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Resumo
Luís Carlos Menezes é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no qual deu aulas, supervisões e seminários por mais de dez anos. Também é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, à qual se afi liou após seu regresso da França, e da qual foi eleito presidente no ano de 2005. Naquele país fez a sua formação, entre outros, com J. B. Pontalis, P. Fédida e Marianne Lagache. O percurso deste colega vindo da Psiquiatria, com uma passagem pelos laboratórios de Biologia do Conseil National de la Recherche Scientifi que, é dos mais interessantes. Ao longo dos anos, seu talento de polemista e a solidez de seus conhecimentos o tornaram uma espécie de porta-voz de Freud e da Psicanálise francesa entre os analistas de inclinação mais britânica da Sociedade; por outro lado, no Sedes de Regina Schnaiderman, seu enraizamento no modo francês de fazer e de pensar a Psicanálise cabia como uma luva. Autor de artigos importantes, reunidos em livro (Fundamentos de uma Clínica Freudiana, Escuta, 2002), participante ativo do movimento paulista – esteve por exemplo na origem das visitas de Pierre Fédida à nossa cidade – e agudo observador da cena analítica mundial, Menezes conta nesta entrevista um pouco da sua trajetória, discute questões clínicas, sociais e teóricas, e conta histórias saborosas. Vamos ouvi-lo.


Autor(es)
Renato Mezan
é psicanalista, membro Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor titular da PUC/SP, e autor de vários livros, entre os quais O tronco e os ramos: estudos de história da Psicanálise (Companhia das Letras).


Abstract
Luís Carlos Menezes, both a member of the Department of Psychoanalysis of Instituto Sedes Sapientiae and current president of the São Paulo IPA section, has been trained in France. After settling in our city in 1984, he has been instrumental in bridging the gap between local British-influenced psychoanalysis and the currents prevailing in France. Pierre Fédida’s visits to São Paulo, which have had a profound effect on many of our colleagues, sprang from an initiative of Dr. Menezes. Here he speaks about his training years and about the contemporary scene of Psychoanalysis, with special emphasis on the controversial “new pathologies”.

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 ENTREVISTA

Luís Carlos Menezes

A lucidez como ideal


Lucidity as an ideal
Renato Mezan

Realização: Renato Mezan.

Luís Carlos Menezes é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no qual deu aulas, supervisões e seminários por mais de dez anos. Também é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, à qual se afi liou após seu regresso da França, e da qual foi eleito presidente no ano de 2005. Naquele país fez a sua formação, entre outros, com J. B. Pontalis, P. Fédida e Marianne Lagache.

O percurso deste colega vindo da Psiquiatria, com uma passagem pelos laboratórios de Biologia do Conseil National de la Recherche Scientifi que, é dos mais interessantes. Ao longo dos anos, seu talento de polemista e a solidez de seus conhecimentos o tornaram uma espécie de porta-voz de Freud e da Psicanálise francesa entre os analistas de inclinação mais britânica da Sociedade; por outro lado, no Sedes de Regina Schnaiderman, seu enraizamento no modo francês de fazer e de pensar a Psicanálise cabia como uma luva.

Autor de artigos importantes, reunidos em livro (Fundamentos de uma Clínica Freudiana, Escuta, 2002), participante ativo do movimento paulista – esteve por exemplo na origem das visitas de Pierre Fédida à nossa cidade – e agudo observador da cena analítica mundial, Menezes conta nesta entrevista um pouco da sua trajetória, discute questões clínicas, sociais e teóricas, e conta histórias saborosas. Vamos ouvi-lo.

PERCURSO: Poderia nos contar um pouco sobre seu caminho, da biologia e da militância estudantil até a psicanálise?
LUÍS CARLOS MENEZES: Fiz medicina em Porto Alegre – sou gaúcho – e já durante a faculdade me interessei por bioquímica: obtive uma bolsa de iniciação científi ca do CNPq e comecei a trabalhar em pesquisa de laboratório. Estávamos na época da ditadura, e outro foco de interesse era a política; como muitos na época, participei do movimento estudantil. O terceiro ponto era o interesse pela psiquiatria: trabalhei na clínica Pinel e, nos últimos anos da faculdade, fazia plantões regulares num hospital psiquiátrico.

Em Porto Alegre, naquele tempo, a psiquiatria estava estreitamente associada à psicanálise. Mas, ao terminar a faculdade, no final de 1967, acabei optando por prosseguir em bioquímica. Em 1968 dava aulas de bioquímica na faculdade de medicina e fazia pesquisa. No início de 1969 fui para Paris. Ali trabalhei alguns anos no estudo do mecanismo de ação de uma macromolécula, de uma enzima – a hexokinase – em Orsay, Universidade de Paris XI. Um ano depois de minha chegada lá, tive a sorte de obter um cargo como pesquisador do CNRS (Conseil National de la Recherche Scientifi - que), o equivalente francês do CNPq. Isso garantia uma carreira para o resto da vida, com promoções que iam ocorrendo periodicamente. Publiquei artigos em revistas científi cas americanas e européias. E fi nalmente, por volta dos meus 30 anos, defendi meu doutorado com base nesses trabalhos. Depois da tese, poderia, como pesquisador do CNRS, continuar na pesquisa científi ca, mas pedi demissão porque já vinha me reorientando para uma antiga paixão, que era a psicanálise.

Não que não me entusiasmasse com a ciência; mas achava a pesquisa científi ca extremamente pesada, até fisicamente, feita num clima tenso de competição internacional e muito focalizada. Vários de meus amigos mais próximos estudavam filosofi a, estavam fazendo suas teses; eu convivia no cotidiano com eles e trocávamos muitas idéias, tínhamos bons papos. Nesta época, descobri Nietzsche, atraído pelas citações deste filósofo feitas pelos autores de um livro que acabara de sair (1972), o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari. Passei a ler apaixonadamente todos os livros deste fi lósofo-poeta, bem como qualquer coisa que encontrasse sobre ele. Levava os meus amigos ao limite da paciência, pois qualquer que fosse o assunto, lá vinha eu com algum aforisma de Nietzsche. Mas ele teve, de fato, uma infl uência decisiva e duradoura sobre mim: o seu elogio da vida, da leveza e o ódio perspicaz contra todas as formas e sistemas de alienação e de intimidação do pensamento por meio da culpa, a crítica do terrorismo pela culpabilização foram defi nitivos. Foi o golpe de misericórdia numa militância, de inspiração marxista e trotskista, em que a culpa era a mola do poder de uns sobre outros, a mola abusiva de todo poder. Fui reencontrar isso tempos depois em Freud. E só há poucos meses, décadas depois, consegui escrever um texto sobre a lucidez, pondo Nietzsche junto com Freud e H. Arendt, e que parece ter sido o único em que me reconheço plenamente, o único trabalho meu que eu gostaria realmente de assinar.

Volto àquele ambiente intenso, libertário, de contra-cultura, pós- 68, em que Foucault, Barthes ou Sartre e Simone de Beauvoir com os maoístas etc. de alguma forma faziam parte do cotidiano de todo mundo. Eu tinha necessidade de me dedicar a algo mais amplo do que a ciência de laboratório e, em meio à minha análise, surgiu como uma evidência a idéia de voltar para a psicanálise.

Procurei a APF (Association Psychanalytique de France) e comecei a trabalhar com eles: Laplanche, Fédida, em especial Fédida, de quem assistia aulas e seminários em Censier (Univ. de Paris VII). Isso foi em 1975/76. Fui trabalhar também no Centro Alfred Binet, interessado especialmente com o trabalho clínico de René Diatkine. Resolvi fazer o curso de psiquiatria, porque, como já era médico, poderia trabalhar como interno (residente), o que me dava uma remuneração de que precisava. Fiz o exame e entrei no curso de psiquiatria da Pitié-Salpêtrière. O curso durou uns quatro anos; no fi nal tinha de redigir um mémoire, mas isso eu não fi z. Tirando este último ponto, preenchi todos os requisitos; trabalhei em vários serviços de psiquiatria, fui ganhando minha vida com isso, mas tendo, ao mesmo tempo, experiências interessantes, como no hospital de dia da rue de Varenne. Esta era uma instituição que se ocupava de paciente psicóticos graves, num ambiente impregnado pela psicanálise, e onde cheguei a ter uma posição de bastante responsabilidade. Pensava em fazer minha formação na APF, ou no Quarto Grupo – grupos menores, com os quais eu simpatizava. No Quarto Grupo, eu ia assistir aos seminários de Piera Aulagnier.

Optei pela APF, ligada à Associação Internacional, a IPA. Mas eles tinham muito pouca ligação afetiva com a IPA, nunca a mencionavam. Era uma associação pequena, com analistas com os quais eu sentia afinidade. Solicitei então minha entrada como aluno (élève). Já estava há sete anos em análise com Jacques Trilling, que nesta época estava próximo de Conrad Stein e de René Major, no movimento em torno de Confrontation, mas que não era e nunca foi da APF. Depois de ter sido aceito, continuei por muito tempo a minha análise com ele, pois desde o início dos anos setenta tinham abolido na APF a análise didática. A instituição não mais interferia na análise pessoal do analista (élève) “admitido para a primeira supervisão”. Esse foi meu percurso em Paris.

PERCURSO: O que atraía você na psicanálise?
L.C.M.:Para mim, ela tem uma pré-história. Quando adolescente, com 14 ou 15 anos, andei me interessando por hipnotismo e passei a praticá-lo. Tinha um caderno em que fazia anotações das minhas “experiências”, e me achava muito importante fazendo aquelas anotações. Um colega do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, onde eu estava fazendo o Científi co, tinha o mesmo interesse – não sei quem infl uenciou quem; nas férias, cada um fazia as suas experiências e, na volta, contávamos um para o outro relatos que incluíam regressões a idades precoces e experiências parapsicológicas. Comecei, durante minhas férias em Santo Ângelo, minha cidade natal, a hipnotizar toda a vizinhança...

Lembro-me de uma tarde em que uma tia chegara para uma visita. Ela tinha um bom espírito esportivo e como minha mãe ainda não estava, eu lhe propus que se deixasse hipnotizar. Levei-a para a sala de visitas e, já numa fase mais avançada, quando se pode obter uma rigidez em que a pessoa fi ca como uma tábua, eu a coloquei entre duas cadeiras, pés numa, cabeça na outra. Não que eu fosse muito forte, mas ela era magra e baixinha, não era pesada. Foi nessas condições que minha mãe encontrou a sua visita ao chegar e abrir a porta. Sem dúvida, surpresa, lembro que exclamou: “menino, o que você fez com a sua tia?”

Nessa época, comecei a estudar os fundamentos do hipnotismo, da parapsicologia, da telepatia... Na Biblioteca Municipal de Santo Ângelo encontrei uma coleção de um tal de Sigmund Freud, peguei emprestado e li os Estudos Sobre a Histeria. Fiquei encantado, porque eu gostava de ler histórias de Sherlock Holmes, o genial detetive inventado por Conan Doyle, e para mim aquilo era um Sherlock Holmes particularmente excitante.

Eu estava nos meus 15 anos, e ficava fascinado com os meandros que Freud ia seguindo para descobrir o miolo da neurose, onde estava a etiologia – achava a palavra etiologia extremamente sonora e científi ca. Já tinha uma pré-história aí. E na faculdade todo mundo achava que eu iria para a psiquiatria, era meu “perfil” como se diz na linguagem mercadológica de hoje.

Em Porto Alegre, como estudante, fiz uma terapia de grupo. O terapeuta falava num luto que eu precisava fazer; eu achava graça, achava que era “coisa de analista”. Com o recalcado, realmente não adiante falar sobre ele. É preciso que este se ponha em ação, que se atualize. E isso tem de acontecer como que por si mesmo, dadas as condições.

Foi o que aconteceu na análise que comecei em Paris, um ou dois anos depois de ter chegado lá. Nela começou a se mobilizar algo que surgia com enorme carga afetiva. De certa forma, os dois primeiros anos de análise foram de catarse. Havia realmente um luto imobilizado, que começou a brotar em sonhos e associações. Enquanto vivia este processo de análise, continuava minha vida de pesquisador em bioquímica. O que eu disse acima sobre a infl uência de Nietzsche não dá para separar do que vinha ocorrendo então nessa análise.

PERCURSO: Durante a sua formação na França, você teve aulas e supervisões com vários analistas. Como foi isso?
L.C.M.: Naquela época havia em Paris uma profusão de gente interessante, que podia ser atordoante para quem não soubesse escolher. Uma coisa de que me orgulhava era do meu faro: sabia escolher o que realmente me interessava, tinha uma certa segurança do que resolvia perseguir, sem me importar em absoluto com a instituição à qual a pessoa estava ligada.

Por exemplo, René Diatkine me interessava vivamente, sempre me interessou. Era da Sociedade de Paris (SPP). Já com Fédida, da APF, achava muito sofi sticada aquela linguagem dele, mas fazia sentido para mim, me tocava. Nas aulas havia uma grande quantidade de alunos da psicologia, que fi - cavam zombando dele pelos seus maneirismos. E eu achava que eles estavam errados, porque o que ele dizia tinha feito muito sentido para mim, e me marcou bastante.

As aulas de Laplanche não eram tão interessantes; ele lia o que depois publicava como suas Problemáticas. E também havia Jean- Bertrand Pontalis: um artigo dele no Le Monde me causou excelente impressão. Era um espírito livre, lúcido, incisivo, preciso. Para entrar na APF, fi z entrevista com ele, e depois, um tempo de supervisão.

PERCURSO: Supervisão de quê? Você já estava começando a atender?
L.C.M.: Tinha um consultório no meu apartamento, com um divã, e alguns pacientes. Já vinha supervisionando com Marianne Lagache, a segunda mulher de Daniel Lagache, uma pessoa adorável, de grande doçura, de um acolhimento delicioso. Para quem estava começando, isso era muito importante. Durante uns quatro anos, toda semana eu ia lá reportar o meu caso clínico. Era acolhido com serenidade e tranqüilidade. Às vezes ela não falava nada, só ouvia, dava um sorriso; às vezes, dizia alguma coisa, que me fazia pensar. Em minha vaidade de debutante, aconteceu de achar que estava indo muito bem, de estar sendo inteligente na supervisão com as coisas que eu conseguia dizer, sem levar em conta que o essencial, que o que me possibilitara pensar aquilo, vinha do “pequeno toque” dado por ela, bem no alvo, no ponto mais difícil. Muito recentemente fi quei sabendo que foi com ela que Fédida fez a sua primeira supervisão na APF.

Essa supervisão com Mme. Lagache era a ofi cial, parte das exigências da APF. Um dia, eu lhe disse que queria fazer uma supervisão com Pontalis, e perguntei se ela se incomodava. Ela concordou; Pontalis era titular da mesma associação à qual ela pertencia. Fui procurálo; ele me aceitou numa supervisão não ofi cial.

PERCURSO: Lá o sistema é de uma ou de duas supervisões?
L.C.M.: São duas. Mas a primeira pode demorar vários anos; se o paciente for embora, por exemplo, interrompendo a análise, é preciso começar outro caso de supervisão. A exigência da supervisão não é por tempo, mas pelo processo de análise pelo qual o paciente efetivamente passou. O caso que supervisionei com Mme. Lagache durou quase quatro anos, quando o apresentamos diante da comissão de ensino. Foi aprovado. Já a supervisão que fi z com Pontalis foi à parte. Quando validei a primeira, já estava há um ano e meio com ele. Foi quando resolvemos voltar para São Paulo.

Aqui em São Paulo, a Sociedade de Psicanálise me recebeu de forma acolhedora, dizendo que nada sabiam da psicanálise na França, mas foram bastante sérios e criteriosos: forneci um currículo detalhado, me submeti a três entrevistas, e o Instituto solicitou informações sobre meu percurso na APF. O diretor da comissão de ensino era, naquele momento, Wladimir Granoff. Ele escreveu uma carta com um breve relato sobre o caso que eu tinha supervisionado com Mme. Lagache, o caso ofi cial, confi rmando que este tinha sido validado.

Sugeriram que eu pedisse a Pontalis uma carta semelhante, ainda que minha supervisão com ele não tivesse sido ofi cial. Pontalis foi também descritivo, relatando a experiência de supervisão, com apreciações sobre o meu modo de trabalhar a contratransferência no caso seguido etc.

A comissão de ensino daqui considerou que o que eu tinha feito correspondia a mais do que as 80 horas exigidas aqui para cada supervisão. Pediram apenas que eu freqüentasse alguns seminários clínicos de minha escolha, para conhecer melhor a instituição e para que a instituição me conhecesse melhor, antes de me admitir como membro. Foi uma decisão bastante sensata. Quando achei que já era sufi ciente, apresentei um trabalho em reunião científi ca da Sociedade, e passei a membro associado.

Isso foi em 1985 (eu tinha chegado no segundo semestre de 1982). E na mesma época, creio que por sugestão do Renato Mezan – nos conhecemos e fi camos amigos em Paris – recebi um telefonema da Regina Schnaiderman, que me convidou para trabalhar no Sedes. Foram as minhas duas inserções em São Paulo, e continuam sendo as mesmas.

PERCURSO: Como foi esse telefonema da Regina?
L.C.M.: Foi em dezembro de 1984. Ela me convidou para ir à sua casa; conversamos bastante, conversa que fi camos de continuar na volta das férias. Não houve volta, porque em janeiro ela faleceu. Tinha ficado acertado que eu daria um seminário sobre o Homem dos Lobos, o que fi z no primeiro semestre de 1985. Assim, coincidiram os momentos em que passei a membro da Sociedade e em que comecei a trabalhar no Sedes.

PERCURSO: Este trabalho apresentado na Sociedade originou o trio Menezes/Luiz Meyer/Junqueira. Você pode contar como foi isso?
L.C.M.: Meu trabalho era intitulado “A Histeria e o Feminino: Um Caso Clínico”. Em 1985, na Sociedade era muito freqüente receber colegas ingleses, mas me aconteceu de ouvir que Freud era ultrapassado, obsoleto. Histeria era uma palavra há muito fora de uso, sexualidade no sentido freudiano também. As noções de masculino e feminino eram usualmente consideradas mais em relação com as concepções de continente e de conteúdo de Bion.

O que apresentei foi o caso que tinha supervisionado durante quatro anos com Marianne Lagache. Antes de apresentá-lo na Sociedade, mostrei o que havia escrito para a Anna Maria Amaral, e ela me disse, com um ar malicioso : “Para mim está bom, mas quero ver lá na Sociedade como vai ser...” Bom, o auditório estava lotado, havia um clima de animação e houve muitas perguntas e observações. Havia pois a disponibilidade para discutir algo tão diferente, e seriedade em me pedir que eu explicasse, que eu “desse conta” do que apresentava.

Alguns meses depois, o presidente, o Deodato Azambuja, fez uma proposta. Ia haver um Congresso Brasileiro de Psicanálise em Gramado, cujo assunto era “Novos avanços na Psicanálise”, ou algo assim. O Deodato considerou que a novidade na psicanálise naquele momento era o debate entre as escolas, e me propôs de discutir o meu trabalho com dois colegas de orientação diferente. Um era o Luiz Carlos Junqueira, um analista muito estudioso e sério, que trabalhou pessoalmente com Bion, o outro o Luiz Meyer, analisando de Donald Meltzer, um analista kleiniano bastante sólido. A partir destas discussões, poderíamos apresentar um trabalho conjunto no Congresso de Gramado.

Aceitei, e passamos a nos reunir os três, todas as segundas-feiras, durante um semestre inteiro. Para se ter uma idéia, Luiz Meyer começou escrevendo um texto datilografado, no qual pegava frase por frase do meu trabalho e dava dela uma compreensão kleiniana.

Já na noite em que eu apresentara o trabalho na Sociedade, alguns meses antes, ele havia feito um comentário nesta linha. Lembro- me de como reagi na ocasião: eu lhe disse que me parecia muito engenhosa a reinterpretação que ele estava fazendo, pois nela tudo se encaixava perfeitamente, só que eu não reconhecia naquilo que ele me dizia nem minha analisanda nem a análise que ela tinha feito comigo. A impressão que eu tinha é que aquele exercício podia se aplicar a qualquer coisa.

Isso se amplificou em nosso trabalho a três: respondi também por escrito, num longo texto, ao seu escrito, e assim por diante, embora nos reuníssemos todas as semanas. O Junqueira também escrevia. Trabalhamos por um semestre, O trabalho foi ficando interessante e foi a contragosto que, às vésperas do Congresso, paramos para fazer algo para apresentar lá. O texto que saiu era raquítico aos nossos olhos e, sem dúvida, pouco dava conta do trabalho que tínhamos realizado entre nós naquele semestre.

Não saberia dizer agora, precisamente, no que consistiam as diferenças, mas posso dar a memória subjetiva do diálogo com o Luiz Meyer. O que ficou para mim é que se tratava de dois modos de pensar a clínica. A minha objeção é que ele compreendia demais, que não deixava nenhuma área de penumbra; não havia sombra e claridade, tudo era de uma claridade homogênea. Eu não entendia como, ao se operar com o inconsciente, se pode ter tal entendimento das coisas. Costumo pensar o que é da ordem do inconsciente como algo fugaz, algo que pode ser aproximado por vislumbres. Mas o que surgia da apresentação do Luiz era um desenho no qual tudo se encaixava, tudo fi cava perfeitamente claro. Uma espécie de mecânica, que poderia se manter igual, assim me parecia, que continuaria o seu movimento explicativo se eu tivesse escrito mais uma ou mais duas páginas.

Já o ponto de vista bioniano, expressado por Junqueira, me causava total estranheza. Eu havia ouvido Bion em Paris, tinha antes ouvido Meltzer falar sobre as idéias de Bion. Achava interessante, e tinha lido alguns textos, porém aquela maneira de proceder na clínica causava para mim a mais total estranheza. Não era hostilidade, mas estranheza: eu era relativamente debutante, tinha cinco ou dez anos de experiência, e simplesmente não entendia onde estava a psicanálise ali.

O que vinha do Luiz eu entendia mais: aquele jogo kleiniano – projeções, identifi cações, defesas maníacas – me era familiar. Hoje, com certeza eu compreenderia melhor muitos desses pontos. Por exemplo, o Junqueira trabalhava muito com a oposição exclusão/inclusão – alguém está excluído ou está incluído em uma cena primária, por exemplo. Na época me pareciam coisas distantes, abstratas. Hoje já é algo que faz sentido para mim, e que, em minha linguagem teórica, diz respeito a uma questão crucial do narcisismo, a de saber se você existe ou não para o outro, se está incluído e é alguém para ele, ou se está excluído e não signifi ca nada. Questão dramática, que percorre toda a obra de Freud – o terror atávico de ser excluído da tribo, de não estar na comunhão de um grupo. Mas, na época, eu não tinha condições de ligar uma coisa com a outra, porque mesmo na minha referência à obra de Freud e no meu percurso na Psicanálise, eu ainda não tinha chegado lá.

O trabalho recente a que me referi antes sobre o poder e a lucidez – eu o escrevi em novembro de 2005 – gira em torno dessa angústia, uma das mais arcaicas do ser humano: o terror de não ser como os outros, de não fazer parte, de estar excluído. Há aí uma questão fundamental, de vida ou de morte, que na época eu não alcançava. Não era dito como estou dizendo agora, mas hoje sei que era essa a problemática que estava em jogo: Bion é um analista que tratou de psicóticos graves, para os quais a questão de existir/não existir, estar incluído/estar excluído, é crucial.

PERCURSO: E no Sedes, como foi sua experiência?
L.C.M.: Foi diferente. Talvez seja bom começar pelo contraste com a Sociedade. Quando cheguei em São Paulo, naturalmente tinha poucos pacientes, portanto mais tempo. A Sociedade também era menor; recebíamos todos os trabalhos escritos pelos membros. Eu os lia todos. Queria me integrar, queria também aprender Bion, um autor que por ser pouco conhecido na França, naquela época, era o único dos grandes que eu nunca tinha lido. Mas no conjunto dos trabalhos eu sentia a mesma estranheza a que me referi em relação a muitos dos comentários de Junqueira: algo muito distante do meu modo de abordar as coisas. Eu não via onde estava, naquilo tudo, a Psicanálise tal como eu a conhecia.

Podia ver perfeitamente em Melanie Klein ou em Winnicott, um autor extremamente presente na minha formação. Mas eu não entendia nem o pensamento clínico nem a prática clínica dos bionianos. Os kleinianos, principalmente quando eram analistas de Londres, eu entendia e podia apreciar a sagacidade clínica deles. Com freqüência eu apresentava material clínico. Eram muito atentos com os detalhes na escuta, prudentes, econômicos e precisos nas interpretações. O que eu não conseguia entender era o modo de considerar a Psicanálise dos colegas, de longe majoritários, que se referiam a Bion. Essa era a minha difi culdade para entender a Sociedade, embora tivesse sido bem acolhido, com muita correção, num clima de seriedade, de diálogo e de respeito.

Já com o Sedes o diálogo era muito mais fácil. A Regina Schnaiderman trouxe a infl uência francesa para São Paulo; criou-se o curso de psicanálise, com o Roberto Azevedo, que tinha uma infl uência um pouco diferente, e os colegas argentinos que tinham chegado, às vezes com fundamentos kleinianos, mas com abertura para os desenvolvimentos dos autores franceses da época. Por isso eu me reconhecia e me sentia muito mais próximo do que se falava no Sedes, tanto no plano teórico quanto no plano clínico. Encontrava interlocutores. Ao mesmo tempo, continuei participando na Sociedade. O Sedes foi para mim esse lugar acolhedor, o lugar do conhecido, enquanto na Sociedade a sensação predominante era de estranhamento. Claro que ia encontrando também ali excelentes interlocutores com os quais tinha afi nidade.

PERCURSO: Você deu aula no curso de Psicanálise durante vários anos. Tinha algum tópico preferido?
L.C.M.: Dei seminários e supervisões por mais de dez anos. Não tinha temas preferidos. Eu estava numa fase em que dar seminários era uma maneira de estudar, de aprender – e continuo, mas agora já tendendo mais para as escolhas temáticas. Muitas vezes era um texto que eu já tinha lido, mas com um autor como Freud – e o Sedes era basicamente Freud – não é em uma vez nem em duas que esgotamos o proveito que podemos tirar dele.

Minha atividade de dar seminário no Sedes, as discussões das quais participava, os trabalhos que escrevia, tinham para mim o sentido de ser o meio pelo qual eu estudava, sempre em torno de uma questão que me deixava perplexo e à qual eu precisava responder: o que é isso, a Psicanálise? Sentia a necessidade de responder a esta pergunta: era uma coisa íntima, minha – poder formular o que era a prática psicanalítica. Pouco a pouco fui conseguindo; hoje consigo falar sobre o assunto com alguma versatilidade, mas durante muito tempo foi causa de perplexidades.

Outro desafio passava pelos seminários do Sedes: a questão da diversidade das escolas. Nessa época essa questão se colocava de maneira muito aguda, não só para o movimento psicanalítico, mas para mim pessoalmente. Por que faço assim e não de outra maneira? E o que o outro faz, como é? Começou a haver diálogo entre as escolas. Participamos de algumas mesas-redondas juntos Renato Mezan e eu; era freqüente se fazer mesas-redondas com kleinianos, franco-freudianos (psicanalistas de formação francesa), bionianos, lacanianos. Nesse diálogo, eu tinha que poder me situar e dar conta da primeira questão: o que é a Psicanálise? E também de uma outra, derivada: conseguir cotejar o que eu fazia com o pensamento do outro, que pensa com outra linguagem, com outras categorias, e com outras modalidades de prática. Então, o Sedes foi extremamente importante para mim: foi o lugar principal para isso, durante um bom período. Se bem que é um trabalho que continua sempre... A minha relação com o Sedes também. No momento está em banhomaria, porque estou muito atarefado na Sociedade.

PERCURSO: Você esteve na origem de algo que infl uenciou muitos analistas aqui de São Paulo: as visitas de Pierre Fédida. Na verdade, você foi o catalisador daquela société de gens de lettres que, como os subscritores da Enciclopédia, se cotizaram para cobrir o custo daqueles eventos. Poderia nos falar um pouco sobre isso?
L.C.M.: Vamos então voltar um pouco na história. Tendo chegado aqui, eu temia fi car órfão: conhecia muito pouca gente – Renato Mezan, um pouco a D. Lygia Amaral, Miriam Chnaiderman. Mas eu não conhecia ninguém aqui; o único amigo que eu tinha em São Paulo era Renato Mezan, que aliás me acolheu de maneira muito calorosa. Minha idéia era ir para o Rio de Janeiro, onde estavam todos os meus amigos de Paris. Vários deles eram colegas pernambucanos que tinham fi cado muitos anos em Paris; por vezes, tínhamos trabalhado juntos lá e eles tinham uma formação semelhante à minha. O mais próximo é o Fernando Rocha, mas tinha também a Anna Maria Amaral, que depois veio para São Paulo, o Fernando Coutinho, a Zélia (não lembro agora o sobrenome), o Jurandir Freire Costa, e mais alguns. Lá, a expectativa é de que estaria em casa.

São Paulo me parecia um lugar muito árido na medida em que a Psicanálise, tal como eu a conhecia, não estava muito presente aqui no início dos anos oitenta. Houve desde então uma transformação muito grande: foi ocorrendo uma aproximação com aquela Psicanálise que me era familiar na França. Eu tinha medo de fi car aqui, de viver uma certa orfandade, um certo isolamento. Mas, por circunstâncias pessoais, acabei fi cando: e como Maomé não vai à montanha, a montanha tinha de vir a Maomé... Foi assim que me empenhei pela vinda do Fédida; era algo de que eu precisava. O Pontalis não tinha jeito, ninguém o afasta de Paris e de sua rue du Bac (endereço de sua residência, consultório e da editora Gallimard, onde trabalha também).

Poucos anos depois de chegar em S. Paulo, tive a ocasião de passar um período em Paris, em que retomei a minha análise e reencontrei Pierre Fédida, com quem havia feito antes uns três anos de seminário, na APF. Eu nunca tive com ele uma relação de fascínio como se tem por “um mestre”; ele era mais um analista que sempre me estimulou, me desestabilizou, nas minhas maneiras de pensar o meu trabalho e meus casos. Do ponto de vista formal, na APF ele era aluno como eu; claro que uma pessoa muito conhecida, com grande produção e presença intelectual. Aproveitei este período, em 1986, para fazer supervisão com ele.

Um dia me perguntou sobre as repercussões de uma conferência que tinha feito em São Paulo algum tempo antes. Fui categórico: “nenhuma! Conferência não deixa efeito nenhum. Para fazer algo que deixa marcas, é necessário um trabalho regular com um grupo de analistas”. Ao pontifi car assim é claro que eu estava puxando a brasa para o meu assado: era o que eu queria. Prossegui lhe dizendo que interessante seria se ele viesse para São Paulo e fi casse por exemplo um mês trabalhando com um grupo. Claro que era o meu desejo; Deus quis que fosse o dele também, e ele aceitou.

Fomos montando um programa para executar nosso plano. Fédida acabou fi cando aqui, no ano seguinte, por quase um mês, trabalhando intensivamente com um único grupo de trinta pessoas. O grupo era trans-institucional: eram simplesmente pessoas interessadas em trabalhar com Fédida e que bancaram fi nanceiramente a vinda dele. Durante a estada do Fédida trabalhávamos intensivamente com ele, cada reunião durava três horas. Havia apresentação de material clínico, seguida de discussão; as conversas iam se desdobrando em refl exões sobre a clínica analítica, num trabalho extremamente produtivo, bastante singular. Ele deu também seminários temáticos, e umas duas conferências para o grande público. Esse trabalho teve continuidade: a cada dois ou três anos, Fédida voltava.

Por coincidência, enquanto trabalhávamos na organização dessa primeira visita, Manoel Berlinck e Cristina Magalhães estavam procurando uma casa para criar a Livraria Pulsional. Tudo deu certo e a inauguração da Livraria Pulsional coincidiu com a vinda de Fédida, o que foi bom para eles e para nós: achamos um bom local, e para a Pulsional foi uma inauguração com chave de ouro. Felizmente, como outros, Manoel e Cristina também se deram bem com o Fédida, e depois disso a parte administrativa das visitas fi cou mais com eles. O fato é que esse trabalho foi tendo continuidade, nem sempre por um período tão longo, mas sempre dentro desse espírito de fi car um bom tempo com um mesmo grupo e trabalhar bastante a clínica. As marcas fi caram. Uma nova vinda estava sendo organizada quando Fédida faleceu.

Eu procurava fazer com que Fédida fosse também à Sociedade para dar seminários clínicos e palestras. Em uma das vindas dele, um dos presidentes, a Ana Maria Azevedo, empenhou-se com muita energia para que Fédida desse uma conferência na Sociedade. Afora isso, o empenho para que ele fizesse algo lá sempre foi meu.

Essas vindas dele foram importantes para mim. Eu era o que Lacan chamaria, com seu humor irreverente, um petit soulier, um pequeno chinelo: relativamente novato e tendo de se haver com muita diferença, encontrava-me em posição favorável a um estado de espírito perseguido que facilmente vira dogmatismo. Um efeito que a vinda de Fédida tinha sobre mim, além de todo o enriquecimento que trazia, era o de quebrar as minhas crostas de dogmatismo.

Lembro-me, de um episódio na Sociedade, uma supervisão de um colega que tinha feito análise com Bion. Eu estava traduzindo. Na véspera, Fédida tinha feito um seminário temático brilhante sobre os grandes eixos do processo analítico, e o caso que estava sendo apresentado, a maneira como o analista conduzia a análise, a meu ver ia de encontro a tudo que ele tinha desenvolvido na véspera com tanto brio. Eu pensava comigo mesmo: “meu Deus, o que vai ser quando Fédida começar a falar? Ainda bem que estou só no papel de tradutor!” Era justamente o tipo de trabalho clínico que causava tanta estranheza em mim, e eu imaginava: “agora, eles vão ver a lição que ele vai dar!” Essa é a posição pueril que o punha, neste caso, como mestre.

Para minha surpresa, Fédida foi estimulando as pessoas a falar, ligando uma coisa com a outra, dialogando com o apresentador, juntando pedaços, e no fi m o trabalho do analista apareceu como muito bonito e muito efetivo. Quando saímos dali, eu estava perplexo; fui levar Fédida para o hotel e almocei com ele. Estava no limite da irritação, e fi nalmente lhe disse: “Mas como! Você faz uma palestra dando as diretrizes do processo analítico, e alguém apresenta um material clínico completamente contrário... Você estava fazendo média, ou o quê?” Foi o que perguntei, bem assim mesmo, à queima-roupa. E ele me respondeu, mais à queimaroupa ainda, num tom bravo: “Menezes, só o que faltava você querer que eu seja dogmático em relação a mim mesmo!”

No caso, ele desautorizava o dogmatismo que estava sendo construído ali, em nome do próprio Fédida. Aquele mesmo que me havia infl uenciado me desautorizava, e dessa maneira desmontava, desencorajava qualquer possibilidade de dogmatismo em nome dele. Isso acontecia com Fédida, mas também com Pontalis e com outros: esses que tiveram de enfrentar na carne o dogmatismo lacaniano – eram todos ex-discípulos de Lacan. Fédida tinha uma posição um pouco especial, mas os outros todos tiveram de enfrentar este desafi o.

Pontalis me confidenciou algumas vezes sua dificuldade para se tornar psicanalista, para achar uma maneira própria de pensar, de falar, de trabalhar, de achar o seu próprio estilo, estando perto de um homem da envergadura de Lacan, com o poder de pensamento e com a vontade de dominar dele. Lembro um dia, numa supervisão com Pontalis, mas ele não estava falando comigo naquele momento; com um gesto de balançar a cabeça, dizia: “talvez seja um traço neurótico meu, não sei, mas perto dele (Lacan) eu não conseguia pensar.” Quando vemos, nos Seminários I e II, as intervenções de Pontalis... Se aquilo é não pensar, já fi co com inveja, porque ele se mostra por vezes bastante crítico nessas intervenções, e sustenta uma argumentação fi rme dirigindose a Lacan e questionando algum rumo do seminário! Fédida também me fez confi dências sobre o quanto foi difícil para eles poder existir como analistas singulares, cada um com seu modo próprio e com seus interesses próprios, perto de um espírito tão forte e de um pensamento tão poderoso, que os infl uenciou tanto, como o de Jacques Lacan.

PERCURSO: Durante os anos cinqüenta e sessenta, formou-se em Paris uma geração das mais brilhantes que a Psicanálise já conheceu. Nessa época, ela passou a ter o mesmo nível de sofi sticação teórica que a fi losofi a ou as ciências sociais francesas. Isso tem a ver com o embate com Lacan, com esse esforço para ao mesmo tempo absorver o que ele trazia e se diferenciar dele – o que, como você está dizendo, doeu muito mas acabou acontecendo. Ora, Melanie Klein tinha também uma estatura semelhante em termos de sagacidade, de inteligência, de profundidade analítica; mas à sua volta não aconteceu nada semelhante ao que aconteceu na França. Formou-se um grupo extremamente compacto, no qual os membros individuais tiveram relativamente muito menos originalidade do que os franceses que se chamuscaram com o fogo de Lacan. Você tem alguma idéia de por que isso aconteceu? Por que diante de líderes intelectuais e emocionais de envergadura semelhante, como Melanie Klein e Lacan, cada grupo de discípulos teve trajetórias tão diversas?
L.C.M.: Nunca parei para pensar nisso. De fato, em torno de Melanie Klein se criou uma espécie de carapaça. A imagem que me vem é daquela formação militar romana que vemos nos fi lmes: estão todos com os escudos em cima da cabeça, dos lados, uma coisa compacta. É uma formação bélica, defensiva, que se protege contra as fl echas do inimigo até se tornar invulnerável. Melanie Klein não foi pouca coisa! Ela estava desafi ando nada mais nada menos do que Freud. E os que desafi aram Freud se deram mal, é o mínimo que se pode dizer. É uma simplifi cação dizer que é porque Freud os esmagava, como Jung escreveu numa carta para ele.

A palavra que me veio, ouvindo essa pergunta, foi vitimologia ou vítima. Melanie Klein era uma vítima potencial. Nos meados da década de vinte, Karl Abraham tinha acabado de morrer, e ela era protegida dele; e foi quase recolhida na Inglaterra, fugindo do “fascismo”, do “autoritarismo do pai da Horda”. Na verdade, o grande peso é a obra, simplesmente formidável, de Freud. Mas, ela é salva numa Inglaterra que já está vivamente interessada por problemáticas pré-genitais, toda preparada para receber Melanie Klein e para os desenvolvimentos que rapidamente foram tomando corpo em suas mãos. Ela caiu ali como uma luva, em oposição ao que Jones chamava, com sua habilidade política, a “escola de Viena”, o que implicava que estava se constituindo uma “escola de Londres”. Ora, a escola de Viena era nada menos do que o gigante Freud: se Lacan já era um gigante, imagine Freud – é incomensurável. E foi com este gigante que Klein se bateu. Não é de admirar que o grupo formado à sua volta tenha se estruturado como uma legião romana: precisavam se defender, e o fi zeram.

Já com Lacan foi diferente. Ele se apoiou em Freud, queria resgatar o espírito original da Psicanálise, de sua obra, que julgava ter se perdido nos formalismos da IPA. Ele não foi contra, não tinha que lutar com o gigante, ele se apoiava nos ombros dele. Seus adversários eram poderosos, era a IPA, a América, mas Lacan tinha do seu lado o maior trunfo de todos, que reivindicava como seu: Freud. Talvez por isso o grupo que se formou ao seu redor fosse mais ofensivo e menos defensivo, menos compacto, com identifi cações mais complexas – seu ideal era Lacan, mas também, e por cima de Lacan, Freud, sua obra. Mas isso é só uma hipótese. Quem sabe Renato Mezan, que anda estudando essas questões de história da Psicanálise, possa um dia nos esclarecer mais a esse respeito.

PERCURSO: Até agora falamos de você como fi gura pública, como professor, debatedor e catalisador no contexto analítico de São Paulo. Mas, ao longo destes trinta anos de prática, certamente alguns interesses e temas atraíram você mais do que outros. Por exemplo, você escreveu sobre a agressividade e o ódio na vida psíquica.
L.C.M.: Uma coisa me chamou a atenção na leitura de Freud: ao introduzir, dentro do trabalho com as psicoses, a problemática do narcisismo, no miolo dessa problemática ele encontra uma tensão, um campo minado que pode explodir a todo momento. O Eu, em suas camadas mais arcaicas, mais fundamentais, se constitui na “indiferença ou no ódio do outro” e “no amor de si”. O Eu e o outro (o semelhante) estão inextrincavelmente imbricados numa relação de intensa ambivalência, o miolo do narcisismo comportando uma violência destrutiva potencial ilimitada. O objeto é constituído no ódio, segundo a concepção freudiana formulada em “Pulsões e seus Destinos”. Essa é a questão da suscetibilidade, que talvez me toque em especial, porque eu sou uma pessoa suscetível. Há pessoas mais suscetíveis, outras menos. Mas todas são muito suscetíveis.

Vemos isso quando se toca em qualquer coisa que diga respeito ao amor próprio, ou ao amor por aquilo que o sujeito considere como próprio, como uma instituição, uma causa, uma idéia. Alguém se sente muito envolvido com o PT – para ele, o PT passa a ser uma coisa própria. Às vezes até uma idéia – com freqüência as pessoas se matam, e passarão a vida se matando, por idéias. Na Psicanálise, eu dizia que um dos meus problemas é justamente poder fazer face ao dogmatismo, à desqualifi cação que no fundo fazia do pensamento e da prática do outro, em favor daquela que tinham me ensinado e da qual me havia apropriado.

Vejo isso presente o tempo todo, na experiência cotidiana de cada instante, e é algo que tem uma importância enorme na clínica. Não é por acaso que essa questão surge, na elaboração psicanalítica, em torno das questões da psicose, na qual a relação com o outro é levada ao extremo da repulsão, da violência, ou em amores passionais, na forma da paranóia, em que o próprio amor se torna mortífero. Aqui entramos na problemática dos ideais, tão central em qualquer refl exão, não só sobre os fatos sociais, mas também sobre os fatos humanos individuais. Na medida em que se separa amor e ódio, em seguida temos de colocálos em tensão, como faz Freud. O ideal é aquilo que vem de fora, diz Freud, que é produzido socialmente, que existia antes do sujeito: foi produzido historicamente ali onde o sujeito nasceu, naquela família, naquele meio, naquela comunidade. Isso é passado para o sujeito, e se transforma em valores, em organizadores do sujeito, de maneira a possibilitar o convívio e a inserção social. Se não operar de acordo com os valores partilhados pelo grupo cultural, os ideais, ele vai ser um pária, vai ser rejeitado.

Estou falando dos ideais porque eles são uma modalidade do narcisismo, na concepção de Freud, são uma transformação do narcisismo, passando pelo complexo de Édipo. Os ideais podem facilmente se infl ar, como podem se atrofi ar. Freud diz que existe uma aspiração constante a voltar ao narcisismo primário, à megalomania; é uma condição psicótica em que o sujeito se supõe único, o centro do universo, o ser que conta, o ser mais importante. O ideal tem a função de permitir a integração do sujeito no grupo, de possibilitar que ele circule no grupo e tenha o seu modo próprio de existir; mas também pode operar no sentido contrário – aquilo que falávamos antes na relação dos discípulos com Lacan, por exemplo. Havia um risco muito palpável de a pessoa se assimilar, se amalgamar – como se diferenciar? O ideal pode operar no sentido da diferenciação, mas também no fracasso desse amálgama. Nesse momento, Lacan passa a encarnar o ideal, e o sujeito adere, se massifi ca nele. Ou seja, o ideal é ao mesmo tempo o terreno da massifi cação, em que o sujeito se de-singulariza, perde a individualidade, sua margem de originalidade. Como diz Freud, o ser humano é essencialmente um ser de massa, e excepcionalmente, muito tardiamente, começou a se tornar, por vezes, original.

Essa questão tem realmente me interessado em várias direções. Prosseguindo na direção em que estávamos, há que pensar o político, levando em conta a tensão entre a massifi cação e o ato lúcido, livre, “o milagre” no dizer de Hannah Arendt em Sobre o que é a Política. Falando das teorias políticas clássicas, ela afi rma que falta nelas a noção do milagre como acontecimento imprevisível. Uma imagem alegórica da resistência à massifi cação totalitária é a que todos vimos de um homem que se põe diante dos tanques, no momento em que eles avançavam para reprimir a rebelião na Praça da Paz Celestial, na China. Aquele homem, de repente, faz algo imprevisível: o tanque tenta desviar, e ele se movimenta também impedindo-o de avançar. O que pode levar um homem, em dado momento, a vencer o que Freud chama de “a proibição de pensar”, a se destacar do espírito de rebanho, a se tornar o primeiro “poeta épico”, para me referir à Psicologia das Massas? Essa questão me interessa muito.

Volto, aí, ao texto que apresentei recentemente no congresso de Brasília, um texto sobre o poder que gira em torno dessa questão. Chama-se “Aderência, Adesão e Lucidez”. Adesão ficando na ambigüidade, com um pé na aderência e com um pé na lucidez.

PERCURSO: Você está voltando ao seu velho amor, a política?
L.C.M.: Ao meu velho amor pela lucidez. Mas o ato lúcido não é o ato positivo do positivismo científi co; é o ato de se demarcar do rebanho, de ter a ousadia de não ser conforme. É uma questão que mantém toda a sua importância na atualidade. Esse texto faz aproximações entre Freud, Hannah Arendt e Nietzsche, o filósofo que reafi rma a necessidade de ser “leão”, figura da coragem para desafi ar “o dragão do conformismo” (imagens de uma passagem do Zaratustra).

Não é um interesse diletante por uma questão social: certamente tem a ver comigo, porque sempre somos agarrados por uma questão que tem a ver conosco, com nossa própria análise. Mas, o leitor poderá facilmente perceber a importância da lucidez no ato analítico. Aqui tocamos na essência do insight, daquilo que Lacan chama de palavra plena, de verdade do inconsciente. Não estou falando de uma verdade no sentido objetivo, mas da verdade do desejo, referido a marcas mnésicas, da experiência vivida no sujeito que ali se reconhece. É uma verdade visceral, literalmente visceral, do sujeito.

É ao encontrar essas marcas que “se encontra” em toda a sua singularidade. A Psicanálise visa a isso, à afi rmação dessa lucidez contra o muro das palavras (Lacan) – as imagens ou os clichês, as idéias feitas, os psicologismos compreensivos e razoáveis de todos os tipos, com os quais o sujeito tende não à lucidez, mas a uma re-massifi cação “psi” adocicada, auto-complacente. A análise é o trabalho de atravessar isso tudo, e de chegar ao ponto preciso onde o sujeito encontra as reverberações do desejo inconsciente.

No final da Interpretação dos Sonhos, Freud diz que esta é única coisa que, no psiquismo, tem o mesmo peso que a realidade material. O desejo inconsciente apresenta- se como um conceito, como uma inferência hipotética, nunca passível de ser racionalmente explicada, mas é da ordem de um desejo, o que, para Freud, está estreitamente ligado à experiência visceral com o outro, com o corpo do outro, desde a condição de desamparo.

Esse momento prototípico do desamparo já está no Projeto. Há um outro que está a par. Estar a par quer dizer: apto a compreender aquela agitação do bebê (do outro) e dar a ela um sentido, uma resposta adequada. É então que nasce “a compreensão mútua”, e o grito se transforma em linguagem, a carne se transforma em humano. A temática da lucidez, ou seja, de poder sair, ainda que precariamente, da massifi cação e da carne, para encontrar o humano na singularidade do sujeito afi rmativo, está a meu ver no centro do ato analítico e da experiência analítica. É seu ponto de fuga.

PERCURSO: Isso nos leva a uma última questão. Nessa concepção de ato analítico e da própria Psicanálise, faz sentido falar de uma “clínica contemporânea”, diferente da dos tempos de Freud?
L.C.M.:Talvez seja uma questão de evolução das concepções. A patologia borderline vem desde Helen Deutsch, nos anos quarenta; Ferenczi já trabalhava com pacientes bastante perturbados nos anos vinte, em seguida Balint e Winnicott. Outros psicanalistas, já depois da Primeira Guerra, também trabalhavam com pacientes muito doentes. Há temas como a clínica do vazio que se considera como novos e que já eram amplamente tratados há décadas.

Penso numa sessão que tive agora há pouco, a última sessão do dia. O paciente me dizia que a cabeça dele “ficava cheia”, e dava para ver a sua agitação. Hoje, por exemplo, ocorreram várias coisas; ele me conta sobre três coisas que aconteceram, imprevistas. Ele acabou resolvendo as três situações, mas disse que a sua cabeça “fi cou cheia”. Como chegara quarenta minutos antes para a sua sessão, conseguiu chorar na sala de espera, e aí achou que a cabeça “esvaziou um pouco”. Como não pensar nas teorizações de Bion e de Piera Aulagnier, nas quais é dada ênfase à criação de um espaço psíquico, de uma área onde o sujeito consiga acomodar a sua atividade de pensamento ?

Assim, a cabeça ficava cheia, mas tinha se esvaziado. Mesmo assim o paciente estava pressionado em resolver na hora uma coisa com a qual só teria de se haver em três semanas, mostrando uma visível agitação ansiosa. O que estava em primeiro plano ali era o estado de urgência em que se encontrava, “como se o chão fosse se abrir diante dele” e não o assunto em questão. E nisso ele diz, em meio à sua fala agitada, uma palavra que estou tentando lembrar agora, mas não sei se vou conseguir, uma palavra incomum. Tinha o sentido de “alguém que se tornasse totalmente dispensável, descartável” – não foi bem esta, mas vamos fi car com ela – que colocou para mim imediatamente em movimento a idéia da exclusão, a mesma que eu disse ter demorado para entender, quando contava da conversa com o Junqueira, há vinte anos. Este luxo de poder demorar, ele não tinha naquele momento.

Mesmo assim destaquei o que tinha dito e que remetia à idéia de ser descartável. O medo dele dizia respeito a uma viagem que vai fazer com a namorada, dentro de três semanas, e para a qual, no dia, vai encontrar-se com ela no aeroporto, pois ela estará vindo de outra cidade. Um dos seus medos, que ele sabe enquanto fala, desesperado, ser injustifi cado na realidade, é de se desencontrar dela.

Ele não tem lugar em si mesmo, não tem chão, só há o agora. Sendo descartável, o outro pode abortá-lo, a namorada não encontrá- lo no ponto de encontro previsto; a sustentação que a capacidade de pensar oferece está ameaçada, abortada a cada instante nesta sessão. É invadido por este estado com freqüência. Por exemplo, se está trabalhando e o chefe fala uma coisinha com ele, desestrutura- se porque “não tem lugar”. Seguramente alguma coisa aqui está estruturalmente próxima da patologia do pânico, embora este homem não tenha crises do pânico. Mas essa arquitetetura articula-se em uma palavra signifi cativa, e que para mim abre para a problemática nuclear do narcisismo ali em jogo, e que não é uma referência recente.

Tornou-se quase ritual, de algum tempo para cá, falar no “contemporâneo”. Não se organiza uma mesa-redonda ou colóquio, não se escreve um livro, sem incluir a palavra contemporâneo ou na atualidade. Se é sobre a transferência, tem-se de escrever a transferência hoje; a sexualidade hoje; repetir, rememorar, elaborar hoje; ou a sexualidade na contemporaneidade. Algum tempo atrás isso não ocorria, e, no entanto, também existia um “hoje”. Isso me intriga. Não tenho uma resposta, mas me intriga como um sintoma do momento, uma angústia que seguramente aponta para algo interessante: tem de haver o hoje, tem de haver o agora, e a insistência inflacionada sobre as novas patologias. Parece que nada mais é como antes, como se o tecido mnésico da cultura estivesse muito esgarçado, sendo de pouco socorro. Parece que estamos, como eu dizia há pouco da sessão, sem chão para pisar.

Esta insistência é um tanto sintomática e a não ser que o meu consultório seja atípico, nele eu encontro histeria, problemática obsessiva, eu não me vejo em condições de poder dispensar as referências clássicas. Talvez na cultura atual haja uma perplexidade, quem sabe o colapso das utopias religiosas, políticas e científi cas herdadas do século XX, e até do XIX. Já não se tem o mesmo entusiasmo, e de repente há uma perplexidade em relação a isso, cujos motivos me escapam. Dá para perceber que há um sintoma aí – mas do quê, não sei.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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