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Resumo
Resenha de Silvia Leonor Alonso e Mário Pablo Fuks, Histeria, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, 267 p. Coleção Clínica Psicanalítica.


Autor(es)
Danielle Melanie Breyton
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo O feminino no imaginário cultural contemporâneo, co-organizadora do livro Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (Escuta).

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 LEITURA

Entre nós: a histeria

Danielle Melanie Breyton


Resenha de Silvia Leonor Alonso e Mário Pablo Fuks, Histeria, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004, 267 p. Coleção Clínica Psicanalítica.

O apelo da histeria é que se abra mais espaço para que uma história, cheia de nós, possa ser expressa. Com incrível capacidade de mobilizar o entorno, a histeria, em suas diferentes manifesta ções, força os limites dando cotoveladas aqui e ali. Por meio de sua plasticidade e gesticulação extravagante, ou em sua negativa perempt ória, sempre insatisfeita e em alguma medida insaciável, reconstr ói-se permanentemente em enigma, capturando o interesse em torno de si.

Falar de histeria com base em Freud é remontar uma história, a história da Psicanálise, de sua metapsicologia e de sua concepção de subjetividade. É falar também da história da sexualidade e do corpo dentro da cultura, ao longo do tempo.

É assim que o tema, no desenvolvimento proposto por Silvia Leonor Alonso e Mário Pablo Fuks, embora tenha ocupado numerosas páginas dentro da coleção Clínica Psicanalítica, parece ainda apertado dentro dessa roupagem. Isto se dá em função da densidade de seu conteúdo, da quantidade de conceitos teóricos que os autores retomam para melhor compreendê-lo e para desfazer confusões freqüentes, e em razão dos diferentes desdobramentos que o próprio tema suscita.

A histeria continua vigente, é o que reafirmam os autores de maneira categórica. Ela se faz presente entre as mulheres, mas também entre os homens, podendo ser identificada tanto nas academias de fisiculturismo como em instituições psiquiátricas. Como quadro nosográfico com seus mecanismos psicopatol ógicos, apresenta-se em uma vasta gama de sintomas como anorexia, queixas reumatol ógicas, alcoolismo, depress ão, pânico.

Em suas diferentes vestes, a histeria leva a marca do ethos imperante, assim como os conflitos de cada época. Portanto, deve ser sempre pensada dentro de seu contexto histórico. É assim que Silvia e Mário introduzem esse livro, e é esse o trabalho que se descortina no decorrer de suas páginas, tendo como estofo uma vastíssima bibliografia, que aparece din âmica e permanentemente no decorrer do texto, problematizando conceitos, arejando idéias, adensando o caldo das hipóteses, ou como interlocu ção diante dos impasses.

Bem articulados entre si, cada um dos dez capítulos – por sua vez organizados em múltiplos tópicos – pode ser tomado separadamente, o que faz deste livro um excelente instrumento de consulta, além de um compêndio sobre os pontos fundamentais da reflexão sobre a histeria. Essas qualidades, a meu ver, explicam o fato de sua primeira edição ter se esgotado rapidamente.

A fim de comentá-lo, dividirei o livro em duas partes. Na primeira, composta pelos cinco primeiros capítulos, os autores exploram conceitos da complexa trama da metapsicologia psicanalítica. Partem da retomada histórica da histeria (da Antiguidade até Charcot) para introduzir sua compreensão em Freud, assim como Freud frente às histéricas. Revisitam os conceitos de recalque, sintoma, complexo de Édipo (mais especificamente a fase fálica) e identificação, por meio de uma leitura meticulosa e din âmica da sua evolução não linear na obra freudiana, entrecortada e aprofundada por aportes de outros autores.

Partindo da pré-história da Psicanálise, acompanhamos, no decorrer dos capí- tulos, o amadurecimento da teoria. Reconhecemos o primeiro Freud cujo mérito está no crédito que dá ao que dizem as pacientes e ao que se pensa sobre elas (os corredores da Salpetrière em que se comentava extra-oficialmente a “coisa sexual”), e que, dessa maneira, se livra da armadilha do efeito visual e abre a escuta para uma sexualidade renegada, proibida de ser pensada, mas que se infiltra por meio dos sintomas. Encontramos também um Freud que, instrumentalizado por sua escuta clínica, come- ça a problematizar o infantil, a conceitualizar a sexualidade infantil e, assim, a edificar um aparelho psíquico fundado nas experiências precoces, dinâmico, histórico e extremamente complexo. Nesse percurso também acompanhamos um Freud que trope- ça na moral de sua época e, com alguma freqüência, recua frente a alguns desenvolvimentos teóricos ou sustenta certa ambigüidade em determinados pontos conceituais.

Os autores inserem esse acompanhamento crítico e minucioso do texto freudiano na concepção de transmiss ão desenvolvida nas atividades do Departamento de Psicanálise, dividindo os créditos com outros colegas de trabalho.

Nesses capítulos, a autoria está no rigor com que lapidam sínteses bem amarradas, claras, ao mesmo tempo que extremamente complexas. Dessa maneira, reavivam e fazem vibrar os conceitos em suas múltiplas faces, incluindo suas fissuras, por meio dos avanços e retrocessos de seu desenvolvimento dentro de Freud, mas também na Psicanálise para além de Freud.

É assim que, para citar um exemplo entre outros tantos possíveis, no decorrer da discussão sobre o sintoma, convidam para o debate sobre a conversão Pichon-Rivière, José Bleger e Monique-David Menard. Essa interlocução ajuda a localizar o incômodo dessa conceitualiza ção, que de alguma forma pressupõe o dualismo psicofí- sico e não faz jus ao conceito de inconsciente formulado por Freud, que implica uma vastidão do campo do psíquico. Dessa forma, recuperam que o corpo não é um lugar indevido ao psíquico, mas é, ao contrário, uma das áreas em que o psiquismo pode se manifestar. Afirmam mais uma vez, portanto, a concep- ção de um corpo desejante diferente do corpo orgânico. Um corpo erógeno, marcado e historicizado pela sexualidade infantil.

O debate sobre o corpo – o corpo pulsante que se constitui nas vicissitudes de uma história singular – é sem dú- vida um dos eixos que articulam os diferentes capítulos do livro e suas linhas temáticas. Embora apresente um capítulo especialmente dedicado a esse tema – “Corpo histérico e sintoma” –, a problemática do corpo, para além de palco das organizações histéricas, percorre o texto em diversas abordagens.

Os aportes de Dio Bleichmar ajudam a pensar nos efeitos da semelhança corporal entre mãe e filha menina, que pode servir de apoio a idealizações e maciços processos identificatórios de ambas as partes. Marcam uma relação pré-edípica complexa, conflituosa, impregnada de agressividade, pois muito narcísica. Carregada, portanto, de dificuldades no que tange aos movimentos de diferencia ção.

Na linha da identificação, o corpo ressurge quando os autores, instrumentalizados por aportes de muitos interlocutores (Lacan, S. André, Perrier, entre outros), trabalham a mãe e o pai da histé- rica. A mãe é ela própria outra histérica, que não conseguiu valorizar sua feminilidade e, em função disso, transmite à filha um sentimento de menos valia em relação a seu corpo, ao mesmo tempo que lhe solicita remediar sua incompletude. O pai assusta-se frente à sexualidade da filha e não abre espaço para os jogos de fantasia na modelagem de uma figura feminina ideal e futura. Assim, os autores fazem emergir do texto a figura da girl-phallus: uma menina excitada e precocemente abandonada em seu processo de sexua ção, que frente a isso lança mão dos recursos que possui, levando ao extremo a posição fálico-narcísica. Permanece identificada de corpo inteiro com o falo em uma imagem especular que lhe garante o narcisismo fálico.

Nessa mesma linha, Silvia e Mário trazem a figura do fisiculturismo, em que o histérico oferece o corpo musculoso para a mulher gozar com sua visão. Abre-se então, no texto, espaço para pensar uma mudança nos dias de hoje, em que o corpo masculino enfeitado, depilado, objeto da moda, favorece a via conversiva para o homem, colocando em jogo o corpo, que, até pouco tempo atrás, ficava em segundo plano na construção da imagem narcísica para um homem.

A questão do corpo na atualidade é também discutida por meio das anorexias, em que, segundo os autores, figura-se uma tentativa de “apagar” o corpo inteiro. Figuração diferente da histeria de conversão do século XIX com seus sintomas recortados em um braço, uma perna, uma parte do corpo nomeada pela linguagem comum.

O livro propõe pensar um certo investimento na imagem corporal, em que a profusão na mídia de modelos femininos de perfeição representa a versão contempor ânea do recalque da sexualidade.

Essa discussão introduz aquilo que considero a segunda parte do livro, composta pelos cinco últimos capítulos, em que os autores tomam o tema da histeria centrando-o em sua atualidade, em aná- lises de suas diferentes figura ções no imaginário cultural contemporâneo. O enfoque teórico se mantém presente, articulando o pensamento e as hipóteses levantadas, mas a teoria, bastante bem assentada na primeira parte do livro, flui aqui de maneira solta e não é mais o centro do trabalho.

São textos mais curtos, de leitura fluente, que trabalham discriminações importantes. Suscitam muitas questões sobre a atualidade na clínica psicanalítica: as dificuldades e impasses no entrecruzamento da Psicanálise, Psiquiatria e Neurologia, e o necessário estabelecimento de diagnósticos diferenciais. Também fazem pensar sobre os imperativos de nossos tempos, as modalidades de relações interpessoais e, dentro disso, os sintomas contemporâneos, freqüentemente epidêmicos.

Essa proposta é aberta no livro com a questão da histeria nos homens, sempre em alguma medida rechaçada, e culmina num esforço muito bem sucedido de diferencia- ção entre histeria e erotismo feminino, passando também por depressão, masoquismo e loucura histérica.

Os capítulos sobre a histeria nos homens e sobre a discriminação entre histeria e erotismo feminino retomam, de início, a etiologia da histeria ligada ao útero, para introduzir a freqüente identificação entre a histeria e a mulher. A partir daí, em diferentes costuras, os autores remontam o lugar do fálico, assim como a questão da castração no desenvolvimento da sexualidade, discriminando nesse ponto as fixações de seus outros desdobramentos possíveis. Assim, destacam o reconhecimento das diferenças sexuais, ou o reconhecimento do feminino como o outro sexo, subordinado à ultrapassagem da posição fálico/narcisista.

O texto freudiano de 1917 “Sobre as transmuta- ções das pulsões, em particular do erotismo anal” propicia uma preciosa retomada da cadeia de deslizamentos possíveis do objeto do desejo. Neste, filho ou pênis podem não ser pontos últimos do investimento libidinal, como Freud dá a entender em desenvolvimentos posteriores a respeito da sexualidade feminina, mas funcionar como pontes ou intermediá- rios no caminho de uma mulher em direção ao homem. Passagem do narcisismo (ter/ ser completo) ao amor de objeto (dar/receber), passagem – no desenvolvimento do erotismo feminino – que pode não ser definitiva e estar sujeita a regressões no desenrolar da vida. Dessa maneira, os autores insistem mais uma vez no caráter narcísico da histeria, diferente da feminilidade como saída possível do complexo de Édipo.

Nesses capítulos, Silvia Alonso e Mário Fuks fazem despontar cenas memoráveis de filmes que arejam o texto e provocam os leitores a participar da reflexão. Lançam mão das palavras de Conchita, personagem do filme Esse obscuro objeto do desejo, de Buñuel, para abordar o recalcamento do genital: “se você já tem de mim os lábios, as carícias, a pele, a boca, para que fazer amor?” Entendem que aqui a renúncia à genitalidade está fundamentada no valor narcísico da conservação da virgindade. Essa cena no texto me fez pensar em jovens histéricas que escuto hoje desenfrearem cenas e mais cenas de uma sexualidade hiperexposta, momentos em que, com alguma freqüência, me vejo às voltas com uma pergunta meio tímida: onde está o pudor, a vergonha? O que hoje faz barreira?

Dia desses fiz da vergonha pergunta a uma paciente. Ela quase saltou do divã: “vergonha???” E seguiu em seu automático: “sexo é a coisa mais natural do mundo!! Cachorros transam, gatos transam...”. A vergonha tinha um colorido obsceno, tanto em minha timidez em questioná-la, quanto no salto que produziu ao ser nomeada. Salto, por sinal, bastante importante no decorrer dessa análise, pois que, de alguma maneira, quebrou a couraça de uma sexualidade despreocupada e extremamente repetitiva, instaurando o conflito e, junto com ele, uma possibilidade de jogo, sensualidade e prazer. Estaria o valor narcí- sico organizado em torno da naturalização do sexual, com sua figura de “sexualmente resolvida?” Será esta uma modalidade atual do recalque da sexualidade, em que o alvo do recalque recai sobre o erótico mais do que propriamente sobre o sexual?

E seguindo a trilha do obsceno, a leitura me pôs a pensar ainda em outra cena. No caso, uma mulher de trinta e poucos anos que, a partir de um episódio depressivo severo, começou uma análise. Remonta o início de seu tormento depressivo, a um dia em que, frente ao espelho, percebeu que, apesar de seus múltiplos esforços e investimentos em cosmé- ticos anti-age, despontavam pequenas rugas em torno de seus olhos. Pensou naquele instante: “se ele (seu marido) perceber, ele vai me largar”. A partir desse dia, esse corpo traiçoeiro tomou conta dela, assombrou-lhe em fantasias de tumores terríveis, morte iminente e insidiosa instalada em algum lugar desconhecido de si. Corpo tão em pauta nos sofrimentos contemporâneos: a dor por todos os lados na fibromialgia, a impossibilidade de conceber que produz filas nas clínicas de reprodu- ção assistida, as palpitações e os terrores de morte nos ataques de pânico. Corpo traidor, pois denuncia a passagem do tempo e a realidade da morte, tão rechaçadas pelas constantes e reiteradas promessas de plenitude narc ísica, ofertadas em baciadas nos dias de hoje.

Dizem por aí que a histeria morreu ou foi substituída por novas patologias. Silvia Alonso e Mário Pablo Fuks opõem-se firmemente a essa idéia. Mais do que isso: mostram- nos a importância de recuperar sua unidade em face à fragmentária e algo retró- grada nosografia psiquiátrica atual. Eles veiculam uma histeria que muda de roupa com incrível facilidade, mas, resistente, não se desnuda. Histeria que se molda e se remodela em função dos focos de interesse de um determinado tempo. Histeria que assim, sempre renovada, viva e vibrante, por meio de sua plasticidade e da eroticidade que promove, denuncia a moralidade onde quer que ela esteja.

Na sólida argumentação dos autores, a histeria constitui extenso campo clínico com uma clara definição metapsicol ógica de estruturação mental, que permite articular múltiplas sintomatologias em função dos processos e mecanismos psicopatológicos em jogo. Esta integração é fundamental para reencontrarmos maior precisão diagn óstica e para construirmos direcionamentos terapêuticos afinados. Porém, é fundamental sobretudo para recobrarmos a possibilidade de transformação.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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