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Resumo
A criação do conceito de função-alfa e o estilo de Bion podem ser vinculados pela experiência da alteridade. Notar como ela se faz presente em seu pensamento favorece a compreensão de sua teoria do pensar.


Autor(es)
Adriana Salvitti
é psicanalista, psicóloga e doutoranda em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Bolsista do CNPq.


Notas

1. Para maiores esclarecimentos sobre as etapas e as características do processo envolvido na abstração da realidade concreta, remeto o leitor ao ilustrativo “processo global de simbolização”, concebido por Rezende com base nos conceitos de Bion, presente no livro de A. M. Rezende e I. Gerber, A psicanálise “atual” na interface das “novas” ciências, São Paulo, Via Lettera, 2001.

2. M. Lansky, “Philosophical Issues in Bion’s Thought”, in J. S. Grotstein, org. Do I dare disturb the universe? London, Karnac Books, 1993, p. 430.

3 E.M.U Cintra e L.C. Figueiredo, Melanie Klein: estilo e pensamento, São Paulo, Escuta, 2004.

4. E. Bianchedi et al., “Beyond Freudian Metapsychology”. International Journal of Psychoanalysis, v. 65, 1984.

5. Apesar de o traumático não ser um articulador conceitual explícito do pensamento de Bion, ele expressa muito da qualidade dos fenômenos descritos por este autor.

6. W. Bion, “On arrogance” (1957b), in Second thoughts, London, Karnac Books, 1993.

7. W. Bion, Experiences in groups, London, Tavistock Publications, 1961.

8. W. Bion, “Differentiation of the psychotic from the non-psychotic personalities” (1957a), in Second thoughts, London, Karnac Books, 1993.

9. D. Meltzer, O desenvolvimento Kleiniano III: o signifi cado clínico da obra de Bion, São Paulo, Escuta, 1998, p. 17.

10. W. Bion, Learning from experience (1962), London, Karnac Books, 1989, p. 19.

11. A. M. Rezende, “O pensamento de Bion: um universo em expansão”, Revista Brasileira de Psicanálise, v. 26, n. 3, São Paulo, 1992, p. 283.

12. M. Lansky, op. cit., p. 429.

13. W. Bion, “On arrogance” (1957b), in Second thoughts, London, Karnac Books, 1993, p. 91-92.

14. W. Bion, Cogitações, Rio de Janeiro, Imago, 2000, p. 46, grifos do autor.

15. W. Bion, op. cit., p. 56, grifos do autor.

16. T. Ogden, “This art of psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries”. International Journal of Psychoanalysis, v. 85, 2004, p. 864.


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 TEXTO

Função-alfa e estilo de pensamento em Bion:

uma aproximação por meio da experiência da alteridade


Adriana Salvitti


O conceito de função-alfa foi formulado por Bion no início da década de 1960, com base nas exigências de sua clínica, associadas a inadequações que, para ele, existiam nas teorias de Freud e de Melanie Klein e pediam novas considerações e abordagens epistemológicas. Seu desenvolvimento ocorreu por meio do atendimento de pacientes considerados difíceis (como esquizofrênicos, neuróticos graves, dependentes químicos) nos anos 50, combinado a um estilo característico, passível de ser percebido desde suas investigações sobre o funcionamento mental de grupos realizadas nos anos 40.

Apesar de o trabalho com grupos e o conceito de função-alfa não estarem diretamente relacionados em termos teóricos; de o primeiro representar uma via de abordagem psíquica diferente daquela do atendimento individual, é possível notar um vínculo implícito entre essas atividades, dado por algo de essencial no modo de Bion pensar e elaborar suas idéias. Esse modo levará autores – como Donald Meltzer – a buscar, nas diferentes facetas do estilo de Bion, uma linha de inteligibilidade para seu método de exposição teórica e o objetivo subjacente a ele. Acredito que uma característica essencial dessa faceta seja o modo como a alteridade se apresenta em seu pensamento.

Em linhas gerais, o conceito de função-alfa representa uma qualidade da personalidade para lidar – de modo criativo e pessoal – com os dados de uma experiência emocional que, sem essa função, permaneceriam presentes, mas não assimilados pelo eu. Os dados não trabalhados por essa função, nomeados de elementosbeta, são associados por Bion na forma de uma analogia à matéria não digerida e tóxica do processo digestivo. Assim, a operatividade da função-alfa está diretamente relacionada com esses dados e não pode ser pensada independentemente deles – seja por sua existência, seja por características do processo de conversão da matéria bruta em alimento, ou melhor, em uma abstração [1]. Essa função age no início do processo de sofisticação do pensamento, modifi cando o que há de concreto na experiência com o mundo interno ou externo, em direção à formação do pensamento simbólico.

Pode-se afirmar, então, que essa função pressupõe a presença de uma alteridade, por vezes radical, e seu bom funcionamento implica admissão e sustentação psíquica e emocional da mesma. Prosseguindo com associações abstraídas do trato digestivo, a assimilação de dados de uma experiência não é, para Bion, o mesmo que dissolver ou eliminar algo de sua alteridade, e representa os primeiros passos para que esta venha a ser tratada como tal.

Guardadas as devidas proporções, as características da personalidade ligadas à função-alfa estão relacionadas à maneira como Bion desenvolve e apresenta suas próprias idéias. A observação da proximidade existente entre essas características, seu estilo e suas elaborações mais abstratas pode facilitar a apreensão do conceito e o contato com sua teoria. Para esse autor, há uma via de mão dupla constante entre as abstrações teóricas e a prática, ainda que ela nem sempre esteja clara em suas discussões. Como diz Lansky, “em termos de formação de teoria, o trabalho de Bion sempre lida com o concreto, não importa o quão abstrato e matemático pareça ser” [2]. Minha proposta será, portanto, destacar o que há de essencial no conceito de função-alfa e formar uma idéia sobre aquilo que tornou necessária sua concepção.

O processo de criação desse conceito em particular e as teorizações de Bion em geral estiveram intimamente ligados a um interesse fi losófi co pelos fundamentos da Psicanálise e do processo analítico, assim como à caracterização de seus elementos essenciais. Em sua teoria, são freqüentes as refl exões sobre o método e as condições de possibilidade para o acesso da personalidade à realidade de uma experiência emocional, tanto do lado do paciente quanto do lado do analista. O conceito de função-alfa procurou dar conta de descrever a maneira como a realidade se tornaria psiquicamente disponível e, além de ser um dos principais componentes de sua teoria do pensar, é um dos dispositivos que levaram à elaboração dessa mesma teoria. Para desenvolver essa idéia proponho que, em vez de entrarmos em um terreno mais característico da filosofia, realizemos uma aproximação com algumas questões que a prática clínica colocava aos psicanalistas naquela época.

Durante os anos 40 e 50, discípulos de Melanie Klein na Inglaterra, assim como psicanalistas fora daquele país, procuraram adaptar a técnica clássica ao atendimento de psicóticos, contribuindo para a continuidade de um campo de trabalho e de pesquisa ainda bastante incipiente e incerto. Até então, esse campo havia sido pouco explorado pela psicanálise e era encarado com desconfi ança e descrédito quanto à efetividade do tratamento. Porém, muitos trabalhos, realizados principalmente a partir daqueles anos, são considerados bem-sucedidos e levaram a importantes avanços na técnica e a ampliações conceituais, como a maior compreensão do funcionamento mental primitivo e de sua relação com o processo de formação simbólica.

Quanto à técnica, apesar de o grupo de analistas próximos a Klein entender que dava prosseguimento às recomendações freudianas com apenas algumas alterações, criaram-se, de fato, novos procedimentos e objetivos e, assim, um novo estilo clínico [3], acrescido de uma metapsicologia própria [4].

No entanto, é principalmente por meio dos trabalhos de Bion que se tornam explícitas as difi culdades do analista durante o atendimento e a qualidade pouco fi rme do terreno pesquisado. O conhecimento obtido não tornava esse campo necessariamente mais viável e mais acessível ao psicanalista em sua prática. A qualidade traumática da relação entre paciente e analista, e as condições para a observação e investigação analítica foram temas freqüentes de suas refl exões. [5]

Bion destacou a dimensão do desconforto, da incerteza e do desamparo do analista, associada à dispersão e à fragmentação dos dados da experiência clínica. Contudo, seus relatos de caso também evidenciam uma franca disposição para suportar situações de intensa pressão emocional, por meio da qual podemos apreender algo do lugar e do modo de ser analista.

Seu artigo “On arrogance”, de 1957 [6], ilustra bastante bem a situação precária vivida pela dupla analítica em um determinado momento da análise, quando as interpretações conhecidas não serviam mais e o paciente mal podia articular-se verbalmente. Aos poucos, apresenta a saída inusitada a que consegue chegar com a ajuda do paciente, a partir da sensação de estar perdido, e ainda assim ser capaz de sustentar (stand) a situação. Vale a pena conferir no dicionário a riqueza de sentidos da palavra inglesa stand, presente no texto original e utilizada por Bion para descrever seu estado mental durante a sessão. Em trabalhos posteriores, serão amplamente desenvolvidas as características das funções analíticas, como a capacidade de conter e de sonhar, na sessão, experiências primárias como essa. Foi com base nesse tipo de situação que o conceito de função- alfa foi desenvolvido.

Uma das principais inquietações de Bion diz respeito ao que é feito ou como se reage ao novo e ao desconhecido, procurando, com isso, chamar a atenção dos psicanalistas para a experiência de intolerância às emoções e ao estranhamento e desconforto gerado pelo encontro com o outro e com o outro de si mesmo.

Desse modo, em vez de a dimensão do desconforto, da frustração e da incerteza revelar uma difi - culdade de ordem exclusivamente pessoal do analista ou um problema do paciente e de suas psicopatologias, ela expressa algo da dinâmica psíquica na relação analítica, compondo parte das refl exões de Bion sobre as conseqüências de se investigar a vida mental, suas emoções e seus distúrbios. É possível considerá-la uma presença ora silenciosa, ora ruidosa, que marca grande parte das elaborações teóricas do autor, influencia as discussões epistemológicas e metodológicas e, inclusive, transborda para o estilo de sua escrita e de suas comunicações.

É desde seu trabalho com grupos que se pode notar um posicionamento clínico e uma atitude mental de curiosidade e de abertura a certas particularidades dos fenômenos, referentes a seus aspectos primitivos. Bion percebeu, nos grupos, uma simultaneidade entre comunicações verbais e não-verbais, que o levou a sugerir a existência de uma mentalidade grupal de origem protomental ou proto-somática, onde o físico e o psíquico estariam indiferenciados [7]. Seguindo e ampliando a linha de pensamento kleiniano acerca do signifi cado das posições esquizo-paranóide e depressiva, destacou a presença de aspectos arcaicos e reações típicas do funcionamento psicótico em um grupo de trabalho e, também, na personalidade, discriminando, primeiramente, duas áreas distintas e coexistentes na esquizofrenia e, posteriormente, em todas as pessoas: a personalidade psicótica e a não-psicótica [8].

Essa abertura a simultaneidades paradoxais presentes nos fenômenos se expressa no uso, bastante criativo, dos conceitos da Psicanálise e de outras disciplinas, com o propósito de auxiliar suas descrições. O conceito de perspectiva reversível (que tem como modelo o vaso de Rubin) e a imagem do cubo de Necker (cf. Bion, 1963 e 1961, respectivamente) são exemplos da tentativa de exprimir, ao mesmo tempo, o verso e o reverso ou a fi gura e o fundo de uma mesma situação. É, também, a ambigüidade de conceitos da Matemática – como função e fator – aplicados à Psicanálise que Bion procurou manter.

As ambigüidades existentes em seus textos e o estado de dúvidas e incertezas do analista (o qual Bion salientou como parte importante do método psicanalítico) estão presentes em sua escrita e em suas comunicações orais. Não é incomum seu estilo gerar no leitor uma espécie de tensão, facilmente creditada à difi culdade de seu modelo de pensamento e à obscuridade de suas exposições. No entanto, Meltzer irá sugerir que essa fonte de tensão deverá ser buscada nos processos de identifi cação do leitor com aqueles de quem Bion trata, assim como no “fracasso da identifi cação com o próprio Bion” [9]. De certa forma, o contato com sua teoria pressupõe tolerância ao estranhamento provocado por seu estilo, dado pela singularidade de seu método de exposição, combinado à natureza dos fenômenos observados. Com esse autor, a necessidade de o leitor revisitar os textos tornase radical.

A disposição e a abertura de Bion ao que excedia os signifi cados existentes, vinculadas à especifi cidade de sua clínica, levaram à modifi cação e à ampliação de conceitos de Freud e de Klein. Porém, além de procurar torná-los mais apropriados às suas observações, Bion se interessou pelas condições que permitiriam ao analista dar continuidade às investigações clínicas mesmo às escuras. Era isso que faltava a certos pacientes: a possibilidade de suportar uma situação de incertezas, ignorância e dúvidas e, ainda assim, manter a capacidade para pensar. A função-alfa, um híbrido de criação e de ampliação conceitual, foi o que permitiu a ele “prosseguir com a comunicação sem ter de esperar pela descoberta dos fatos que faltavam e sem fazer afi rmações que poderiam sugerir que os fatos já eram conhecidos” [10].

Podemos dizer, então, que essa função é um modo de pensar que torna psiquicamente disponível o desconhecido, e que sua teoria está próxima de um método voltado para a sustentação de paradoxos, da incerteza e do não-saber. Porém, isso não signifi ca a desqualificação de qualquer conhecimento obtido, ao contrário, é um destaque ao que não se reduz e se fixa a alguma forma de compreensão defi nitiva, cuja importância está no processo de formulação e reformulação de idéias. Isso, por sua vez, só é possível por meio de uma atitude que depende da capacidade de se lidar com a frustração. Aqui está contida a pedra angular de sua obra: a abordagem da mente e de seu funcionamento por meio do processo de formação do pensamento e da atividade de pensar. Essa idéia está bastante bem colocada por dois autores que se dedicaram ao estudo de sua teoria. Para Rezende, “...uma das grandes contribuições de Bion, talvez a maior no contexto de um diálogo com a filosofia, é que ele reconheceu o primado do pensar sobre o conhecer, do pensamento sobre o conhecimento. O conhecimento se defi ne pelo conhecido, pelo cógnito; o pensamento, pelo desconhecido, pela incógnita. Pensamos o que não conhecemos, pensamos e desejamos o que não temos, pensamos e sonhamos para criar o que não existe”. [11]

Para Lansky, a abordagem pela via do pensamento permitiria “chegar aos fundamentos de qual tipo de pensamento é capaz de ser utilizado no processo de pensar, isto é, memória, armazenagem e transformação para pensamento de sonho, conceitos e idéias” [12], e quais pensamentos não poderiam sofrer essa transformação, seguindo outros destinos. Essa é uma tarefa indispensável ao psicanalista e essencial ao trabalho analítico, na medida em que permite verifi car como o paciente experimenta as interpretações e a experiência emocional da sessão.

O trabalho com pacientes difíceis mostrava que as impressões captadas da realidade interna ou externa, apesar de conscientes, poderiam não constituir as fantasias, a memória, os pensamentos oníricos e permanecerem, assim, indisponíveis ao pensar e ao conhecimento. Segundo Bion, era como se não houvesse separação entre os sistemas consciente e inconsciente e como se este último ainda tivesse que ser criado. Uma de suas principais questões era justamente compreender o que – e como – converteria os dados brutos e concretos de uma experiência emocional em matéria psíquica, isto é, em algo capaz de ser esquecido, sonhado, recordado, pensado. Parte dessa solução derivou da constatação de que a identifi cação projetiva – compreendida como uma defesa da posição esquizo-paranóide – poderia ser, ao mesmo tempo, uma forma de comunicação pré e não-verbal.

No artigo “On arrogance”, citado anteriormente, Bion notou a ambigüidade da ação da identificação projetiva por meio do comportamento arrogante do paciente: ao mesmo tempo que este atacava qualquer compreensão obtida e a capacidade para se compreender, havia um forte apelo para que o analista suportasse e lidasse com aspectos dolorosos de sua personalidade.

No que diz respeito à técnica, para que essa forma de comunicação seja notada, é preciso que o analista apreenda o verso e o reverso da situação, isto é, que a intolerância à frustração e à presença de objetos maus corresponda a uma necessidade por objetos bons [13]. Tanto um quanto o outro deve ser experimentado como uma não-coisa, uma vez que, para a sobrevivência psíquica, não basta o conforto material, nem o alívio físico conquistado momentaneamente por meio de uma projeção ou de um espasmo muscular, e, sim, a conversão desse conforto e do alívio em desejo e em pensamento – o que é impossível de se ter de modo concreto.

Parece que, para Bion, mesmo na mais ferrenha intolerância à frustração, pode haver, no fundo de cada experiência, uma necessidade por aquilo que ele identifica como “material terapêutico genuíno”, ainda que este nunca seja conquistado. Voltarei a isso depois.

À medida que a identificação projetiva passou a ser observada como forma de comunicação essencial ao desenvolvimento da mente e da vida emocional, as compreensões sobre o funcionamento do pensamento primitivo foram bastante ampliadas, assim como a importância da função do seio em estabelecer vínculos e oferecer espaço psíquico para conter a projeção de uma realidade intolerável. Nesse sentido, as ligações intrapsíquicas entre os pensamentos pré ou nãoverbais têm uma relação direta com o tipo de ligação intersubjetiva que ocorre no ambiente, em especial, na atualidade da sessão. As qualidades da mente do analista como aquele que efetivamente tolera, acolhe e modifi ca as identificações projetivas levariam à geração de signifi cados referentes a essa experiência e ao desenvolvimento do pensamento verbal correspondente.

A capacidade de pensar em meio a pressões emocionais, sem precipitar a concepção de significados – que poderiam servir mais para acalmar o analista e impedir uma aproximação com o sofrimento do paciente – foi associada, por Bion, a um estado mental próximo ao do sonho e considerada uma ferramenta essencial para se lidar com esse tipo de comunicação.

A teoria do pensar, apresentada em 1962, sistematizou as questões e os conceitos desenvolvidos na década de 1950 e iniciou a formalização de uma metodologia de trabalho concernente a eles. Vale dizer que a palavra metodologia não é a mais adequada, pois, como estamos vendo, não se trata de um conjunto de regras e de procedimentos extrínsecos à personalidade e à relação entre um paciente e um analista.

Parte das reflexões que levaram Bion a propor essa teoria pode ser encontrada no livro Cogitações (2000), uma compilação de anotações variadas, publicadas postumamente, com as quais podemos acompanhar um pensamento em construção. Nele, Bion relata de maneira muito livre suas inquietações com questões clínicas e algumas das idéias que, aos poucos, ajudaram- no a sistematizá-las e a pensálas. Há diálogos que estabeleceu com as idéias de Freud e a forma com que fez uso desse autor para desenvolver seu pensamento. Cito dois trechos que me parecem proeminentes e ilustrativos:

“Hoje voltei a suspeitar que os eventos reais da sessão com X estejam sendo transformados em um sonho, quando, num certo ponto, suspeitei que minha interpretação estivesse sendo convertida em um sonho. [...] Tenho a impressão de que o deslocamento etc. de Freud seja relevante; mas ele levou em conta apenas a atitude negativa, o sonho ‘escondendo’ algo, e não o modo pelo qual o sonho necessário é construído” [14].

Alguns dias depois ele diz: “...o que Freud queria dizer com ‘trabalho onírico’ era que o material inconsciente, que de outro modo seria perfeitamente compreensível, estava sendo transformado em um sonho, e que o trabalho onírico precisava ser desfeito para fazer com que o sonho, então incompreensível, fosse compreensível. [...] O que eu entendo é que o material consciente tem que ser submetido ao trabalho onírico para tornar-se adequado ao armazenamento e à seleção; portanto, passível de sofrer transformação da posição esquizo- paranóide para a posição depressiva...” [15].

O sonho e a atividade de sonhar tornaram-se fundamentais para a elaboração de suas questões, sendo utilizados tanto como conceitos a serem trabalhados teoricamente para explicar a formação psíquica quanto como uma qualidade da mente para pensar os acontecimentos da própria sessão. O sonho sonhado pelo analista durante a sessão ganhará o status de conceito e será denominado de rêverie – um dos fatores da função-alfa.

O trabalho de sonho foi, assim, pensado em um contexto diferente daquele apresentado por Freud, o que, primeiramente, levou Bion a acrescentar a incógnita “alfa” ao termo “trabalho onírico” – para diferenciá- lo do conhecido uso freudiano – e a formular, mais tarde, o conceito de função-alfa, para evitar associações com quaisquer termos existentes. Isso permitiu a ele singularizar sua teorização e, principalmente, evidenciar a dimensão do conceito como uma incógnita. Antes de desenvolver essa última idéia, vamos à discussão das citações apresentadas.

Nas citações, Bion se diferencia de Freud e procura apresentar seu próprio ponto de vista para compreender os fenômenos do consultório. Na primeira, faz duas afi rmações que chamam a atenção: diferencia eventos reais de sonho e diz que procurava compreender a maneira de o sonho necessário ser construído. Fica a pergunta acerca do que ele entende por necessário e por evento real.

A palavra real foi traduzida de actual, presente no texto original em inglês, e signifi ca tanto algo verdadeiro e efetivo quanto o que é presente. É importante levar em conta essa amplitude de sentidos, pois eles remetem a várias idéias que ajudam a situar os contornos do pensamento de Bion, mas que, pela extensão do assunto, não poderei discutir em profundidade. Inicialmente, da reunião desses sentidos é possível dizer que um evento real é um evento presente na atualidade da sessão, que tem força de verdade e de realidade. Os eventos do aqui e do agora da sessão são aqueles que têm a maior importância para Bion, já que são aqueles que – efetivamente – podem ser observados quanto ao uso feito pelo paciente e às implicações de sua presença para ele. A síntese dos dados da sessão, realizada na posição depressiva, poderá gerar tanto um sonho-alucinação, típico da personalidade psicótica, carregado de concretude, que serve para ser expulso e ignorado, quanto um sonho passível de ser sonhado, ou seja, capaz de dar fi gurabilidade, existência e expressão psíquica à situação presente.

Quanto à idéia de necessidade, temos que, em contraste à atitude negativa identifi cada como aquilo que se esconde, é possível considerá-la uma positividade – algo que se impõe e que se afi rma. O sonho necessário é aquele que deve ser sonhado; os eventos reais e a interpretação necessitam ser sonhados não apenas pelo paciente mas também pelo analista, estimulado por algo que se impõe e que exige trabalho, como na identifi cação projetiva.

No entanto, a comunicação de ansiedades, de elementos pré-verbais e não simbólicos pela identifi cação projetiva pede uma modifi cação cuja importância não está somente na formulação de um signifi cado adequado à experiência do paciente, e, sim, na condição emocional do analista para tolerar e receber esses elementos primitivos e caóticos sem rejeitálos. Desse modo, o paciente pode introjetar e se identifi car com uma função que, fundamentalmente, admite a presença de uma alteridade, e cujo recurso para lidar com o sofrimento depende de certo desamparo; isto é, sustentar um estado de não-saber prévio que evita a captura pelo eu da experiência do outro, de modo a satisfazer exclusivamente aspectos narcísicos.

A importância do sonhar, para Bion, pode ser exemplifi cada por uma afi rmação do psicanalista norte-americano Thomas Ogden, que ressalta uma das principais ambigüidades do pensamento bioniano – o binômio sonhar/despertar:

“Apesar de a situação analítica não ser estruturada em muitos sentidos, ela também tem uma qualidade de direcionamento derivada do fato de a psicanálise ser fundamentalmente um empreendimento terapêutico, cujo objetivo é incrementar a capacidade de o paciente estar o mais vivo possível para a totalidade do espectro da experiência humana. Despertar de modo emocional para a vida é, para mim, sinônimo de tornar-se progressivamente capaz de sonhar a experiência, o que signifi ca sonhar a si mesmo para a existência (which is to dream onself into existence)” [16].

Grande parte dos trabalhos de Bion esteve voltada para a refl exão do “modo pelo qual o sonho necessário é construído”, isto é, dos processos e das condições mentais envolvidas na destruição de signifi - cados intoleráveis e na criação de signifi cados até então inexistentes, onde a ênfase não está só na elucidação do processo em si, mas também na importância da formação onírica para a vida psíquica, para o desenvolvimento da personalidade e para o crescimento em sofisticação da mente. A idéia de sofisticação é, para ele, a capacidade de abstração do pensamento e, portanto, da não saturação e da não concretização da experiência com a realidade. É com essa qualidade que se torna possível não ignorar ou rechaçar a existência de uma alteridade, e, sim, admiti-la sem que ela seja reduzida puramente à identidade do sonhador.

A atividade de sonhar abre caminho para a aquisição de algo essencial ao psiquismo, qual seja, o material terapêutico genuíno que representa a verdade ligada à experiência do paciente e à sessão de análise. Isso só é possível a partir da conversão das impressões sensíveis em pensamento, como o de sonho.

Se, para Freud, o sonho é processado ao longo do dia, para ser, então, sonhado ao dormir por meio da regressão, Bion passou a considerá- lo uma atividade que lida com os eventos da sessão durante seu acontecimento e que, inclusive, cria e recria o inconsciente.

Em Cogitações, Bion cunha o termo “trabalho onírico alfa”, para representar a atividade mental que armazena e que torna disponível ao conhecimento, à recordação, ao pensamento inconsciente e ao trabalho onírico, tal como descrito por Freud, os dados da experiência emocional. Do contrário, estes permaneceriam presentes, porém desconhecidos e tóxicos.

O termo “alfa” é uma incógnita que serviu para enfatizar a elaboração de um postulado, ou de uma hipótese teórica acerca de uma atividade mental em si mesma desconhecida, e que, para Bion, exigia uma formulação conceitual. O “trabalho onírico alfa” foi mais tarde nomeado de “função-alfa”, para que não fosse confundida com o trabalho de sonho, tal como Freud o compreendia. Essa função representou tanto uma estratégia do pensamento de Bion quanto uma função da personalidade para lidar com eventos que pediam compreensão e que, portanto, estariam dispersos e fragmentados (os elementos-beta). As incógnitas alfa e beta indicam que os termos são, em si mesmos, incognoscíveis, mas passíveis de adquirirem significado na experiência; eles foram propostos com a intenção de evitar que os termos fossem associados a significados defi nitivos e, desse modo, permanecem abertos ao desconhecido da experiência. Segundo o autor, a cristalização do pensamento – na psicose – poderia ser análoga ao risco que os analistas correm ao se apegarem, demasiadamente, a certos conceitos, dando a eles uma concretude que difi culta a flexibilidade que precisariam ter em cada situação.

Bion evidencia a existência da incógnita no pensamento analítico e, no caso da função-alfa, na própria personalidade; ela representa, assim, a condição de abertura ao impensado de si e do outro, ao desconhecido e ao que está para ser sonhado e pensado. Ela é mais do que uma função metodológica da personalidade para a investigação e para observação da realidade; a função-alfa converte as impressões em material onírico e estabelece ligações entre os elementos da experiência emocional, de modo a suprir a mente de realidade, do que parece ser verdadeiro e de existência.

A alteridade é uma presença constante no pensamento de Bion e está entranhada nas peculiaridades do estilo, na teoria e na prática desse autor. Com o conceito de função-alfa, ele encontrou um modo de se aproximar do mundo bizarro e idiossincrático do psicótico e de elaborar as condições para essa aproximação com base nessa mesma experiência, sem ignorar o que é desconhecido ou evitar o que é intolerável, e admiti-lo enquanto tal. Nós temos, como analistas, ao menos a possibilidade de encontrar na obra desse autor intuições profundas sobre a importância e sobre o significado de sustentar e de estar aberto ao desconhecido, e sobre o quanto essa atitude pode representar para vida emocional de nossos pacientes.
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