EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
37
Ética do psicanalista
ano XIX - 2° semestre 2006
131 páginas
capa: Miriam Nigri Shreier
  
 

voltar
voltar ao sumário

Resumo
Resenha de Fátima Milnitzky (org.), DesaÞ os da clínica psicanalítica na atualidade, Goiânia, Dimensão, 2006, 161 p.


Autor(es)
Marinella Morgana de Mendonça
é psicanalista, mestre em Psicologia pela UFMG, professora substituta do Curso de Psicologia da UFMG.

voltar ao sumário
 LEITURA

Clínica psicanalítica e atualidade: diversas faces do mal-estar

Marinella Morgana de Mendonça


Resenha de Fátima Milnitzky (org.), DesaÞ os da clínica psicanalítica na atualidade, Goiânia, Dimensão, 2006, 161 p.

Que desafios se apresentam à clínica psicanalítica na atualidade? Como a psican álise tem enfrentado as novas formas de manifestação do mal-estar contemporâ- neo? Os textos da coletânea DesaÞ os da clínica psicanal ítica na atualidade reúnem uma série de autores que se ocuparam da discussão dessas questões no I Encontro de Psicanálise promovido pela Clínica Dimensão de Goiânia e pelo Grupo de Transmissão e Estudos da Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo. Ampliando esse espaço, trabalhos de outros autores buscam também novas formas de articular os impasses de nosso tempo.

A discussão encontrada nas páginas do livro expressa peculiaridades do trabalho que as novas modalidades de sofrimento psíquico presentes na prática psicanalítica impõem aos psicanalistas. Tendo como eixo principal a teoria freudiana, os autores dessa coletânea discorrem, de forma contundente, sobre a maneira como a convivência em um mundo globalizado, marcado pelas culturas do narcisismo e do consumo, gera conflitos que denunciam um mal-estar generalizado, cada vez mais caracterizado pelas manifestações corporais. Não é novidade afirmar que o mal-estar é inerente à civilização. No entanto, o livro evidencia novas formas desse mal-estar na atualidade, constituindo diferentes desafios à clínica.

O texto de abertura, “O silêncio do sujeito: medicaliza ção”, de autoria de Cleide Monteiro, nos alerta para o fato de como as dores da existência se caracterizam, hoje em dia, como doenças sobre as quais não há nada a dizer. Há uma “anestesia dos sentidos” (p. 15), uma aus ência de referências à vida psíquica e relacional por parte dos pacientes. Na opinião da autora, a maciça medicaliza ção que os avanços farmacol ógicos propagam como única terapêutica eficaz contra o sofrimento psíquico silencia a angústia, fornecendo um aparente bem-estar que, por sua vez, passa a ser o ideal de felicidade. Um desafio que a prática psicanalítica já tem enfrentado e, como pode ser depreendido do artigo em questão, se refere à necessidade premente de “fazer falar” este sujeito calado por intervenções químicas. Nesse sentido, a Psicanálise se coloca como uma possibilidade de afirmação do sujeito, do conflito psíquico que lhe é inerente e da aposta na manuten ção da experiência subjetiva.

Caminho semelhante é sugerido por Iso Alberto Ghertman em “O campo do acompanhamento terapêutico (AT): perspectivas político- clínicas”. Esse ensaio clí- nico ressalta a modalidade de acompanhamento terapêutico como sendo um espaço de escuta, no qual a aposta na subjetividade deve ser sustentada. O desafio à clínica psicanal ítica, que se delineia a partir desta experiência, pode ser expresso como sendo o de clinicar fora dos settings tradicionais e, mesmo assim, se pautar por uma ética: não retroceder diante do sujeito, esteja ele onde estiver.

Outros autores também enfatizam o aspecto clínico dos impasses causados pelo mal-estar contemporâneo, seja por meio da análise da anorexia ou das novas tecnologias de reprodução assistida (NTRA). No tocante às tecnologias de reprodução humana, fica patente a exist ência de uma dissociação entre o sujeito e seu corpo, uma vez que este é tratado como organismo e suas mazelas apenas como disfun- ções orgânicas. É preciso insistir, portanto, no enfrentamento do desafio de pensar o sujeito em conexão com seu corpo, tal como propõe a teoria freudiana. Nessa perspectiva, Danielle Breyton, Helena Albuquerque e Verônica Melo observam que a Psicanálise se apresenta como uma possibilidade de escuta do enigma do desejo, em oposição às NTRA, que se colocam ao lado da satisfação da demanda da mulher que diz querer um filho.

Escutar as histéricas, às voltas com o feminino desde Freud até nossos dias, é o que se descortina no texto de Silvia Leonor Alonso – “A construção do feminino e do materno. Considerações sobre a questão no mal-estar contemporâneo”. A autora explora a heterogeneidade do ser mulher e a singularidade de um tornar-se mulher que figura tanto na mulher-mãe, idealizada, despojada de erotismo, destinada à reprodu- ção, quanto na mulher da atualidade sobre a qual incide a demanda da imagem de um corpo sempre jovem e perfeito e para quem a forma de procriar filhos perfeitos é a reprodu ção assistida e a forma de parir é a cesariana. A autora sinaliza o apagamento do humano nas formas que se orientam por excluir as incertezas do caminho.

Em relação à anorexia, de acordo com a acep- ção de Soraia Bento Gorgati, em “Corpos desencarnados e sua figuração na anorexia”, na cultura da imagem que impera na atualidade, o corpo ganha destaque e passa a ser o lugar da experiência com os excessos. A anorexia expressa, no campo psicopatol ógico, uma exploração privilegiada dos ideais culturais de narcisismo e de consumo.

Maria Elisa Pessoa Labaki discute em “Psicossomática e Psicanálise: contaminações” a influência do pensamento freudiano na psicossomática. Trata da vinculação entre Psicossomática e Psicanálise no campo pulsional, interligando, no próprio trabalho de Freud, a etiologia das neuroses e a descoberta da puls ão de morte. Destaca, na atualidade, uma insuficiência das condições psíquicas em permitir a vinculação das pulsões, que se desviam do campo psíquico e voltam a se fazer readmitir na esfera som ática.

O ponto em comum das investigações clínicas que o leitor encontrará em diferentes textos dessa compila- ção está na eleição do corpo como sendo um palco privilegiado para as manifestações do mal-estar. E é dentro desse contexto de reflexão sobre a problemática do corpo no panorama atual que o ensaio de Joel Birman, “Corpos e formas de subjetivação”, contribui para o esforço de elucidação dos desafios que a teoria e a prática psicanal íticas enfrentam nos tempos atuais. Birman aborda, de forma clara e precisa, as formas pelas quais o corpo é apropriado pela Psicanálise desde seus primórdios. Dessa forma contribui para que os psicanalistas tenham mais recursos para lidar com o desafio de transpor o mal-estar corporal, vivido hoje em dia, para o campo psíquico, já que o tratamento das questões corporais deve se dar na esfera psíquica, como demonstra Freud.

Por sua vez, as temáticas do narcisismo e do consumo estão no centro de duas propostas de discuss ão metapsicológica, acerca dos desafios contemporâneos, presentes nos artigos de Fátima Milnitzky e de Nelson da Silva Júnior. Em “Uma psicopatologia do consumo: rela ção entre narcisismo e situa ções de consumo”, Milnitzky propõe uma mudança de paradigma, na abordagem das relações entre a sexualidade e o dinheiro nas práticas sociais, para pensar a respeito dos desafios que se apresentam à clínica psicanalítica. E a autora afirma: “Se no caso dos destinos da pulsão o que está em jogo são as formas de produção da sexualidade, na sua equivalência com o dinheiro, o que está em jogo são as formas de consumo da sexualidade” (p. 40).

Para Nelson da Silva Júnior, os desafios clínicos que a Psicanálise vê diante de si, na contemporaneidade, têm sua base em uma articula ção da banalização da pervers ão com a hegemonia do registro econômico sobre o sujeito no mundo atual. Esta idéia está na mesma direção da análise de Milnitzky sobre as relações de consumo na atualidade, uma vez que este autor também acredita que “em vez de empregar as forças libidinais insatisfeitas no trabalho, conforme postula Freud, a nova gramática libidinal exige que a saciedade erótica se realize no prazer de consumir” (p. 111). Mas como tudo isso se dá a ver? Por meio dos fenômenos de compulsão à repetição e de masoquismo erógeno, afirma o autor, como exemplificam as destruições intencionais do corpo e a existência de uma relação com a lei cada vez mais frouxa, sem qualquer conotação de transgressão, tão comuns nos dias de hoje.

O mal-estar contemporâneo transborda em um corpo que não se sustenta somente na lógica representacional e repetitiva que a primeira teoria das pulsões engendra, mas que expressa, de forma cada vez mais eloqüente, os efeitos do transbordamento pulsional, uma vez que o corpo é um receptor das excitações excessivas e traumáticas que a pulsão de morte acarreta, excesso este que transborda justamente porque não tem possibilidades de integração psíquica. Resta, então, aos psicanalistas, trabalhar, clí- nica e teoricamente, com as duas lógicas pulsionais — às vezes, em oposição; noutras, intrincadas. Faz-se necessá- rio, mais do que nunca, escutar o que o sujeito tem a dizer. Da leitura dos diferentes textos e estilos que compõem esse livro, depreende-se uma apropriação profícua da teoria freudiana naquilo que ela tem de mais fascinante: sua capacidade de fazer trabalhar os conceitos, sempre na tentativa de responder, de maneira consistente, às novas formas de sofrimento psíquico.
topovoltar ao topovoltar ao sumáriotopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados