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Resumo
Resenha de Dominique Fingermann e Mauro Mendes Dias, Por causa do pior, São Paulo, Iluminuras, 2005, 174 p.


Autor(es)
Fátima Milnitzky
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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 LEITURA

Diálogos em torno do pior

Fátima Milnitzky


Resenha de Dominique Fingermann e Mauro Mendes Dias, Por causa do pior, São Paulo, Iluminuras, 2005, 174 p.

Pôr o pior em causa é o desafio a que se propõem Dominique Fingermann e Mauro Mendes Dias na produ ção teórica aqui reunida. O livro é um desdobramento do seminário conjunto proferido pelos autores em lições alternadas. O seminário, de mesmo nome do livro, foi gestado com base em discussões sobre o fim de análise, durante as quais Fingermann e Dias trataram, entre outros temas, da especificidade da ética da Psicanálise que sustenta a práxis e da responsabilidade que dela decorre.

No mundo da instantaneidade, da fluidez e de desengajamentos, o pior representa um ponto sólido no qual a violência destrutiva de si e dos outros pode facilmente fixar residência. O desafio de dirigir-se ao pior é consoante com a ética da Psicanálise e convoca o psicanalista a se implicar com o político e a levar ao leitor sua palavra diante de um mundo que não cessa de colocar novas questões.

Desafio não menos importante configura-se por meio da reunião de passagens que, a despeito da variedade que elas possam apresentar, testemunham algum parentesco, e são resultado de uma escolha. Certas passagens, e não outras, foram escolhidas pelos autores para essa reunião. O parentesco guardado entre elas é a causa do pior. Destaca-se uma pluralidade de temas que versam sobre as identifica ções, a psicoterapia, o sintoma, a angústia, o capitalismo, a perversão, o mercado do olhar, a moda, Beckett, Blanchot, Duras, Unabomber, incidências clínicas, sonambulismo e modernidade. A leitura permitirá vislumbrar que a heterogeneidade dos temas apresentados coloca em relevo o panorama de problemas que concernem a nossa cultura atual.

Mauro Mendes Dias nos adverte, ao admitir a possibilidade da escolha pelo pior, que não se trata de promover ao primeiro plano a reparação ortopédica dos prejuízos ou a admissão resignada como compensação a alguma falta subtraída no passado. Seu ponto de partida coincide com a concepção de Freud, ao elucidar o sentimento de culpa, afirmando que este é capaz de levar ao fracasso os que triunfam.

Ao seguir os passos dos autores, o leitor encontrará a tese freudiana de que a Arte precede a Psicanálise no dom ínio da investigação e da descoberta dos fatos psíquicos. Ao investigar as diversas formulações concernentes às identificações, desde o primeiro Freud até o último Lacan, Dominique Fingermann, além de fazer um recenseamento do conceito na obra de ambos os autores, apresenta produções da literatura nas quais reconhecemos a transfigura ção do pior. Ao examinar a identificação com o Outro, encontra na insustentável leveza do ser, expressão do romance de Milan Kundera, o recurso necessário para sair do nada e da indistinção. Mas esta saída não é sem conseq üências, visto que a leveza insustentável se transforma no peso da falta a ser, pois se uma parte encontra amparo na identificação com o Outro, isto é, com a linguagem e por meio dos símbolos que permitem representar, a outra parte não encontra a mesma saída. É ao poema Traduzir-se de Ferreira Gullar que a autora recorre para descrever a outra parte que, desamparada, “é ninguém... fundo sem fundo... estranheza e solidão... espanto... vertigem” (p. 23). Do diálogo estabelecido com Kundera e Gullar destaca-se uma leitura própria sobre a discordância irreconciliável entre as partes: “uma parte é amparada, obrigada, forçada; a outra, tão leve que é insustent ável” (p. 23).

Para falar da alienação constitutiva da identificação, recorre a Clarice Lispector em Água Viva: “Nesta densa selva de palavras que envolvem espessamente o que sinto e penso e vivo e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que no entanto fica inteiramente fora de mim. Fico me assistindo pensar. O que me pergunto é: quem em mim é que está fora até de pensar?” (p. 25). Como o pensar não se confunde com outras atividades, como calcular, conhecer, acumular saberes e exige que desmontemos idéias preconcebidas, juízos estabelecidos pelo costume, categorias tomadas como naturais, automatismos mentais, para poder ler os conceitos que nos chegam por meio de nossa cultura, Fingermann e Dias convidam o leitor a pensar e a se pronunciar ao se dirigirem ao pior. Sustentam, como na ousadia poética de Jorge de Lima, o desafio de produzir um espaço para a ciência que sonha e o verso que investiga, elaborando textos que se inscrevem com precisão, no campo lacaniano, denominado pelo próprio Lacan de campo de gozo.

Em “Sintoma... ou ang ústia”, lição consagrada à clínica, Dominique Fingermann assinala que, quando alguém resolve procurar um psicanalista, há uma incidência clínica que se faz notar com bastante freqüência, que é o fato de os sintomas terem perdido a função de preservá- lo da angústia (p. 65), embora seja sempre com um sintoma que a experiência de uma análise começa. O instante de emergência da angústia, como sublinha Fingermann, indica um real impossível de suportar, para o qual “não tem remédio, mas tem tratamento: o sintoma é um deles, o psicanalista outro. Tem outros tratamentos” (p. 65).

As modalidades de apagamento do sujeito por meio de seu silenciamento, de seu sonambulismo, ou até de sua explosão, como no caso do Unabomber, constituem o tema central das investiga- ções de Mauro Mendes Dias, pondo em relevo a identifica- ção propiciada pelos significantes da ciência, cujo objetivo último é apagar a Spaltung radical da divisão subjetiva. As patologias forjadas pela associação exemplar entre o capitalismo e a ciência são examinadas pelo autor, que denuncia o objetivo de tal associação, na qual se sustenta a manutenção de uma sociedade de controle, cujas regras são ditadas pelo mercado: medicalizar a saúde e medicar o deprimido, o ansioso, a criança hiperativa. As passagens analisadas oferecem ao leitor um exercício do teorizar e do clinicar, ao fazer uma leitura depurada do malestar cotidiano na cultura, nas instituições e nas subjetividades que figuram na clínica.

A significação do pior considerada por Mauro Mendes Dias orienta-se pelo sentido determinado pelo adv érbio (mais) mal. O sentido do pior determinado pelo adjetivo (mais) mau, como inferior, não será privilegiado. Ao escolher o sentido de mal, encontrado pelo advérbio, valoriza a importância introduzida pela raiz latina daquilo que não devia ser, isto é, o sentido daquilo que vai em dire- ção contrária. Como destaca Dias, o pior “apresenta-se sob a forma de interjeição, evocando um elemento novo que não necessariamente causa mal, ou que é de má qualidade como expresso pelo adjetivo ” (p. 111), e em conson ância com o mal-estar, com aquilo que não se adapta e causa conflito. Pior não tem o status de um conceito no ensino de Lacan, mas, como sublinha Fingermann, é “um dos qualificativos possíveis do princípio lógico que determina o humano ‘mais além’ do princípio do melhor” (p. 43).

Os autores retomam o título do Seminário XIX de Jacques Lacan proferido no Pantheón, nos anos 1971- 1972 – “Ou pior” – e chamam a atenção do leitor para o fato de ser o único seminá- rio proferido ao mesmo tempo que um outro, “O saber do psicanalista”, era proferido em Sainte-Anne. Valorizam o sentido de pior no título do seminário de Lacan como aquilo que contraria a diferen- ça sexual, isto é, a não aceita ção do desejo sexual como articulado de forma diferenciada para um homem e para uma mulher. Quanto ao semin ário “O saber do psicanalista ”, o leitor fica advertido para não tomar como homólogos saber e conhecimento e de que se trata de “aproximar a condição que o saber do psicanalista faz agir, enquanto marcado pela não superposi- ção com a verdade” (p. 112), com vistas a fazer notar uma importante distinção do lugar de onde se fala e para quem se fala. Distinção a qual está condicionada à articulação que se estabelece na relação entre a fala e o lugar a partir do qual se diz.

Ressoam na escrita do livro os dois pólos de formaliza ção presentes na própria obra de Lacan: o poema e o matema, com sua tensão permanente. É digno de nota o diálogo que se estabelece quando dois psicanalistas, com distintos percursos teó- ricos e clínicos e com distintas pertenças institucionais, se reúnem para debater a causa do pior, estabelecendo uma política de encontro e de compromisso com o falar e multiplicam a experiência, ao socializarem-na em forma de livro.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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