão verbal e metafórica freqüentemente utiliza o corpo como imagem, solicitando do analista um olhar e uma escuta capazes de Þ gurar essa imagem e descrevê-la em palavra. ” (p. 190).

Encontramos neste livro, portanto, um precioso material de pesquisa sobre o corpo, num resgate de importantes elos históricos, seja da história da medicina, seja da história deste no campo da Psicanálise, no qual aparecem diferentes rumos da teorização pósfreudiana para esta questão. O livro exige do leitor um trabalho sobre os textos, alguns dos quais não dispensam uma segunda leitura. O estudo da hipocondria traz importantes elementos de escuta para o analista, diante das novas demandas clínicas que incidem tão diretamente sobre o corpo. Seguindo as indicações de Fernandes, faz-se necessário, em certas situações, uma disposi ção para o “escutar-ver”: um analista sensível às sutis vibrações do corpo, e aberto para uma ampliÞ cação hipocondr íaca de sua percepção do outro. Trata-se de desenvolver a capacidade de ouvir a angústia hipocondríaca que se faz presente nas diferentes apresentações clínicas de nossos pacientes, e particularmente nos momentos em que a dor aciona esta angústia para a preservação do eu.
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