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Resumo
O abuso sexual contra crianças representa uma verdadeira catástrofe em suas vidas. Aqui, algumas reflexões sobre como ela se manifesta, tanto estatisticamente quanto do ponto de vista da clínica psicanalítica.


Autor(es)
Lúcia Barbero Fuks
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1. F. C. Ferraz, Perversão, coleção “Clínica Psicanalítica”, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000.

2. Idem, p 17.

3. R. B. Gartner, Betrayed as Boys, Psychodynamic Treatment of Sexually Abused Men, Nova York, The Guilford Press, 1999.

4. L. B. Fuks, “Abuso sexual de crianças na família. Refl exões psicanalíticas”, in Percurso, n. 20, p. 120- 126, 1998.

5. Idem, p.122.

6. S. Velazquez, Violências cotidianas, violência de gênero. Buenos Aires, Paidós, 2003.

7. D. Gilmore, Hacerse Hombre. Concepciones Culturales de la Masculinidad. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós; 1994.

8. S. Bleichmar, “Traumatismo y simbolizaciones: los modos del sufrimiento infantil”, Seminarios: Clase dictada el 3 de abril de 2000, www.silviableichmar. com./framesilvia.htm.

9. S. Freud, “Projeto de uma psicologia científica” (1895), p. 323, vol. 1, in Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu, 2. ed., 1986.

10. S. Freud, “O Fetichismo” (1927), op cit., vol. XXI, p.141-152.

11. L. B. Fuks, “A insistência do traumático”. in L. B. Fuks, F. Ferraz, (orgs.). A clínica conta histórias. São Paulo, Escuta, Tema IV, cap. 7, p. 121-122, 2000.

12. L. B. Fuks, “Abuso sexual de...”, p.123.



Abstract
Sexual abuse is a veritable catastrophe in the life of a child. Many of the victims know their aggressor, who is often a member of the family. Defenses against the feelings of helplessness and anxiety that arise from brutal desidealization of an internal object include the creation of veritable mental “crypts”. The representations clustering around the abuse can become walled in these crypts, making impossible any further elaboration except by means of a thorough analysis.

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 TEXTO

Conseqüências do abuso sexual infantil

Consequences of sexual abuse in children
Lúcia Barbero Fuks


O abuso sexual infantil se confi gura como um fenômeno complexo que exige uma estratégia de abordagem multidisciplinar no curso da qual são diversas as questões que se tornarão prementes. A transmissão de informação, por exemplo, imprescindível para a construção e desenvolvimento de um campo de pesquisa integrado, exige a superação de múltiplas dificuldades. Contudo, essa superação não depende apenas do uso de diferentes linguagens ou modelos e procedimentos. Há obstáculos relativos à própria natureza do tema em questão. A descoberta de um caso de abuso provoca reações fortemente emocionais na família da criança, mas também nos profi ssionais intervenientes. Incide sobre um conjunto de valorações, idéias e sentimentos a respeito da família, a sexualidade e a criança que nos são caras.

Que a possibilidade ou a suspeita de abuso pode levar a um ensurdecimento defensivo, no entorno imediato, de uma criança que está dando pequenos indícios da experiência que está atravessando, já é sabido. Entretanto, uma vez reconhecido e revelado o fato do abuso, as reações defensivas podem persistir, imperceptivelmente, nas dificuldades para compartilhar as informações, nos conflitos de opiniões sobre responsabilidades e culpas dos adultos envolvidos, na defi nição do que é prioritário nas intervenções a serem feitas. Assim, um risco dessa multiplicidade de abordagens e discursos sobre o abuso é levar a criança que o padece a ficar des-subjetivizada, passando a ser só uma vítima, não se compreendendo a importância de propiciar e acompanhar uma elaboração, por assim dizer, em primeira pessoa do singular.

O abuso sexual representa uma verdadeira catástrofe na vida de uma criança e produz uma devastação da estrutura psíquica que afeta seus distintos aspectos. É um tipo de violência diferente de outras. Implica uma vivência de solidão extrema e constitui uma situação limite para a sustentação do funcionamento psíquico, enquanto afeta o núcleo mais pessoal e básico de identidade: o corpo.

A sedução sexual difere de outras violências físicas porque está dirigida à satisfação sexual do sedutor e ao despertar de sensações sexuais na vítima. Mesmo sendo passiva fi sicamente, a criança participa psiquicamente na atividade sedutora por meio de desejos, afetos, fantasias, que podem facilitar, contrariar ou complicar a sedução propriamente dita.

Falar dos efeitos do abuso, imediatos ou de longo prazo, é falar justamente da ameaça de um bloqueio danoso dos processos de subjetivação, da impossibilidade para a criança, sem auxílio dos outros, de simbolizar o traumatismo experimentado. A experiência persiste longamente em seus efeitos e impede que a vítima possa reencontrar- se como sujeito. Temos de reconhecer que é uma irrupção trágica e real na vida dessas crianças, e que não é fácil, por diversos fatores, que possam falar disso. Assim sendo, um dos grandes desafi os para os profi ssionais da área, também comum a outros tipos de problema, é conseguir que esse traumatismo seja simbolizado.

Os psicanalistas têm trabalhado, em geral, com adultos que relatam experiências de abuso durante sua infância, possibilitando a difícil e trabalhosa re-elaboração, no contexto transferencial, das marcas deixadas pelo acontecimento. Mais adiante nos ocuparemos dos diversos aspectos desse processo. É importante apontar uma diferença fundamental observada nos casos em que, quando se trata de crianças, a intervenção opera sobre um abuso que está acontecendo, que está despertando suspeitas ou que acaba de ser revelado. Neste caso, não é sufi ciente a instauração do outro da transferência; esta pode até nem ser possível, a menos que se faça intervir um outro, aquele que represente formal e efetivamente a lei, que faça possível a palavra a partir da denúncia e que possa exercer o poder de interferir sobre o real da situação de abuso. O conhecimento psicanalítico pode realizar, por isso, avanços signifi cativos com base nos desafi os teóricos e clínicos resultantes da presença dos analistas em campo, como parte de equipes multiprofi ssionais e interdisciplinares montadas especialmente para essa fi nalidade.

O delito em números

Para a OMS o abuso sexual em crianças implica que estas sejam vítimas de um adulto ou de uma pessoa com uma diferença signifi - cativa de idade, com a fi nalidade da satisfação sexual do agressor.

O delito de abuso pode assumir diferentes formas: ligações telefônicas obscenas, apresentação de imagens pornográfi cas, ofensas ao pudor, contatos sexuais físicos ou simplesmente tentativas de concretizá- los, violação, incesto ou prostituição do menor. É um problema, em suas diversas modalidades, mais freqüente do que pensamos. As estatísticas demonstram que 25% das mulheres e 12% dos homens sofreram abuso sexual antes dos 17 anos.

Os abusadores são, na sua grande maioria, homens, e em geral amigos ou parentes da criança vitimizada; quase 75% das vítimas femininas conhecem o agressor, dos quais quase a metade pertence à família. Isso permite entender por que tão poucas crianças falam, uma vez que têm também motivos bastante pragmáticos para não fazê-lo: existe, por exemplo, o temor de serem castigadas pelos pais ou de sofrerem represálias daqueles que estão próximos. Veremos, no decorrer deste trabalho, que certas formas de omissão ou de silêncio podem vir a corroborar esse temor.

O abuso como perversão

Todos os atos sexuais entre crianças e pessoas que tenham poder sobre elas são sexualmente abusivos. Embora os abusadores se defendam com a “anuência” da criança, esta não tem a capacidade de dar consentimento informado às atividades sexuais com adultos.

Alguns analistas, principalmente na França, designam como perversão “o tipo de prática em que se força alguém a manter uma relação contra sua própria vontade, como nos casos de abuso sexual ou em que se escolhe um objeto incapaz de decidir por si mesmo, como no caso da pedofi lia”. [1]

Quando examinamos a forma como a tradição psicanalítica passou a compreender o sentido da palavra perversão, vemos que é possível encará-la como designação de uma estrutura psíquica particular não necessariamente ligada à perversidade manifesta, mas também muitas vezes – por que não dizê-lo? – caracterizada por uma relação com os objetos na qual estes são manipulados de modo a serem usados, na pior das acepções do termo.” [2]

O abuso sexual infantil entra na categoria de perversão no sentido amplo, isto é, a apropriação do corpo infantil do outro para obter prazer. Se esse abuso é, ainda mais, incestuoso, a transgressão é dupla, porque a ele se acrescenta a transgressão da proibição social de intercâmbios sexuais entre gerações de uma mesma família.

A relação de abuso

A relação de abuso é a imposição de um ato violento frente ao qual a condição de sujeito do outro fi ca suspensa ou abolida, e em que não existe a possibilidade de negativa imediata do ato. No abuso de crianças o agravante é que a violência é exercida por um adulto, representante do poder e portador dos emblemas da cultura.

Gartner [3], em sua investigação sobre o abuso sexual em meninos, utiliza o conceito de “traição sexual”, que para ele é mais abrangente que os termos de “abuso sexual”, “incesto” ou “trauma sexual”. Dizer traição, assim como dizer abuso ou incesto, é usar conceitos referentes a relações interpessoais. O trauma refere-se ao efeito da traição na subjetividade da vítima. O autor considera que a traição é uma violação de confi ança implícita ou explícita. Na traição, todo laço aparentemente sólido se altera, sendo introduzida a aleivosia nas relações mais pessoais e privadas. Trata-se de uma relação íntima traída, cuja forma mais extrema seria a violação no sentido de violentação física.

O abuso acrescenta a exploração a uma relação de poder previamente existente que procura a satisfação das necessidades próprias do abusador, a pessoa que ocupa o lugar dominante, sem consideração das necessidades que possa ter o abusado.

Quando assumem sua responsabilidade, os próprios abusadores costumam afi rmar que eram motivados pela insegurança e uma conseqüente necessidade de poder, por uma incapacidade para aliviar-se de outro modo que não envolvesse agressão sexual, e ainda por uma urgência interna de ter contato interpessoal, embora de forma distorcida.

Como essa violência interpessoal constitui uma transgressão, menos ou mais consciente, das normas que regulam a função disciplinadora do adulto, o ator do abuso exige que a vítima seja “cúmplice” em um “pacto de silêncio”. A criança, dessa forma, encontra-se numa situação de patente ambivalência: por um lado, em parte, sente-se seduzida por compartilhar um segredo com um adulto importante em sua vida; por outro, sente-se coagida pelo medo do castigo que poderá receber da mãe, ou do desgosto que poderá causar.

Abuso e incesto

O incesto é uma forma ainda mais catastrófi ca do abuso sexual, tendo conseqüências de longo alcance, mais marcantes do que as provenientes de casos de abuso sexual extrafamiliar. Isso se justifica pelo fato de se produzir cronicamente, no contexto de um sistema familiar que de alguma forma o apóia. A situação incestuosa confi - gura-se como uma trágica arapuca sem chances de escapatória.

Temos descrito o pai perverso, nos casos de incesto, como alguém que não tem condições de se representar as representações do outro, ou seja, de reconhecer suas emoções e pensamentos. “Ele percebe apenas seu próprio mundo mental e é de um modo genuinamente sincero que goza com sua fi lha ou filho: sem nenhuma representação das perturbações que possam ser infl igidas à criança. Funciona em uma espécie de ‘recusa às avessas’ (perversa) da sexualidade infantil.” [4] Pode comportar-se em muitos aspectos de sua vida de forma pacata e até moralista, sem que isso o impeça de utilizar o poder paterno para transformar a intimidade de sua família num reduto reservado à realização impune de um ideal sexual onipotente e narcísico. Torna- se, assim, “capaz de ultrapassar o tabu fundamental da cultura e fundante do desejo humano, para ter acesso a um gozo de caráter absoluto, e goza, em sua faceta de sedutor, do poder de escolher a quem iniciar, a quem conceder o privilégio narcísico de acesso a um prazer erótico prematuro e proibido”. [5]

Em relação ao silêncio que se instala e se sustenta em relação ao fato, é importante a diferença entre abuso e incesto. O silêncio – dependente de um determinismo complexo – é mais freqüente nas situações de incesto, em que o vínculo entre abusador e vítima facilita a “coerção amorosa”: “eu sei que você gostou, mas é algo que deve fi car entre nós”.

A criança é levada, assim, a fantasiar que foi ela quem provocou a situação, e o pai-abusador consegue tirar proveito, também, da necessidade da vítima de elaborar uma explicação possível presente invariavelmente, como veremos, nas situações traumáticas.

Por todos esses fatores, ao longo de todo o período em que o abuso se mantiver, essas crianças passarão por estados de solidão, impotência e culpa. Os danos, entretanto, não se atêm a esse presente. O abuso sexual infantil é um traumatismo que altera a história do sujeito, tendo efeitos variáveis mas sempre presentes no devir de sua existência e, dependendo do processamento da situação traumática, chegando a afetar, também, a geração seguinte. Acontecem fraturas na transmissão intergeracional devidas a conluios, omissões e mentiras, que condicionam a presença de áreas de vazio de referências ou de repetições inconscientes do acontecimento transgressivo. Acontecimento cuja página foi rasurada ou arrancada da história familiar justamente por meio do pacto de silêncio.

Alguns autores falam da presença, às vezes, de verdadeiras “criptas” intrapsíquicas em que jazem guardados os segredos que manchariam as imagens dos patriarcas familiares. Funcionam como fonte de mensagens que se exprimem como manifestações delirantes, atuações, somatizações, que afetam diversos membros da família. O filme dinamarquês Festa de família, o primeiro da série inspirada nos princípios do movimento cinematográfi co Dogma 95, mostra de forma dramática e perturbadora o que acontece quando começa a ficar exposto na família o que devia ficar escondido.

Abuso, traumatismo e subjetividade

O trabalho clínico com essas crianças, assim como com adultos com história de abuso sexual na infância, permite afi rmar que em todos eles o abuso adquiriu caráter traumático, ocasionando efeitos marcantes na subjetividade. A idéia de traumatismo está associada a acontecimentos da vida do sujeito que se caracterizam pela sua intensidade, pela incapacidade do sujeito de responder a eles adequadamente e pelas conseqüências patológicas. A idéia de situação traumática – em que o sujeito está imerso – enfatiza o papel de um real exterior que produzirá o impacto traumatizante. Nessa situação, sempre variável e complexa, terão relevância, nos casos de abuso, o outro, mas que sempre envolve outros, e o corpo. Além disso, a idéia de situação traumática implica, também, pondo agora o foco na interioridade, a possibilidade ou não, por parte do sujeito, de representá-la e pensá-la.

O abuso sexual infantil e o incesto implicam algo da ordem do sinistro, no sentido do que não pode ser representado e por isso mesmo resiste a ser colocado em palavras. A condição mesma de sujeito, a persistência ou vigência da subjetividade em si, fi ca ameaçada e fragilizada como efeito do abuso.

Nenhum sujeito que tenha padecido de abuso sexual infantil pode considerá-lo uma experiência ou um incidente de iguais características a outros ocorridos ao longo de sua vida. O traumatismo produzido no abuso de uma criança adquire um status singular que o diferencia de outros traumatismos de que podem padecer os seres humanos (luto, acidente etc.) Nos acidentes individuais ou nos traumatismos coletivos, ativam-se mecanismos intersubjetivos de identificação e solidariedade, que darão, da forma mais rápida possível, junto ao socorro físico e material, a proteção e o respaldo anímico necessários ao processo de elaboração subjetiva. O caso de abuso, por sua vez, transcorre ao longo do tempo num contexto de solidão e vergonha, sem acompanhamento, sem testemunhas ou com testemunhas silenciosas temerosas de um envolvimento que as prejudique.

Segundo Velázquez [6], as pessoas traumatizadas por situações de abuso – em sentido amplo – apresentam três tipos de sentimento:

1) O sentimento de desamparo. Ser amado e protegido é uma necessidade inerente à natureza humana. Sentir-se desamparado é a reação-protótipo para todas as situações vividas como traumáticas, dado que essa necessidade básica de proteção não se satisfez no momento de surgir um perigo real que deixou o sujeito em situação de impotência. Uma vez instalado esse sentimento, se não surgir a ajuda adequada, vão-se gerando outros sentimentos como o medo, a tristeza e o desassossego;

2) A sensação de estar em perigo permanente. Essa sensação provém do sentimento de desvalimento e se vincula com a magnitude do perigo, seja real ou imaginário. Acaba sendo muito difícil integrar na própria vida um fato para o qual não se estava preparado e que supera a capacidade de tolerância devido a seu caráter inesperado e desconhecido.

Valeria enfatizar, por nossa parte, o fator ligado à significação para o sujeito da quebra de confiança e à des-idealização das fi guras das quais cabe esperar proteção amorosa. Os sentimentos de desamparo e de estar em perigo permanente, que o autor descreve, podem ser incrementados pelo brusco desinvestimento de libido do outro idealizado, daquele que havia sido colocado no lugar do ideal do eu, seguindo a explicação dada por Freud para o pânico que desestrutura a massa quando perde seu líder, ou que põe em fuga desorganizada um exército quando corre o rumor de que “o general perdeu a cabeça”.

3) Sentir-se diferente dos outros. A lembrança, a re-atualização do abuso padecido atua de modo traumático, e seus efeitos se fazem sentir por longo tempo e em diferentes aspectos da vida. As crianças e mulheres abusadas acreditam, em geral, que são as únicas vítimas. Essa crença provoca sentimentos de humilhação, desprezo, perda de esperança e isolamento. Todos esses sentimentos são provocados pela dor e pela impotência frente à impossibilidade de transformar esse passado que deixou marcas no corpo, no psiquismo e na vida cotidiana.

No início, os atos que exercem os abusadores são sentidos como estímulos externos intrusivos, mas, em um segundo momento, surge uma resposta em forma de reação pulsional que não consegue discriminar- se dos estímulos. Trata-se de uma submissão corporal, uma cumplicidade forçada, a transgressão de normas, o desconcerto e a humilhação, induzindo, em conjunto, a uma vivência de confusão. Esse estado se caracteriza por uma percepção sem consciência, e por uma sensorialidade sem registro representacional. As vítimas parecem não se lembrar da aproximação abusiva e tentam se convencer de que não aconteceu. Essa negação afetará posteriormente o psiquismo, atingindo a possibilidade de registro do fato traumático, até o ponto de às vezes parecer que inexiste qualquer registro. Ligaremos mais adiante esses fenômenos intrapsíquicos ao mecanismo de recusa.

Essa falta de registro é encontrada com maior freqüência nas situações de incesto paterno-filial. Quando não há palavras para descrever, torna-se impossível simbolizar.

Em outras situações, as pacientes evocam as cenas do abuso sem o afeto correspondente. Seria um afastamento de suas próprias percepções, já que resulta impossível ligar o afeto experimentado com qualquer pensamento sobre o que foi vivenciado. Nesse desligamento afetivo, muitas vezes colabora a própria família, que, como vimos, também sustenta a negação dos fatos.

Para que o abuso fique inscrito no psiquismo como um fato traumático deve-se levar em conta uma série de fatores: as condições psicológicas em que se encontra o sujeito no momento do abuso, a possibilidade de integrar esses fatos a sua personalidade consciente, e o poder de pôr em funcionamento as defesas psíquicas que lhe permitam conviver com o trauma. Nas evoluções favoráveis, desenvolve- se um processo no qual o sujeito consegue se sobrepor ao sofrimento e à dor na medida em que pode se libertar da submissão às ordens do agressor e reagir às situações impostas pelo trauma. Ao seu modo, cada pessoa ressignifi - cará o acontecimento traumático, isto é, irá se desprendendo da lembrança penosa para transformá-la numa lembrança suscetível de ser considerada e verbalizada.

Conseqüências imediatas e tardias


Como conseqüências, tanto imediatas como tardias, do abuso sofrido, surgem a culpa, a ansiedade, a depressão, a vergonha e a baixa autoestima. Esta aparece na idéia de que o abuso foi merecido. Freqüentemente, os abusados são ativamente autodestrutivos, colocando-se em situações de risco ou apresentando atitudes suicidas concretas.

A longo prazo, podem surgir quadros de anorexia, bulimia, personalidade anti-social, problemas de conduta, perturbações do sono, pesadelos, terrores noturnos e tendência às adicções. Nos meninos, o abuso pode levar a uma crise sobre sua orientação sexual e identidade de gênero. As experiências de abuso em meninos apresentam diferenças em relação às sofridas por meninas, como veremos logo adiante. Em termos de freqüência, os agressores são predominantemente homossexuais e se confi rma um envolvimento menor de membros da família.

Em síntese, poderíamos dizer que as conseqüências mais abrangentes são a baixa auto-estima e um sentido ou percepção de ego danifi cado. Isso leva a pessoa a se sentir isolada e marginalizada. Surgem difi culdades de estabelecer limites nas relações interpessoais e de controlar os afetos. Em outros casos, o abuso impregna toda a vida do sujeito, atuando quase como organizador e usurpador do lugar principal entre os diversos acontecimentos de sua vida.

Quando o abusado é um homem


As expectativas que a sociedade coloca sobre os homens os levam a pensar que devem ter um grande controle sobre suas vidas e que isso os protegerá de serem abusados. Outras características outorgadas a priori são: menor emotividade, maior independência, forte competitividade e disponibilidade plena para os encontros sexuais no momento em que possam surgir. O homem de verdade deve engravidar a mulher, proteger quem depende dele e sustentar sua família, além de ser generoso. [7] O homem que não pode sustentar esse lugar esperado, ou que sofreu um abuso, fi ca fragilizado, sentindose atingido em sua auto-estima.

Como se pode observar, nossa cultura não abre muito espaço para o homem como vítima. Aqueles que viveram essa situação sentem- se feminizados, castrados, com vergonha e a sensação de terem deixado de pertencer ao gênero masculino. A vergonha está relacionada com o sentimento de que não foram capazes de deter o abuso, ou seja, um sentimento de impotência frente à situação vivida.

Assim, culpar-se do abuso permite sustentar a idéia de que tinham controle sobre o acontecido, preservando a masculinidade esperada socialmente e permitindo que mantenham, por outro lado, uma imagem idealizada dos adultos responsáveis por eles. Por isso, costumam afi rmar, mais facilmente que as mulheres, que eles queriam e sentiam prazer na atividade sexual.

A idéia de domínio sobre a situação de abuso é ainda mais freqüente quando o abuso foi protagonizado por uma mulher, já que os homens, muitas vezes, julgam que podem ser admirados pela atividade sexual precoce com mulheres.

O conceito de traumatismo


Em termos do modelo econômico, o traumático se caracteriza por uma afluência excessiva de excitações em relação à tolerância do sujeito e sua capacidade de controlar e elaborar psiquicamente essas excitações.

São situações em que a criança é submetida a um excesso de estímulos, que ela não consegue evacuar, devendo proteger-se deles ou ligá-los, para que não se produza uma ruptura que signifi - que uma conseqüente desorganização psíquica. O efeito desse esforço maciço é o fechamento em uma espécie de cápsula destinada a imobilizar esses elementos, que, por sua quantidade e intensidade, seriam devastadores para a superfície psíquica.

Existem, no psiquismo, diferentes modos de simbolização, diferentes formas representacionais que se articulam, dando conta dos efeitos da vivência, iniciando-se um processo de recomposição acorde com as possibilidades do sistema simbólico. A construção, pelo sujeito, de uma teorização fantasmática pode ser considerada uma resposta fundamental ao traumático.

Há, no entanto, uma especificidade no traumatismo provocado pelo abuso sexual na infância. Devemos ter em conta que, uma vez constituído o ego e diferenciadas as diversas instâncias e subsistemas no interior do aparelho psíquico, uma vez confi gurados os sistemas de signifi cação que referenciam e balizam os limites do sujeito, a incidência inesperada e massiva da realidade relativa ao abuso faz explodir aquilo que já se construiu, de modo que as formas usuais de funcionamento começam a se desarticular, o que compromete a relação do sujeito consigo mesmo e com a realidade que o circunda e o atravessa.

A elaboração, com o recurso da fantasia, desse real que invadiu e perturbou a vida da criança, é considerada por alguns autores como um trabalho de verdadeira “teorização singular do trauma real”. Silvia Bleichmar [8] assinala duas opções: em primeiro lugar, considerar o traumático como desencadeante de algo que já está pré-formado no sujeito; em segundo, entendê-lo como substitutivo e, inclusive, como constituinte do funcionamento psíquico que se dá sob o efeito da obrigação do psiquismo de elaborar aquilo que chega, isto é, de lhe dar um destino, de evitar sua destruição pelas quantidades que tem de metabolizar para manter sua complexidade e continuar sua evolução.

Pensando nos termos da segunda opção, seria necessário precisar de que ordem é o que afeta a vida psíquica, para que esta complexidade se instaure, e sob que premissas e excessos se produzem fenômenos in-metabolizáveis que levam à sua destruição.

O efeito da impossibilidade de simbolizar impregna o sujeito, somado a fortes sensações de desvalimento, à vivência de um terror sem nome e à percepção de que os recursos disponíveis não serão sufi cientes para proteger o psiquismo do desabamento. Seu correlato é a impossibilidade, também, de imaginar um futuro construído sobre os inúteis pilares de um presente desorganizador.

O terror se produz quando o sujeito sabe do que tem medo, mas não tem a possibilidade de instrumentar defesas frente ao temido. O ego sabe o que pode esperar, mas não tem forma de se proteger daquilo que pode atacá-lo. Desenvolve- se, assim, um estado de hipervigilância que, apesar de consumi- lo, não o protege da repetição do acontecimento.

Para alguns autores esses estados de desvalimento se devem ao efeito da violência cotidiana e prolongada sobre a subjetividade. E implicam, na verdade, um aprender a não se defender que é dessubjetivante e empobrecedor. Em algumas crianças, a situação traumática é segregada do restante da personalidade; assim, o episódio traumático permanece como que em suspenso, não assimilado e intacto. Em outros sujeitos, coloca-se em marcha um processo que parece corresponder ao modelo das neuroses traumáticas: o retorno das imagens, a compulsiva reaparição do vivido, a tentativa de evacuação a fim de evitar os processos de desestruturação. Todos esses elementos estão presentes em traumatismos violentos. Identifi cação com agressor e transformação passivoativo são também mecanismos, há muito tempo conhecidos, de resposta às situações traumáticas.

Nas situações de abuso crônico, o sujeito perde a capacidade de experimentar a si mesmo como agente de suas próprias ações e sentimentos. As tentativas de suicídio frente à repetição seriam uma forma paradoxal que encontram para sustentar o sentido de serem agentes e protagonistas de suas próprias vidas.

Pensamos que, em todos esses casos, é fundamental que a memória possa se reconstruir, a fi m de evitar a implosão do psiquismo e sua concomitante devastação. Referimo- nos a uma memória identitária que restitua ao sujeito a noção de sua própria existência. Quando se consegue trabalhar e reconstruir esses episódios silenciados por muito tempo, produzem-se movimentos importantes no posicionamento subjetivo, movimentos que abrangem o sentimento de si mesmo e das relações objetais.

O traumático na teoria

O traumatismo, concebido como o impacto do real no sujeito psíquico, tem uma longa história na teoria psicanalítica. Já na obra freudiana podem ser reconhecidos diferentes modelos.

A concepção mais elaborada, na época inicial, sobre o papel do traumático na causalidade das neuroses está centrada no conceito de traumatismo sexual em dois tempos, que implica um determinado encadeamento temporal de fatos psíquicos. Num primeiro tempo, uma cena em que o que produz impacto vem de fora, a criança não compreende o sentido que as ações em que se vê envolvida têm para o adulto perverso ou para a criança mais velha, nem os meios utilizados por essa pessoa que faz parte, em geral, da própria família. O papel da criança é o de alguém passivo, ignorante, impotente, que consente sem entender do que se trata. Num segundo tempo, o do a posteriori, já na puberdade acontece um incidente que remete, a partir de um traço associativo, ao primeiro, isolado e esquecido. A criança poderia conceber agora o sentido sexual daquela cena, ressignifi cá-la, reorganizando e internalizando o cenário em função da sua própria evolução intelectual e afetiva.

A reativação dessa lembrança provoca um fl uxo de excitação que desborda as defesas do ego. O aparelho psíquico se vê invadido por um afeto demasiado intenso para suas possibilidades de domínio; dizer algo se faz impossível, ao menos num primeiro momento; a fuga, conseqüência de uma vivência de terror, se apresenta como única saída no exemplo paradigmático, descrito no “Projeto de uma Psicologia Científica” [9]. A lembrança reativada, carregada de uma quantidade de afeto, é recalcada e em seu lugar se instala uma neurose fóbica, pela qual o sujeito foge de certas situações sem saber com clareza de que está fugindo.

Essa concepção inicial, que sofreu posteriormente diversas modifi cações, principalmente pelo reconhecimento da existência da sexualidade infantil, assentou as bases para a compreensão de que o traumático não se reduz ao acontecimento, mas também inclui o efeito. Um efeito, proveniente do real, que se produz num psiquismo que já tem certas organizações constituídas e que está ligado ao acontecimento, mas que em si mesmo não é determinante senão pela forma em que opera em relação às inscrições prévias. Sabemos que há acontecimentos que se tornam necessariamente traumáticos, mas esses traumatismos não se convertem necessariamente em patologias. Apesar disso, podemos afi rmar que sempre exigem trabalho psíquico. A produção de patologia, como acabamos de ver no caso de neurose esquematizado por Freud, é o efeito de um modo de resolução do traumático.

A teorização fantasmática é a resposta que o sujeito constrói frente ao traumático. A simbolização será impossível se algo não se inscreve no psiquismo como traço ou marca de algum tipo de vivência. Como o traumatismo abre um enigma, existem também simbolizações que, apesar de serem culpabilizantes, propõem ao sujeito uma teoria, que lhe permite posicionarse no lugar do ator. Assim, o sujeito pensa: “mostrei-me demais, aí está a conseqüência”. Se, em lugar disso, pensa: “se eu me comportar bem, não acontecerá comigo nem violentação nem abuso”, incrementa a onipotência, constituindo uma simbolização efi caz.

É importante precisar que essas racionalizações não podem ser questionadas e desarticuladas sem se levar em conta que vieram a preencher uma necessidade simbólica. O analista deverá trabalhar sobre a fantasia do sujeito a fi m de observar de que maneira se produziu o encontro com o real a partir das fantasias pré-existentes. Nesse complexo lugar, o sujeito – no trabalho de análise – irá reconstruindo seu próprio relato.

Desde os primeiros estudos psicanalíticos, Freud afi rma o valor curativo do ato de pôr em palavras. Todo acontecimento se inscreve e deixa suas marcas, seus traços mnêmicos. Nunca é uma impressão passiva, e sim um fato a construir. Um intenso trabalho psíquico abre caminho para o conhecimento da realidade, entendendo-a como a apreensão complexa do acontecido, que envolve dimensões pensáveis em termos de realidade psíquica. A apreensão de qualquer acontecimento passará necessariamente por todos esses passos, e a construção do fato como experiência subjetiva estará freqüentemente distante de uma realidade puramente factual.

Os traumas sexuais precoces que Freud descreveu e sobre os quais teorizou, como vimos, no início da Psicanálise, são fatos reais, processos de sedução ou de abuso produzidos, em geral, por pessoas próximas: pai, irmão, tio ou avô. Desencadeiam afetos incapazes de consciência, irrepresentáveis, que não chegam a se ligar a representações de palavra.

Os efeitos desses acontecimentos sexuais precoces são duradouros. Incluem, pela ação do recalcamento e o retorno do recalcado, a produção de sintomas neuróticos. Ainda, o efeito da recusa e seu fracasso – o retorno do recusado, seria possível dizer – ocasiona a emergência de alterações de caráter, passagens ao ato e somatizações. Além disso, poderão surgir fenômenos de sideração e de dessubjetivação próprios da psicose.

A nova historização que se consegue por meio da análise muda o sentido e a intensidade dos traumas, podendo relativizá-los, intercambiar seus pontos de impacto e as fi guras neles implicadas. O conceito de retroatividade (Nachträglich) explica a possibilidade de ação da Psicanálise. A ação da retroatividade na construção do trauma está presente também ao longo do processo analítico, tornando possível a modifi - cação de uma história.

A Psicanálise desenvolveu uma concepção de história pela qual esta não é uma crônica de fatos que se sucedem linearmente, e sim uma multiplicidade de acontecimentos que se inscrevem e se entrecruzam num jogo de interpretação sucessiva e simultânea, armando uma rede de relações complexas que obrigam o ego a um trabalho interpretativo e a uma reconstrução permanente. Os acontecimentos não existem isoladamente, e sim inseridos numa trama relacional, e é por meio do trabalho de deciframento, interpretação e re-historização que essa trama pode tornar-se inteligível.

A atitude coletiva frente à violência do abuso: negação e silêncio


As formações sociais se sustentam em discursos e dispositivos defensivos, imaginários, que garantem o consenso em pensamento e ação de modo a excluir todo questionamento do sistema de convicções que opera como verdade e realidade. Minora-se a importância dos fatos de violência que não podem ser marginalizados, jogados para fora e para as margens do conjunto social ao qual se pertence. Tais fatos tendem, assim, a ser minimizados ou a ser objeto desta complacência recusatória conhecida como banalização. Sistemas de crenças baseadas em preconceitos servem para colocar em dúvida, por exemplo, as experiências relatadas pelas mulheres desviando-se a responsabilidade dos agressores.

O feminino foi tido ao longo da história, tal como o revelam os discursos religiosos, mitológicos ou literários, como fonte de intenções provocadoras e sedutoras, potencialidades (atribuídas) cuja presença e moderação acabaram fazendo parte do papel de gênero com o qual as mulheres devem se identifi car. O estudo das atitudes coletivas, em casos de abuso sexual em mulheres, foi o ponto de partida para verifi car a magnitude e extensão da tendência geral à culpabilização das vítimas em situações de violência sexual.

Montam-se, assim, vários mecanismos de negação e silenciamento, que operam como cerco de aparente proteção, mas são, na realidade, efetiva estigmatização dentro da qual as crianças e mulheres abusadas, consideradas casos particulares e isolados, devem permanecer justamente em segredo. Este silêncio é exercido tanto pela sociedade como pelas vítimas.

Frente a um caso de presunção de abuso, é freqüente que a menina passe a ser considerada como vítima mas – também e ao mesmo tempo – alguém de quem se suspeita, pondo- se em dúvida a veracidade de sua queixa, de suas lembranças, de seu sofrimento, de sua percepção da realidade. Essa falta de confi ança na palavra da criança produz uma perda na auto-estima que a levará a renegar suas percepções da realidade exterior. Enquanto isso, o abusador nega ou minimiza o acontecido, e a criança, com suas palavras e condutas, denuncia cada vez mais fracamente, mas ainda esperando que alguém ponha fim a seu padecimento privado.

A recusa dos fatos e de sua significação


Um mecanismo de defesa comum frente ao trauma é acreditar que a própria percepção dolorosa é equivocada, de modo a ser negada com veemência. Esse mecanismo nos levaria ao que falamos inicialmente sobre a recusa, que tenta manter afastadas as experiências traumáticas e os sentimentos associados com elas, o que provoca uma alteração séria na constituição psíquica.

O conceito de recusa, como mecanismo através do qual o sujeito rejeita reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante que socava seus alicerces narcísicos, ocupa um lugar importante na teoria e na clínica psicanalítica. Presente em diferentes escritos que o antecipavam, foi formalizado por Freud em 1927 [10] no contexto de trabalho sobre a perversão fetichista. Diferentemente do que ocorre na psicose, preserva-se a relação convencional com a realidade à custa de uma profunda cisão do psiquismo, de características diferentes das do recalcamento.

Esse mecanismo, quando utilizado intensamente, produz dano ao psiquismo. No caso do abuso sexual, a situação é ainda mais complexa porque não recorre à recusa apenas a vítima, mas também os que participam indiretamente e os que escutam e não acreditam em quem denuncia.

Algo que existe é tratado como inexistente, o que danifi ca o ego ao ser atacada sua capacidade de reconhecer uma percepção, de aceitar algo como existente, de discriminar como própria uma sensação corporal. Todo acontecimento real requer operações de elaboração e re-elaboração, equivalentes a traduções, com parte do processo de inscrição psíquica. A ação da recusa implica uma interferência nessas operações, de que resulta uma suspensão de significação. O bloqueio da via da elaboração psíquica no processamento das tensões habilita o funcionamento evacuativo da compulsão de repetição. Uma paralisia concomitante na produção do sentido da existência afeta o senso de temporalidade. Um dos traços mais freqüentes nas vítimas de abuso sexual na infância é um vazio de futuro.

Podemos pensar que a reconstrução, a lembrança e a re-elaboração desses fatos em análise provocam recomposições que permitem que essas mulheres mudem seu posicionamento subjetivo, ao deterem a compulsão à repetição a que estavam submetidas. Na compulsão à repetição, o sujeito se situa ativamente em situações penosas, repetindo experiências antigas, sem se lembrar de suas características e achando que se trata de algo motivado na atualidade.

“Freud explicava a necessidade de repetição, em parte, como uma tentativa de modificar après coup as condições em que se havia produzido o trauma e chegar a torná-lo progressivamente mais inócuo, com o aporte da angústia-sinal – que faltava no momento de sua produção – impossibilitando a instrumentação de medidas defensivas. Atualizar o trauma, fazê-lo vigente, atual, é o que permite superá-lo e mudar a história, tanto num processo espontâneo como no tratamento, no qual a repetição transferencial tem um papel importante.” [11]

Papel da mãe

A investigação clínica dos casos de abuso infantil intrafamiliar revela, com inquietante freqüência, junto à incontestável superioridade numérica dos casos de incesto entre a pai e filha, a presença de contradições e ambigüidades na atitude da mãe perante a situação de abuso.

A sua incredulidade em relação à fala e às demonstrações diretas e indiretas das crianças revela uma tendência a recusar a percepção da realidade sexual que a rodeia, que compromete o cumprimento das funções de proteção de sua prole. No período inicial das investigações clínicas associadas às perícias legais, tendeu-se a relegar essa constatação a um segundo plano, pelo receio de incorrer em mais uma desculpabilização do agressor masculino por meio de um deslocamento de responsabilidades para o lado das vítimas femininas. O desconhecimento, por parte da mãe, do fato transgressivo leva à preservação de uma imagem familiar ilusória, tornando-a susceptível à manipulação do abusador, que opera em favor da distorção da realidade por meio do enfraquecimento da confi ança dos diversos protagonistas da cena familiar em suas próprias percepções. O abusador, em geral, tem uma racionalidade perversa que tenta transformar sua racionalidade privada em pública e também em intencionalidade da vítima. Como dito anteriormente, isso pode levar a vítima a fantasmatizar-se como agente da situação, pois esta é uma forma de controle do inesperado.

Outros fatores operam no mesmo sentido. Uma história infantil de conflitos familiares e situações traumáticas, inclusive ter sido vítima por sua vez de abuso e incesto, condiciona, na mãe, uma subjetividade fragilizada, associada a uma auto-estima defi citária e uma auto-imagem feminina rebaixada, que a torna vulnerável na relação com homens exploradores. As pesquisas sobre abusos em gerações sucessivas demonstram que mulheres abusadas na infância tendem a expor, inconscientemente, suas filhas à proximidade e até à proteção da mesma pessoa que abusou delas, sendo este geralmente seu pai, ou seja, o avô da futura vítima. Uma trágica situação desse tipo é tratada no filme Chinatown (Polansky, 1974).

Para muitas mulheres, acaba sendo difícil visualizar o incesto, uma vez que elas mesmas não percebem que são abusadas ou maltratadas. Para elas, era comum confundir, na infância, atitudes afetivas com condutas sexuais. Não está ausente, no entanto, uma desconfi ança em relação às filhas, o que as leva a duvidar da veracidade de suas mensagens e a uma cumplicidade inconsciente no encobrimento da situação.

“Por sua história de vida, essas mulheres acreditam que as relações mãe-fi lha são necessariamente competitivas, ambivalentes e hostis (essa crença é transmitida como algum tipo de legado). As próprias necessidades insatisfeitas e a baixa autoestima levam a que intensas demandas de seus filhos provoquem nelas ansiedade e rejeição.” [12]

Sobrevivência e elaboração

No contexto do trabalho com mulheres adultas vítimas de violências sexuais, fala-se em mecanismos de sobrevivência para se referir ao processo que compreende os diversos momentos de elaboração e reabilitação que realiza a mulher vitimizada.

O impacto do abuso exige uma reformulação da vida dessas pessoas, quando entra em ação o sobreviver apesar de. Já assinalamos um momento de esvaziamento subjetivo, de um aprender a não se defender profundamente empobrecedor, mas que não consegue aniquilar de vez a tendência, com graus diversos de consciência, a inscrever esse padecimento no contexto mais amplo da própria vida.

A elaboração do traumatismo sofrido atravessará um longo processo, durante o qual a mulher deverá se desprender da cena que captura sua subjetividade: os fatos, a pessoa do agressor, seus mandatos, o medo, a vergonha, a humilhação, a dor, o ódio, o desejo de vingança.

O sujeito, além de contar com as forças que possa resgatar de seu próprio interior, mesmo que enfraquecido, necessitará também dos incentivos que possa encontrar no mundo externo. Pode-se confi - gurar, dessa forma, um horizonte possível de experiências intersubjetivas, que poderíamos denominar situações de restituição-reparação, remontando em contracorrente às situações traumáticas.

A denúncia quebra o pacto de silêncio e abre possibilidades de elaboração


Atualmente, considera-se uma questão fundamental o ato da denúncia, que significa o rompimento do pacto de silêncio ao qual o abusador submete sua vítima. Da recepção que essa denúncia obtiver e da ajuda que se puder oferecer à criança abusada vai depender, em grande medida, a inscrição que esse ato terá no psiquismo. Se o abuso é reconhecido como um delito dentro do discurso social e castigado pela lei, então seu processamento no psiquismo da vítima terá possibilidades de superar o bloqueio ao trabalho de representação.

A resposta das pessoas próximas (família, escola, profi ssionais da área da saúde) frente às denúncias de abuso feitas por uma criança terá, assim, grande importância. Daí também a ênfase que temos dado ao trabalho com a mãe, pela relevância do papel que ela desempenha a favor da recusa ou a favor da aceitação simbolizante.

A denúncia de um abuso retira a vítima do isolamento e abre espaço para um terceiro que possibilita emergência de outro relato. Surge assim uma narrativa, que torna acessível um lugar antes dominado pelo terror, e que levava à impossibilidade do pensamento. Para vários autores, só a confi ssão dos delitos, o juízo e a condenação permitem que a memória se recupere e as redes simbólicas da história se recriem, recuperando a subjetividade. O processo consistirá em fazer o luto pelo pai perdido e, por meio da reconstrução do incesto cometido, abrir a possibilidade de reconstituir sua própria subjetividade fragmentada.

Isso nos remete novamente à importância do trabalho de simbolização historizante já mencionado. Será no tratamento psicanalítico que se tentará reaver uma história cujas partes, até então, não puderam formar uma figura. A recuperação e a reconstrução do passado se produzem dentro do processo de análise, sendo importante que o analista abra espaço para essa reconstrução histórica que permitirá o trabalho simbólico, no lugar onde só se encontrava o sinistro.

Trata-se da historização do passado, que poderá levar, no trabalho transferencial, à transmutação do sintoma em relato. A história se constrói no presente, mas a verdade histórica se elabora com base nas inscrições do passado. E é pela via do trabalho compartilhado por paciente e analista que novas simbologias poderão ser geradas.

Um dos recursos utilizados nessa reconstrução é o trabalho com os sonhos traumáticos. Estes tentam recuperar o domínio sobre o estímulo pela via de um desenvolvimento de angústia, cuja omissão foi a causadora da neurose traumática. A repetição é historizada, tornando-a, até onde seja possível, lembrança. Elaboramos construções que, promovendo outras, abrem o espaço psíquico para a produção de sentido.

É importante conhecer a modalidade em que historicamente se inscreveu o abuso sexual na infância, porque acreditamos em uma história subjetiva na qual os pontos de vista do historiador se constituem como verdade, em contraposição à versão objetiva que sustenta a reprodução fiel de acontecimentos.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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