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Resumo
Resenha de Maria Rita Kehl, Ressentimento: clínica psicanalítica, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, 247 p.


Autor(es)
Alcimar Alves de Souza Lima
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Abstract
Review of Maria Rita Kehl, Ressentimento: clínica psicanalítica. Resentment is not frequently studied in psychoanalytic literature. This book addresses in depth psychoanalytic concepts related to this emotion and examples taken from fi ction. Philosophers like Nietzsche are brought into the discussion, which illuminates several aspects of clinical work in which resentment plays a decisive role.

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 LEITURA

Ressentimento – clínica psicanalítica

Resentment: a psychoanalytic approach
Alcimar Alves de Souza Lima


Resenha de Maria Rita Kehl, Ressentimento: clínica psicanalítica, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, 247 p.

O livro Ressentimento: clínica psicanalítica, de Maria Rita Kehl, trata de um tema muito atual. Esse afeto é abordado de diversas formas no desenvolvimento dos vários capítulos, desde sua conceitua ção e seu percurso histórico, até sua repercussão na política, na filosoÞ a e nas artes.

Na Psicanálise, a autora ancora-o de maneira original, articulando-o com conceitos tais como narcisismo, campo pulsional, culpabilidade e masoquismo, e traça um interessante caminho para a compreens ão da melancolia.

Nietzsche é recuperado ao se mostrar que as próprias instituições psicanalíticas mal reconhecem seu papel histórico e, muitas vezes, o entrecruzamento das obras de Freud e Nietzsche: “O termo ressentimento não é nem ao menos mencionado no Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis” (p. 25).

A autora faz uma releitura do complexo de Édipo, acentuando a relação horizontal, ou seja, entre os irmãos, em vez de se ater apenas à clássica relação com os pais: “Não é a fortuna do imperador de um reino distante, mas o modesto enriquecimento de seu vizinho que parece intolerável ao invejoso. Não é o pênis do pai que a menina inveja: é o do seu irm ão – supostamente tão amado, tão valioso aos olhos dos pais quanto ela” (p. 55). Essa é uma maneira interessante de pensarmos a função paterna nos tempos em que essa Þ gura sofre imensas transformações no campo social.

Ao abordar as histerias, Kehl faz uma articulação entre inveja e ressentimento: “Se a inveja está na origem das con- Þ gurações subjetivas próprias da histeria, o ressentimento está na linha de chegada, bem no lugar onde Freud imaginou que a histérica – nesse caso quero particularizar a histeria nas mulheres – teria selecionado, bem ou mal, seu problema ” (p. 67). Essa idéia mostra claramente que o metabolismo da inveja no sujeito desemboca no ressentimento.

Para que isso não ocorra, a autora defende que, na ocasião do sepultamento do complexo de Édipo, uma nova posição pode ser alcançada, ou seja, o acesso à “pura diferen ça, sem qualquer sinal de valor positivo ou negativo, implica destruir a face imagin ária do OUTRO: a face do amor, das preferências (maternas/ paternas), dos apelos à identiÞ cação” (p. 71). Ou seja: “vivemos sim em uma ordem simbólica, mas essa ordem é impessoal” (p. 71). Acredito que esse ponto seja nodal em toda situação analítica e diz muito a respeito do lugar do analista e de sua própria aná- lise na condução de qualquer processo analítico.

Outro traço que quero salientar acerca do ressentimento é a questão da vingança adiada, que ocupa no ressentido um lugar central de sua subjetividade e faz com que ele não se ocupe do presente de forma ativa, mas viva-o sempre de forma reativa. Isso acaba por lhe trazer a todo momento uma sensação de estar fora da vida, pois a vida inclui sempre a potência e um cont ínuo movimento de expansão, situação esta bastante debilitada em pessoas reativas como os ressentidos.

Outro aspecto que quero aprofundar é a impossibilidade de esquecimento de episódios que o ressentido tenta sempre presentiÞ car e cristalizar: “O ressentido é um escravo de sua impossibilidade de esquecer. Vive em função de sua vingan- ça adiada, de modo que em sua vida não é possível abrir lugar para o novo” (p. 91).

Isso nos sinaliza para o universo repetitivo em que o ressentido se instala, universo extremamente tanático e com pouquíssimas possibilidades de orquestrações de novas formas.

No capítulo sobre o ressentimento na literatura, a autora faz um trajeto que começa com Ricardo III, de Shakespeare, escrito na transição do Renascimento. Nessa obra, aborda- se um personagem “como força histórica, um afeto que perpassa os termos violentos e injustos da luta pelo poder” (p. 128). Esse personagem, a meu ver, faz contraponto com os outros personagens que a autora analisa em seu livro.

O personagem Raskolnikov, de Crime e castigo, de Dostoievski, está inserido em plena modernidade e “representa o advento do personagem psicológico interiorizado, atormentado pela culpa, debatendo- se em suas altas pretens ões e sua pequena estatura de homem” (p. 138).

O personagem Paulo Honório, da novela São Bernardo, de Graciliano Ramos, vive no Brasil do século XX. Seu autor “faz do ressentimento de seu personagem o sintoma da decad ência de um mundo autorit ário e brutal de dominação que começava a ser, pelo menos moralmente, desbancado pela expansão de uma democratiza ção tardia da sociedade rural brasileira” (p. 138).

E por último a autora analisa As brasas, de 1940, do escritor húngaro Sándor Márai. Na análise dessas obras em que perpassa o ressentimento, Kehl constata que é necessá- ria, do ponto de vista políticocultural, “a existência de uma ordem social na qual um direito tenha sido garantido por antecipa ção a todos” (p. 139).

Acerca da tragédia de Ricardo III, vemos uma diferencia ção entre ressentido e vingativo. Em Ricardo faltam “os escrúpulos, a pretensão de natureza moral, a covardia em se comprometer com o seu desejo; falta-lhe passividade – e não lhe falta coragem...” (p. 145).

Enfim, uma importante constatação é feita: o que tem a ver o estudo do ressentimento e a tragédia pública anterior ao século XVIII, mais ainda, entre as tragédias históricas e as individuais? A resposta é sucinta: “É que os pressupostos do individualismo são determinantes para a construção do personagem ressentido” (p. 155).

Quero analisar a última frase da autora nesse capítulo: “A ‘vontade de potência’ de Ricardo III coloca a radicalidade de Nietzsche em questão” (p. 159).

Esse é um assunto um tanto quanto espinhoso, pois, a meu ver, mesmo quando Nietzsche eleva esse conceito à sua maior potenciação, este vem sempre ancorado à idéia de responsabilidade e ética, o que faz com que o conjunto de sua obra, inclusive, possa ser muito útil na atualidade. A meu ver, portanto, a “vontade de potência” de Nietzsche está mais próxima da idéia de vitual, de desejo, de pré-ato, da intensidade do devir, do que do exercício do poder propriamente dito.

Ao analisar Crime e castigo, Kehl ressalta o aspecto do olhar da mãe sobre o protagonista Raskolnikov. Esta faz uma aposta narcísica imensa sobre esse Þ lho, e este, não podendo sustentá-la, toma caminhos inusitados: “Diante da dívida instituída por tão grande aposta, na expectativa de que o mundo reconheça nele o olhar sustentado pelo olhar da mãe, Raskolnikov tornou-se, ao mesmo tempo, pretensioso e fraco” (p. 164).

Essas combinações explosivas desencadeiam um assassinato deslocado de sentido, “pratica-o para provar uma ousadia que não possui” (p. 164), abrindo cada vez mais sua cisão, palavra essa já contida no desejo materno: “Raskol, um homem em cisão consigo mesmo” (p. 165). Todo o ressentimento de Raskolnikov provém de ele ser um homem inteiramente colado no que Nietzsche chama de “forças reativas”, que distanciam- no da vida, pois esta é aÞ rmada nas “forças ativas”. O protagonista se acomoda e não consegue virar esse jogo. Sua relação com Sônia se passa totalmente dentro desse universo reativo, ou seja, esse protagonista, em muitos aspectos, é paradigma do homem do século XIX, cuja falência acontecerá com a queda do sistema imperial anterior à Primeira Grande Guerra.

Em São Bernardo, o interessante é que o ressentimento acontecerá com o suicídio de Madalena e fará explodir “o ressentimento que já estava latente em Paulo Honó- rio” (p. 173), apontando para a dinâmica do ressentimento na estruturação coronelística nordestina – o que também desencadear á uma séria transforma ção no protagonista após esse episódio.

Em As brasas, Kehl segue o percurso do ressentimento na vida dos protagonistas por muitas décadas – o ressentimento como fio condutor da história –, e, a meu ver, devemos também ressaltar que apenas esse sentimento não dá conta de outros afetos, tais como o homoerotismo latente na relação dos personagens principais. Não acredito que o ressentimento seja, sozinho, suÞ ciente para esse reencontro quarenta anos depois. “O próprio Henrik pergunta: que vingança é essa? E ele mesmo responde: A vingança consiste simplesmente em você ter vindo me ver, em ter atravessado o mundo em guerra e os mares infestados de minas para vir até aqui...”.

No Þ nal do livro, em “Pol íticas do ressentimento”, a autora assinala que “o ressentimento é uma relação afetiva que serve aos conß itos característicos dos indivíduos e grupos sociais no contexto das democracias modernas” (p. 205).

A autora faz um importante arrazoado desse sentimento com o pressuposto da igualdade social nas atuais democracias, enfatizando a situação na sociedade brasileira.

A riqueza do livro, a meu ver, está na multiplicidade de recursos que a autora mobiliza nos detalhes com que o tema é tratado e nas sutilezas exploradas com muito tato.

Termina o livro: “O ato político implica sempre um risco de desestabilizar a ordem” (p. 242). Isso aponta para a criatividade que é sempre desestabilizadora e que possibilita o novo. Esse escrito mostra como um tema tão árduo como o ressentimento pode nos conduzir a uma inÞ nidade de questionamentos.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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