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Resumo
Este artigo se propõe destacar a especifi cidade do movimento de ruptura, tal como foi pensado por Pontalis, que, aliado à sexualidade, é condição indispensável à promoção de mudanças, transformações e expansão psíquicas.


Autor(es)
Doris Alvim Botelho
é psicanalista, membro da Formação Freudiana (RJ).


Notas

1. Artigo apresentado no 13º Encontro Anual da Formação Freudiana, realizado em outubro de 2005, tendo como tema Autenticidade e Psicanálise.

2. Jean Bertrand Pontalis, “Sobre o trabalho da morte”, in Entre o sonho e a dor, São Paulo, Idéias & Letras, 2005.

3. Jean Bertrand Pontalis, op. cit., p. 257.

4. Sándor Ferenczi, “Thalassa, ensaio sobre a teoria da sexualidade”, in Obras Completas, vol. III, São Paulo, Martins Fontes, 1993.

5. Conforme observa Luís Cláudio Figueiredo em Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, em “Thalassa”, o termo pulsão de morte aparece, na maioria das vezes, entre parênteses; como se para Ferenczi o essencial da pulsão de morte, como mecanismo de ruptura, fosse realmente essa tendência autotômica, essa aptidão do organismo para se separar de uma parte de si mesmo, morrendo parcialmente para se salvar.

6. Diferentemente da morte patológica, ou necrose, a apoptose é uma autodestruição celular programada e silenciosa, que implica a ocorrência de perdas necessárias ao funcionamento e à sobrevivência do organismo.

7. Resenha não publicada do livro Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, de Luís Cláudio Figueiredo.

8. Sándor Ferenczi, Sin simpatia no hay curación – El diario clínico de 1932, Buenos Aires, Amorrortu, 1997, p. 49.

9. Sándor Ferenczi, “O problema da afi rmação do desprazer”, op. cit., vol. III.

10. Daniel Kupermann, Ousar rir: humor, criação e Psicanálise, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

11. Daniel Kupermann, op. cit., p. 216.

12. S. Freud, “Além do princípio do prazer”, in Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1992, vol. XVIII.

13. S. Freud, “O problema econômico do masoquismo”, op. cit., vol. XIX.

14. S. Freud, “O ego e o id”, op. cit., vol. XIX.


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 TEXTO

Eros, Thânatos

e a imprescindível solidariedade entre sexualidade e pulsão de morte [1]


Doris Alvim Botelho


Fazer do conceito de pulsão de morte o protagonista deste ensaio não será destacá-lo do dualismo no qual se insere para pensá-lo independente. Afinal, se a feitura dos laços libidinais não é prerrogativa apenas de Eros, e a agressividade não pertence exclusivamente à esfera de Thânatos, não seria lícito pensá-los separadamente, ou emancipá-los a partir de um enquadramento norteado pela égide do bem e do mal; enquadramento que desconsideraria, inclusive, a indiscutível solidariedade que se revela quando um precisa do outro para a consecução de seus objetivos.

Privilegiar Thânatos, contudo, não será também descortinar-lhe todas as facetas e percorrê-las, pois que são muitas, nem tampouco comboiá-lo passo a passo em sua errância; será talvez, e tão somente, considerálo à luz da observação formulada por Pontalis [2], de que nenhuma fi guração da pulsão de morte pode obliterar o essencial da intuição freudiana, ou seja, seu processo de ruptura, de desfazimento.

Desta feita, resgatar Thânatos de seu fundo silencioso será trazê-lo à tona, um pouco, para pensá-lo no que lhe é mais autêntico, seu indefectível processo de ruptura, sua aptidão para desobrigar, aptidão que permite ao novo acontecer.

Ao que parece, os questionamentos que perpassam o conceito de pulsão de morte se aliam, muitas vezes, às especulações sobre o que teria levado Freud a enunciar um tal conceito, especulações que vão desde as atrocidades da guerra até a morte de sua filha Sophie. No entanto, ainda segundo Pontalis, talvez se possa pensar que independentemente de motivos individuais ou coletivos, a morte tenha sempre habitado o próprio Freud, construindo e constituindo a Psicanálise desde sempre, tanto quanto a sexualidade.

De sorte que, se, por um lado, a morte acaba sendo afastada como irrepresentável, por outro, ela retorna na obra “num conceito inconcebível, a não ser que seja ele que nos conceba, que é a pulsão de morte” [3].

Conceito inconcebível, pois que já de antemão reúne, na própria expressão que o enuncia, embaralhando- as, conchavando-as mesmo, a pulsão e a morte.

Para Ferenczi, como se pode acompanhar no ensaio conhecido como “Thalassa, ensaio sobre a teoria da sexualidade” [4] (1924), a pulsão de morte [5] é equiparada ao mecanismo de autotomia, mecanismo que retrata justamente uma solidariedade entre a vida e a morte, uma cumplicidade entre a fragmentação e a recriação de si, com base em seus próprios restos.

Isso porque a autotomia é o mecanismo através do qual alguns seres vivos, quando de uma ocorrência traumática, abrem mão de um pedaço de si mesmos, deixam cair fora o pedaço ferido de seu corpo, para que o restante do organismo possa sobreviver; de sorte que abrir mão de um pedaço de si e se desvencilhar de suas feridas é prestar uma solidariedade à vida, morrendo parcialmente para se salvar.

Como toda autotomia pressupõe a concomitância da regeneração, o organismo recria o corpo na parte afetada e perdida de seu corpo.

Nesse jogo de luz e sombra entre a vida e a morte, haveria então uma morte que não mata, pois que assegura ao ego sua integridade narcísica, e uma vida que o ameaça, pois que carrega consigo a possibilidade da morte. Jogo de luz e sombra, em que a morte protege a vida, e a vida introduz a morte.

Nada muito distante do que a biologia contemporânea vem mostrando por meio de mecanismos como a apoptose, que se constitui em um tipo de morte celular programada, uma autodestruição das células que implica a promoção de mudanças, de transformações, de metamorfoses. Inscrita no próprio nome, a apoptose, palavra derivada do grego, signifi ca o ato de cair visando à renovação [6].

Em “Thalassa” (1924), ao equiparar o mecanismo de autotomia à pulsão de morte, Ferenczi confi gura a existência de um mecanismo de funcionamento que atua também na dimensão psíquica, e que opera por meio da clivagem ou do recalque. De modo que essas mortes parciais, assim chamadas por Chaim Katz [7], que fazem parte de nós e que despertam em socorro da vida, são uma defesa emergencial e derradeira contra a dor insuportável. Ou como afi rma Ferenczi em seu Diário clínico, “são instintos vitais organizadores, que trazem a loucura ao invés da morte” [8].

Não obstante o caráter defensivo da autotomia, caberia pensar, por outro lado: haveria expansão, evolução, transformação sem essas mortes parciais? Seria a autotomia apenas um dispositivo de defesa, de negação do desprazer, ou pode-se pensá-la também como um dispositivo inerente ao processo de expansão, de afi rmação do desprazer?

Escreve Ferenczi em 1926, no ensaio sobre a afi rmação do desprazer” [9], que essas mortes parciais, essa capacidade de romper e de se recriar, deixarão de ser apenas um recurso do psiquismo para se defender do inevitável sofrimento provocado por uma situação traumática, para se constituírem, também, nas renúncias e nas perdas que precisamos fazer, pois que se fazem inerentes ao próprio movimento de expansão da vida.

Assim posto, Ferenczi afirmará que, seja na dimensão orgânica, seja na dimensão psíquica, a renúncia a partes amadas do ego e a introjeção do que é estranho são processos paralelos, e que a autodestruição, no caso da aceitação do desprazer, converte-se verdadeiramente em causa do devir.

Segundo Ferenczi, poder-se-ia inferir, por meio do mecanismo de autotomia – mecanismo em que a ruptura e a regeneração se fazem tão concomitantemente – uma indiscernibilidade entre as pulsões de vida e de morte. Poder-se-ia pensá- las confundidas, expressando-se como movimentos, movimentos de ruptura e ligação, de corte e restauração.

Ferenczianamente falando, seria possível afi rmar que não há o se fazer sem essas rupturas, que não há o viver sem essas mortes parciais, sendo tão inevitável morrer muitas mortes na construção da vida, quanto morrer outras tantas no percurso de uma análise.

Introjeção para Ferenczi, sublimação para Freud, segundo Daniel Kupermann [10], é pela sublimação das pulsões que a análise poderá favorecer ao sujeito a busca de suas realizações e alegrias.

Muito distante da concepção primeira de sublimação, em que sublimar incluía as mais altas realizações culturais, a sublimação se inscreve, agora, no movimento expansivo das pulsões, movimento que impõe, ainda seguindo Kupermann, a passagem pelo masoquismo primário, “a interferência de um movimento disjuntivo, que obriga o ego narcísico para além dos seus limites constituídos, promovendo a desterritorialização do sujeito, condição para uma existência criativa” [11].

Se, em 1920, Freud inaugura o conceito de pulsão de morte [12], é somente em 1924, no artigo consagrado ao masoquismo [13], que ele vai tecer-lhe os contornos.

Assim, com base na formulação de que a tendência do aparelho psíquico é reduzir ao máximo as tensões e intensidades, Freud postulará a precedência do princípio de nirvana e sua estreita vinculação à pulsão de morte, uma vez que somente a partir da mediação realizada pela função materna o psiquismo passaria a ser regulado pelo princípio de prazer. Se a fi nalidade da pulsão é a descarga imediata, é pela mediação do outro, que se oferece como objeto de satisfação, que a força pulsional poderá se reverter em um circuito pulsional, evitando o imediatismo da descarga e inscrevendo-se no universo representacional.

Sob essa ótica afi rma-se que o se fazer humano depende do outro, é engendrado pelo outro, já que nascemos incompletos, biologicamente incapazes de sobreviver sem o auxílio do que se reconhece como função materna. Nesse sentido, pensar esta vinculação ao outro, que nos alimenta e erogeiniza, é pensar que o se fazer humano vai se fazendo nesse encontro, e a partir de encontros.

Desta feita, em 1924, ao anunciar a instauração da hegemonia de Thânatos e sua derrubada pela intromissão bagunceira de Eros, a instauração e a derrocada da supremacia do princípio de nirvana face à instalação do princípio de prazer, Freud estabelece e desconstrói a polaridade entre as pulsões, enlaçando-as.

No entanto, mais do que um enlaçamento entre pulsões que se dizem opostas, o que Freud vai evidenciar por meio do masoquismo primário é que não se trata de pensar de um lado a ligação, prerrogativa do barulhento Eros, e de outro a disjunção, apanágio do silencioso Thânatos, em um movimento de ruptura aliado à sexualidade.

Pode-se, portanto, observar, na condição própria do masoquismo primário, o movimento disruptivo da pulsão de morte que se faz presente e concomitantemente à constituição auto-erótica do ego.

Freudianamente falando, então, poder-se-ia dizer que o masoquismo primário vem prestar contas dessa miscelânea feita menos de oposição do que de coexistência, dessa mixórdia feita de organização e caos, ligação e ruptura. E é essa possibilidade de ruptura, essa autotomia psiquicamente engendrada que, dando passagem para a possibilidade de novos investimentos, abre as portas para a recriação de si mesmo.

Não sendo da ordem da patologia, muito pelo contrário, o movimento de ruptura anunciado por meio do masoquismo primário é o que permite a constituição de novos objetos de satisfação, pois que, na emergência do desejo, é o que cumpre romper com o organizado, com o estabelecido, esgarçando a fi xidez para permitir outros encontros, outros refazimentos, ao preço, é claro, dos inevitáveis riscos de se inventar e reinventar, ao risco de apostar, de arriscar e de viver.

Se há dor no masoquismo primário, pode-se inferir que esta seja dor de ruptura e rompimento, de passagem e ultrapassagem, de perda e de expansão; dor que atua diferentemente do sofrimento explícito e explicitado, do sofrimento estrepitoso e oferecido que serve, muitas vezes, de anteparo e proteção. Dor que reverbera diferentemente da angústia, na medida em que esta incide justamente no aprisionamento do ego a sua imagem narcísica.

A dor no masoquismo primário seria provocada pela violação das fronteiras e dos limites do ego narcísico, esta organização que, consagrada à unifi cação e à síntese, tem de se haver com aquilo que lhe desacata, pois que se constitui em um movimento outro.

Diferentemente do recurso aos masoquismos secundários, onde o sujeito é ao mesmo tempo diretor e roteirista de seu sofrimento, sofrimento que dá amparo e alívio, permitindo um apaziguante reconhecimento de si, a dor no masoquismo primário atuaria como uma avalanche interna que se esparrama por dentro, anunciando outra possibilidade de existência, ou até mesmo, a própria existência.

No processo de sublimação, é essa possibilidade de ruptura que, propiciando a transformação da libido de objeto em libido narcísica, ou seja, favorecendo o desligamento dos investimentos objetais existentes, abre as portas para a possibilidade de outros investimentos. Ainda essa transformação, chamada por Freud de dessexualização da libido [14], promovida pela ação de Thânatos, forma uma energia neutra e deslocável que tanto pode fi car a serviço de Eros, quanto de Thânatos. De modo que é a pulsão de morte que quebra os vínculos constituídos por Eros para permitir que o próprio Eros faça outras vinculações, reforçando, nesse intento, uma indiscutível cumplicidade entre as pulsões.

Foi com base na conceituação da pulsão de morte que Freud questionou a efi cácia da técnica analítica, e, sem dúvida alguma, há de fato e de direito uma face mortífera que cumpre reconhecer. Contudo, é a pulsão de morte como processo de ruptura que destitui qualquer vocação para a mesmice, para a fi xidez, para a totalização, permitindo o novo, a diferença, o inaugural. E aí sem dúvida se encontra o que lhe é mais próprio: admite a errância, a imprevisibilidade, as necessárias quebras do que em sua totalidade nos esgota, as imprevisíveis fraturas que desacatam o que se pretende uno.

Se foi a partir da conceituação da pulsão de morte que Freud questionou a efi cácia da técnica analítica, talvez valesse questionar se isso se deve a sua especifi cidade, ou a uma clínica que, ao privilegiar a segurança de Eros, exclui a presença da pulsão de morte, de modo que só lhe resta se esgueirar por entre as brechas, os desvãos. Talvez valesse questionar se isso se deve a uma clínica que a escuta simplesmente como o avesso da pulsão de vida.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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