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AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
37
Ética do psicanalista
ano XIX - 2° semestre 2006
131 páginas
capa: Miriam Nigri Shreier
  
 

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Resumo
Fazendo uma análise comparativa das noções de trauma, pulsão e fantasia, este texto mostra vínculos pouco notados até aqui entre a obra de Freud e a perspectiva de alguns dos seus sucessores.


Autor(es)
Maria Teresa de Melo
é doutora em Psicanálise pela Universidade Paris VII, é professora do curso de especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG.

Paulo de Carvalho Ribeiro
é psicanalista e professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.


Notas

1. Artigo publicado anteriormente, em Frankfurt, no número 11 da revista Psyche, com o título: “Trauma oder Trieb – Trieb und Trauma. Lektionen aus Sigmund Freud phylogenetischer Phantasie von 1915”.

2. I. Grubrich-Simitis, “Trauma ou pulsion – pulsion et trauma. Leçons à partir de la ‘fantasie phylogénétique’ écrite par Sigmund Freud en 1915”, in C. Chabert, org., Sur la théorie de la séduction, Paris, Éditions In Press, 2003, p. 24.

3. “Traumas” foi o tema do I Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, realizado no Rio de Janeiro em setembro de 2004; “Trauma: novos desenvolvimentos em Psicanálise” foi o tema do 44o Congresso da Associação Psicanalítica Internacional, realizado no Rio de Janeiro em julho de 2005.

4. I. Grubrich-Simitis, op.cit., p. 53.

5. S. Freud, “A etiologia da histeria”, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1976, vol. III, p. 219.

6. S. Freud, op.cit., vol. III, p. 220.

7. S. Freud, op.cit., vol. III, p. 226.

8. S Freud, “Novos comentários sobre as psiconeuroses de defesa”, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1976, vol. III, p. 188.

9. S. Freud, op. cit., vol. III, p. 191.

10. S. Freud, op. cit., vol. III, p. 192.

11. M. Uchitel, Neurose traumática, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2001, p. 33.

12. Cf. J. Laplanche, Novos fundamentos para a Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, 1992.

13. S. Freud, “Conferências introdutórias sobre Psicanálise”, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1976, vol. XVI, p. 419-439.

14. S. Freud, “Além do princípio de prazer”, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1976, vol. XVIII, p. 37.

15. S. Freud, op. cit., vol XVIII, p. 37.

16. J. Lacan, O seminário, livro 2: o Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 54.

17. J. Lacan, op. cit., p. 54.

18. Cf. J. Lacan, Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil (Points), 1973, p. 82. (Edição brasileira: Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 71).

19. S. Freud, ‘‘Inhibition, symptôme et angoisse’’, Oeuvres complètes, psychanalyse, Paris, PUF, 1992, vol. XVII, p.210.

20. J. Laplanche, Problématiques I – l´angoisse, Paris, PUF, 1981, p. 141. (Nós traduzimos).

21. S. Freud, op. cit., vol. XVII, p. 270.

22. S. Freud, op. cit., vol. XVII, p. 282. (Nós traduzimos).

23. D. W. Winnicott, Textos selecionados: da Pediatria à Psicanálise, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, p. 322.

24. D. W. Winnicott, Babies and their mothers, London, Free Association Books, 1988, p. 62.

25. D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, Porto Alegre, Artes médicas, 1983, p. 47.

26. S. Freud, “A psicanálise e as neuroses de guerra”, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1976, vol. XVII, p. 262.

27. S. Freud, op. cit., vol. XVII, p. 263.


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 TEXTO

Modelos do trauma em Freud

e suas repercussões na psicanálise pós-freudiana


Maria Teresa de Melo
Paulo de Carvalho Ribeiro


A tensão entre trauma e pulsão na obra de Freud

Em 2003 foi publicado na França o artigo de Ilse Grubrich-Simitis intitulado “Trauma ou pulsion – pulsion et trauma. Leçons à partir de la ‘fantaisie phylogénétique’ écrite par Sigmund Freud, en 1915” [1]. Grubrich-Simitis foi responsável pela edição alemã do manuscrito de Freud “Neuroses de transferência: uma síntese”, encontrado em Londres, em 1983, entre os papéis de Sandor Ferenczi e considerado como o provável 12o ensaio metapsicológico de 1915. Em seu artigo, essa autora busca interpretar a fantasia filogenética de Freud, que transporta o fator traumático das neuroses para as eras antigas, mais especifi camente, para o período glacial. Argumenta que, nesse manuscrito, Freud retoma aquilo que constituiu um problema central de suas pesquisas nos anos 1890-1900, quando substituiu o modelo do trauma na etiologia das neuroses pelo modelo da pulsão. A tese central do artigo de Grubrich-Simitis é a seguinte:

“Freud, com sua fantasia filogenética, renovou, em vista de uma melhor compreensão da patogênese, o esforço teórico no sentido de tornar mais complexo o modelo da pulsão, integrando nele o fator traumático. Tarefa à qual somos ainda confrontados” [2].

Concordamos totalmente com essa tese de Grubrich-Simitis, acrescentando- lhe, no entanto, a observação de que não é somente no manuscrito de 1915 que esse esforço de Freud está presente, mas também em vários outros momentos de sua obra, quando surgem referências à noção de trauma, conforme buscaremos mostrar nas páginas seguintes. Entendemos que as tentativas freudianas de aprimoramento do modelo da pulsão, pela integração do fator traumático, deixam entrever uma verdadeira tensão entre essas duas noções, de forma tal que não podem ser tomadas como exteriores uma em relação à outra, mas como noções entrelaçadas em sua própria constituição.

Evidentemente, a tensão existente entre trauma e pulsão não passou despercebida às elaborações dos pós-freudianos e diferentes autores propuseram soluções diferentes a essa questão. Localizaremos, na obra de Freud, três modelos teóricos envolvendo a noção de trauma, buscando indicar, em seguida, como cada um deles foi privilegiado, respectivamente, nos trabalhos de cada um de três grandes autores pós-freudianos, a saber, J. Laplanche, J. Lacan e D.W. Winnicott.

Nossa leitura não pretende esgotar todas as possibilidades de trabalho com a noção de trauma na obra de Freud. Outros modelos teóricos certamente podem ser encontrados numa obra tão vasta e fecunda como essa. Mas acreditamos que a refl exão que ora propomos vem ao encontro do que foi indicado por Grubrich-Simitis como uma necessidade de tornar mais complexo o modelo da pulsão, integrando nele o fator traumático. Necessidade que se torna tão mais imperiosa quanto mais percebemos multiplicarem-se, na literatura psicanalítica, as referências a psicopatologias fundadas no trauma. Dois grandes congressos de Psicanálise [3] abordaram, recentemente, o tema do trauma, contemplando em seus debates desde os microtraumas, que se acumulam na vida cotidiana, até a situação de pessoas ou comunidades submetidas a condições extremas. Falouse em subtipos do trauma, em experiências traumáticas agudas ou crônicas, em clínica do traumático, entre outros temas. Insistiu-se também na relação do trauma com as novas patologias. Diante desta atualidade do trauma na teoria e na clínica psicanalítica, é importante buscarmos suas raízes em Freud e nos resguardar contra a tentação de substituir, muito apressadamente, o modelo freudiano das neuroses, centrado no confl ito psíquico e no recalcamento da sexualidade infantil, por um modelo do trauma que ignore sua relação com o pulsional ou que separe o pulsional do sexual.

Se Freud nos deixou a tarefa de continuar a buscar a integração franca e sem ambivalências do modelo do trauma com o modelo da pulsão, conforme afi rma Grubrich- Simitis [4], essa integração não pode, tampouco, resumir-se ao acréscimo do fator traumático à fórmula etiológica representada pelo modelo da pulsão, como numa somatória de determinações, isto é: trauma + pulsão = fórmula etiológica. Ao contrário, ela deve buscar fazer jus às múltiplas tentativas freudianas de mostrar, por um lado, que a pulsão contém o traumático em sua própria constituição e, por outro, que qualquer situação traumática é necessariamente habitada pela pulsão.

Trauma, sexualidade e recalcamento nas primeiras formulações freudianas e sua retomada por Jean Laplanche

As primeiras incursões freudianas no terreno da psicopatologia, e particularmente no tratamento da histeria, atribuem à noção de trauma um papel central. Na primeira hipótese sobre o desencadeamento do sintoma histérico, compartilhada com Breuer, atribui-se valor etiológico decisivo a um trauma, ou a uma série de traumas. A idéia de um trauma na origem de sintomas histéricos não é original, mas com Freud e Breuer ela ganha destaque em formulações que começam a orientar de forma sistemática a tarefa clínica. Nas elaborações freudianas, subseqüentes ao trabalho em colaboração com Breuer, o valor etiológico do trauma será conservado, fazendo parte, no entanto, de um conjunto conceitual mais elaborado, que prenuncia idéias cruciais da nascente teoria psicanalítica.

Podemos localizar a primeira concepção propriamente freudiana do trauma na teoria sobre a patogênese da histeria, elaborada em seus primeiros escritos, tanto os não ofi - ciais como o Projeto de uma psicologia e as cartas a Fliess, quanto os ofi ciais, dos quais os mais importantes são: “Hereditariedade e a etiologia das neuroses”, “Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa” e “A etiologia da histeria”, todos eles de 1896.

No texto “A etiologia da histeria”, Freud atribui a J. Breuer a importante descoberta segundo a qual “os sintomas da histeria são determinados por certas experiências que operaram de maneira traumática e que são reproduzidas na vida psíquica sob a forma de símbolos mnêmicos” [5]. Partindo dessa descoberta, ele se vê às voltas com a tarefa de identifi car aquilo que confere a uma determinada experiência o valor de trauma, na medida em que nota uma disparidade na intensidade e na natureza das vivências rememoradas pelos pacientes e indicadas como origem de seus sintomas. Isto impede, a princípio, que se atribua a uma determinada categoria de experiências o poder de ocasionar um trauma. Como poderíamos compreender, por exemplo, que um sintoma como o vômito histérico possa ser reportado pela análise à experiência de comer uma fruta parcialmente estragada, ou, em outro caso, a um grande terror num acidente ferroviário? À primeira experiência parece faltar a necessária força traumática e à segunda a adequabilidade para servir como determinante [6].

Por considerar insufi ciente a explicação de Breuer segundo a qual uma experiência, ainda que inócua, pode ser elevada a trauma se acontece ao sujeito em um estado hipnóide, Freud busca a resposta em outra hipótese. Ora, ele observa que o trajeto que leva do sintoma à sua etiologia mostra-se trabalhoso e revela elementos que não se poderia ter imaginado de início. Ainda que o paciente localize o ponto de partida de seu sofrimento psíquico numa determinada vivência, a análise vai revelando a existência de conexões desconhecidas por ele próprio e constatase, assim, que a cena apresentada inicialmente como traumática esconde outras cenas. Ao fi nal do processo de desvelamento da cadeia de lembranças, descobre-se a presença constante do elemento sexual, o que o leva a afi rmar o seguinte: “Qualquer que seja o caso e qualquer que seja o sintoma que tomemos como ponto de partida, no fi m chegamos invariavelmente ao campo da experiência sexual” [7].

Aí está defi nido o primeiro ponto signifi cativo do primeiro modelo freudiano do trauma: o trauma é sempre um trauma sexual. Mas para alcançar toda a originalidade desse modelo é preciso acompanhar Freud em sua tentativa de entender por que somente o campo da experiência sexual preenche as condições de determinação de um trauma, capaz de provocar sintomas neuróticos. A experiência sexual em questão é um atentado sexual ocorrido na tenra infância, estando aí presente o caráter prematuro de uma vivência imposta à criança por um adulto sedutor, ou por uma criança mais velha que, por sua vez, já tenha sido seduzida. Esta teoria que chamamos hoje de teoria da sedução supõe, por um lado, a criança numa situação de “passividade sexual durante o período pré-sexual” [8] e, por outro, um adulto sedutor.

O paradoxo contido na idéia de uma vivência sexual no período pré-sexual é enfrentado por Freud na concepção de uma lógica totalmente inovadora no que diz respeito às inscrições psíquicas. Ele afi rma:

“Todas as experiências e excitações que, no período posterior à puberdade, preparam o caminho ou precipitam a eclosão da histeria, operam, como se pode demonstrar, apenas porque despertaram o traço de memória desses traumas da infância, os quais não se tornam conscientes de imediato mas levam a uma liberação de afeto e ao recalcamento” [9].

Isso explica então por que as experiências que precipitam os sintomas podem variar em intensidade e natureza: elas não são os verdadeiros traumas, pois estes ocorreram na infância. Aqui cabe uma precisão. Embora Freud utilize a expressão traumas de infância para referir-se às experiências que teriam o papel determinante na formação dos sintomas, ele é taxativo quanto à idéia de que o poder patogênico reside na lembrança do atentado sexual e não na própria vivência, o que equivale, em suas palavras à “operação póstuma de um trauma sexual na infância” [10]. A lógica inovadora a que nos referimos acima é justamente esta que liga o acontecimento recente a um acontecimento antigo, despertando, a posteriori, seu caráter traumático. O primeiro momento é aquele do atentado sexual que não é, em si mesmo, traumático porque, dada a imaturidade sexual da criança, ele não provoca excitação, nem simbolização, ou elaboração psíquica por parte desta. O segundo momento, ocorrido depois da maturidade sexual, corresponde a um acontecimento, que pode até ser banal, mas que, em virtude de uma conexão muitas vezes fortuita, desperta a lembrança do atentado sexual. Essa lembrança já pode, então, ser signifi cada como sexual e provocar a excitação correspondente. E nesse meio tempo, isto é, entre o cedo demais de uma vivência sexual que não pôde ser representada como tal e o tarde demais da possibilidade de resposta sexual, situa-se a condição do desencadeamento de uma excitação excessiva, pois trata-se de uma excitação que não corresponde à vivência atual e sim à vivência passada. Assim, essa concepção do trauma em dois tempos é também a primeira concepção freudiana do recalcamento, contendo, inclusive, uma resposta para o problema da angústia que acompanha o recalcamento ou que o sinaliza, na medida em que ela corresponde a essa excitação excessiva que invade o aparelho psíquico, no momento em que a lembrança da cena sexual é ativada.

É recorrente, entre os pós-freudianos, afi rmar que o abandono, por Freud, da teoria do trauma que acabamos de expor é correlativo à importância que a fantasia adquire na seqüência de suas elaborações sobre a etiologia das neuroses. De fato, a partir desse abandono, começa a ganhar força a hipótese de que as lembranças dos traumas de infância correspondem, na verdade, a fantasias alimentadas pela sexualidade infantil, cuja existência impõe-se defi nitivamente ao pensamento de Freud.

Mesmo seguindo essa linha de raciocínio, muitos autores reconhecem que a oposição entre trauma e fantasia cria “uma dicotomia que, em Freud (tomando a obra em seu conjunto), não existe” [11]. Com efeito, podemos observar que, mesmo na teoria da sedução, o trauma só se constitui, enquanto tal, no momento em que impressões registradas anteriormente sofrem um processo de re-signifi cação. Ora, entendemos que esse processo de re-signifi cação não é outra coisa senão a construção de uma fantasia. Diríamos, pois, que a diferença entre um momento e outro da obra de Freud não é a presença ou ausência da idéia de fantasia, mas a caracterização da fonte da fantasia. Na teoria da sedução, o fundamento da fantasia é o fato real do atentado sexual, ao passo que na teorização subseqüente seu fundamento será a sexualidade infantil e seu substrato pulsional.

A ausência de uma concepção da sexualidade infantil constitui, de fato, uma limitação da teoria da sedução que, em contrapartida, revela fecundidade na forma pela qual concebe o advento da sexualidade no sujeito. Dentre os pós-freudianos, foi Jean Laplanche quem apontou para a importância desse primeiro modelo que, embora restrito por Freud ao campo da psicopatologia, contém elementos cruciais para se pensar a constituição do sujeito que interessa à Psicanálise. A interpretação desse modelo, proposta por Laplanche, salienta a articulação entre aquilo que chega do exterior como sexualidade do adulto – como atentado sexual, no modelo freudiano – e aquilo que surge no interior do psiquismo em constituição, como fantasia sexual. Essa interpretação supera a restrição ao psicopatológico, presente em Freud, entendendo que a sexualidade do adulto, que chega até a criança, não se limita ao atentado sexual perverso, mas encaixa-se na categoria de uma sedução generalizada. Isto é, nenhuma criança escapa das mensagens sexuais presentes nos gestos de cuidado do adulto, em seus comportamentos verbais ou não verbais, enfi m, mensagens que estão presentes no cotidiano de sua relação com o adulto. Do lado do adulto, podemos dizer o mesmo, pois este não tem meios de se precaver contra a irrupção de conteúdos ligados à sua sexualidade infantil, por se tratar de conteúdos recalcados particularmente despertados na relação com uma criança.

A teoria de Laplanche postula a gênese da sexualidade infantil com base nas marcas deixadas pelas mensagens sexuais do adulto no psiquismo da criança, em vias de constituição. Esse autor está de acordo com o primeiro modelo freudiano do trauma ao reafirmar que aquilo que se constitui como traumático pertence ao campo da sexualidade. Vai além de Freud, porém, ao superar a oposição entre o traumático e o pulsional, oposição que constituiu um dos principais pontos de impasse desse modelo. Em Laplanche, a pulsão é gerada por aquilo que vem do outro, como mensagem sexual, não tendo, portanto, um fundamento predominantemente endógeno, como será a tendência freudiana dominante após o abandono de sua primeira teoria das neuroses. Com efeito, o papel da sexualidade do outro na constituição do trauma que, por sua vez, funda o inconsciente, será apenas vislumbrado por Freud na seqüência de suas elaborações, mas não será diretamente discutido como foi nesses primeiros tempos [12].

Outro ponto importante ressaltado por Laplanche é a idéia de que o trauma constitui-se por um efeito póstumo, ou seja, constitui- se quando se torna possível a simbolização de uma vivência precoce; não sendo, portanto, um efeito imediato da impossibilidade de simbolização, no momento da vivência. Nesse sentido, não seria pertinente associar o traumático ao puro afl uxo de excitação que invade o psiquismo, antes de qualquer possibilidade de simbolização, pois ele seria justamente um efeito do impacto do universo simbólico sobre o psiquismo nascente e, em particular, das mensagens sexuais veiculadas nesse universo. Poderíamos falar de situações em que esse impacto das mensagens sexuais do outro não encontra vias de metabolização pelo processo do recalcamento, fi cando assim incrustadas como objetos fonte de pulsão, sem possibilidade de ligação. Mas essas situações não são da ordem de um inominável absoluto ou de uma excitação gerada unicamente por via endógena.

Para concluir nosso estudo do primeiro modelo do trauma em Freud, destacamos como um de seus pontos mais fecundos a relação estreita que mantinham entre si as noções de trauma, sexualidade, recalcamento e confl ito psíquico, articuladas em uma elaborada teoria sobre a constituição do inconsciente. Com isso em mente, passaremos a abordar a concepção de trauma que pode ser depreendida do texto de 1920, Além do princípio de prazer.

A analogia entre o afl uxo de excitação provocado pelo trauma e o afl uxo da excitação pulsional em Além do princípio de prazer, e sua valorização por Jacques Lacan

Após o curto período da chamada teoria da sedução, o poder patogênico do trauma não é de todo descartado, mas é enfraquecido. O novo modelo da etiologia das neuroses toma a sexualidade infantil, com seu desenvolvimento e seus pontos de fi xação, como fator essencial na determinação dos sintomas. Nesse modelo, o trauma não é concebido como elemento intrínseco à emergência da sexualidade mas como um fator acidental nas séries complementares da causação das neuroses. Essa idéia está claramente expressa nas “Conferências introdutórias sobre Psicanálise”, principalmente na conferência XXIII, intitulada “Os caminhos da formação dos sintomas” [13].

Em 1920, a noção de trauma ressurge em um novo modelo teórico, mais especifi camente no texto Além do princípio de prazer, onde as neuroses traumáticas recebem atenção particular. É importante observar que Freud não está preocupado, nesse momento, em desenvolver uma teoria sobre as neuroses traumáticas e sim em tomá-las como ilustração do fenômeno da repetição. Os sonhos típicos dessas neuroses fornecem uma ilustração, talvez a mais convincente, do fenômeno que o levou à hipótese da pulsão de morte. Ele os considera o exemplo menos dúbio de uma força motivadora que opera na mente sob a forma de uma compulsão à repetição [14]. Os sonhos traumáticos não estão a serviço do princípio de prazer e não se encaixam na tese do sonho como realização de desejos. Esses sonhos, que trazem o paciente de volta, com insistência, à situação em que ocorreu o trauma, “estão ajudando a executar outra tarefa, que deve ser realizada antes que a dominância do princípio de prazer possa mesmo começar” [15]. Eles esforçam- se por dominar retrospectivamente o excesso de excitação que inundou, de forma inesperada, o aparelho psíquico, e a desenvolver, assim, a angústia cuja ausência fora determinante na produção da neurose traumática.

Se o primeiro passo na abordagem do trauma, em 1920, é a afirmação da compulsão à repetição, o segundo passo é a analogia entre o trauma, como afl uxo de excitação vinda do exterior (da realidade externa), e a pulsão como afl uxo de excitação vinda do interior (do psiquismo). Se o trauma rompe o escudo protetor em relação aos estímulos externos, a pulsão ameaça do interior e não encontra escudo protetor, que deve ser suprido pelo desenvolvimento da angústia e, conseqüentemente, pelo desenvolvimento de um eu capaz de impedir, pelo recalcamento, o excesso de angústia.

Voltando aos sonhos traumáticos, podemos então compreendêlos como um fenômeno particularmente ilustrativo da compulsão à repetição e de sua associação a um princípio de funcionamento do aparelho psíquico mais primitivo do que o princípio de prazer. Freud apóia-se nesta idéia para formular sua hipótese de que, por detrás desse princípio, atuam as pulsões; notadamente, a pulsão de morte, com sua tendência à evacuação da tensão psíquica e à restauração da inércia.

As conclusões alcançadas por Freud, a partir do fenômeno dos sonhos traumáticos, colocam-nos diante de um paradoxo que guarda toda a radicalidade da nova teoria pulsional: se os sonhos traumáticos repetem-se para dominar o afl uxo excessivo e inesperado de excitação, para sujeitar a ameaça à vida e, portanto, preservá-la, vemos que, por trás dessa repetição, há uma força que excita e que impulsiona na direção da evacuação total da tensão, com o fi m último de restaurar não a vida, mas a inércia total. Podemos pensar então que, nas neuroses traumáticas, o elemento pulsional se sobrepõe à excitação desencadeada pelo trauma não para facilitar sua elaboração, sua redução, mas para torná-las uma tarefa impossível. O poder de excitação da pulsão mostra-se mais recalcitrante do que a realidade traumática em si. Pensamos que aí reside um dos pontos fecundos do Além do princípio de prazer, colocado em evidência por Jacques Lacan, como veremos mais adiante.

Comparando o lugar do trauma nesse modelo freudiano com aquele que essa noção ocupava no modelo da teoria da sedução, podemos dizer que o trauma sexual da teoria da sedução é aqui substituído pela pulsão e, em particular, pela pulsão de morte. Com efeito, se o trauma era anteriormente concebido como conseqüência do despreparo do sujeito ante o ataque sexual do outro, nesse segundo modelo ele equivale ao despreparo do aparelho psíquico ante o ataque pulsional. Enquanto no primeiro modelo o traumático é a lembrança de uma vivência quando signifi - cada como vivência sexual, aqui o traumático é a própria pulsão.

Se concordarmos com a idéia de que o abandono do primeiro modelo do trauma é correlativo da ênfase na fantasia movida pela sexualidade infantil e, portanto, correlativo da emergência, no pensamento freudiano, do modelo da pulsão, então podemos dizer que, nessa retomada da noção de trauma, o modelo da pulsão continua a prevalecer. Mas perguntamos: esse momento não representaria justamente uma tentativa freudiana de unir trauma e pulsão num mesmo modelo, da mesma forma que, no primeiro, trauma e sexualidade estavam unidos?

As elaborações de Lacan irão realçar a ligação entre trauma e pulsão no Além do princípio de prazer. Esse texto situa-se, segundo esse autor, no fi nal de um percurso freudiano que fora iniciado com o Projeto de uma psicologia e que busca apreender, em sucessivas retomadas, o sentido da descoberta do inconsciente [16]. A noção de pulsão de morte vem resgatar o sentido da experiência freudiana quando este começava a desvanecer- se pelo regresso, no círculo freudiano, “de uma posição confusa, unitária, naturalista do homem, do eu e, da mesma feita, das pulsões” [17]. A grande descoberta da análise é que, no homem, a relação com a realidade não funciona do mesmo modo que a relação genérica, ligada à vida das espécies, pois nele há uma fi ssura, uma perturbação profunda da relação vital. Os fenômenos que sugerem uma compulsão à repetição mostram que o princípio que governa o sujeito não é um princípio de equilíbrio, de homeostase. Caso assim fosse, a excitação provocada pelo trauma real, como aquele ao qual foram submetidos os neuróticos de guerra, seria assimilável, redutível, quando o perigo estivesse afastado. O que se constata, no entanto, é que essa excitação persiste e escapa a sucessivas tentativas de domínio, de ligação. Percebe-se assim que o ser humano está submetido à economia autônoma da ordem simbólica, com suas estruturas próprias, com seu dinamismo. O ponto de surgimento da relação do sujeito com o simbólico não é apreensível, havendo, portanto, em qualquer fenômeno inconsciente, um resíduo não assimilável que leva ao automatismo de repetição. Nesse sentido, a repetição surge como um conceito fundamental da Psicanálise.

Ao concluir sua exposição sobre a repetição e sua relação com o inconsciente estruturado como uma linguagem, no Seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Lacan não deixa de mencionar a existência, em Freud, de uma atribuição do motor da repetição a um núcleo traumático. A referência ao trauma, nesse caso, não passaria de uma aproximação, no entendimento de Lacan. Os mecanismos psíquicos acionados pelo suposto efeito traumático, tais como as resistências e tudo o que vem se posicionar do lado do autômaton, deveriam ser entendidos como efeito de algo cujo poder de mobilização do sujeito, poder de despertá-lo, como diz Lacan, ultrapassa largamente o que se poderia esperar de um trauma tal como Freud o concebeu, ou seja, como trauma sexual. Um mau encontro, uma certa incidência do real como expressão inequívoca da tiquê, é o que age na fonte da repetição e responde pela esquize que se produz no sujeito.

Se é pelo intermédio dessa esquize que o real se mostra, segundo Lacan, o maior cúmplice da pulsão, o fundamento dessa cumplicidade não pode ser encontrado no sexual mas no que ele chama de um fait factice [18] como, por exemplo, o estranhamento e a perturbação do homem dos lobos diante do aparecimento e desaparecimento do pênis na cena primária. Muito mais do que uma excitação sexual que não teria encontrado na criança os subsídios para ser experimentada como tal, o traumático da cena primitiva só revelaria sua verdadeira dimensão num registro outro, nãosexual, no qual a surpresa atinge o sujeito com muito maior contundência, visto que se apresenta aí, ao mesmo tempo, como o que se depreende da insistência repetitiva do significante e como o que resiste à redução pelo efeito ordenador do simbólico.

Parece claro, portanto, que o confi namento do sexual no simbólico, pelas vias da castração e do falo, como prevaleceu em Lacan nas décadas de 50 e 60, impediu que a vinculação do trauma com a pulsão, pelo viés do real, tivesse como corolário a ligação da pulsão com o sexual. Resta saber se os desdobramentos teóricos mais recentes, trazidos pelo que se convencionou chamar segunda clínica, permitirão uma nova inteligência do sexual, capaz de lhe assegurar uma inserção no campo do real, permitindo assim que a conjugação trauma-sexual-real reconduza a sexualidade ao centro de uma teoria que, apesar de ter produzido tantas controvérsias e cismas, tem sido decisiva para a sobrevivência e o avanço da Psicanálise.

Passaremos a considerar, em seguida, a noção de trauma no texto Inibição, sintoma e angústia.

O trauma na situação de desamparo em Inibição, sintoma e angústia e o ambiente traumático em D.W. Winnicott

Em 1925, Freud retoma a noção de trauma, desta vez com o objetivo de reexaminar o problema da angústia. Este não é evidentemente um problema novo, pois traz em si a interrogação sobre a origem do sofrimento neurótico. Embora seja um problema antigo, ele é agora renovado pelas elaborações que deram origem à segunda tópica. Com a formulação da nova divisão tópica do aparelho psíquico, torna-se necessário repensar a angústia relativamente ao processo defensivo. A reformulação da teoria da angústia, nesse texto que estamos analisando, já é muito conhecida, porém, tendo em vista nossos objetivos, faz-se necessário retomá-la, ainda que de forma breve. Até então, a angústia era concebida como uma conseqüência direta do processo de recalcamento e mantinha uma relação direta com a sexualidade, segundo a idéia de que a libido acumulada pelo recalcamento seria transformada em angústia. Agora, Freud propõe que a angústia não procede do recalcamento mas, ao contrário, constitui-se como motivo para este. A angústia aparece no eu, instância recalcante, como um sinal para o desencadeamento do recalcamento.

Tendo relembrado essa nova proposição sobre a angústia, devemos interrogar de que modo surge a angústia no eu, pois é relativamente a essa questão que a noção de trauma será invocada. O eu, como instância recalcante, tem por função inibir ou desviar o curso da excitação desencadeada no isso pelas moções pulsionais. Essa função é possível em conseqüência da íntima relação do eu com o sistema percepção-consciência, relação que, aliás, constitui sua essência e o fundamento de sua diferenciação em relação ao isso. O Sistema Pc-Cs recebe excitações não somente do exterior mas também do interior do aparelho psíquico e, por meio das sensações de prazer e desprazer que o atingem desde lá, tenta orientar todo o curso dos processos psíquicos no sentido do princípio de prazer. Dado seu lugar de um ser de fronteira entre o exterior e o interior, o eu debela os perigos internos seguindo as mesmas linhas utilizadas para lidar com os perigos externos, isto é, com tentativas de fuga. Conforme essa analogia, o recalcamento equivale à tentativa de fuga de um perigo proveniente do mundo interno [19].

Assim, quando o eu se rebela contra um processo pulsional no isso, basta dar um sinal de desprazer para atingir seu propósito, com a ajuda do princípio de prazer. Esse sinal de desprazer, que recebe o nome de angústia-sinal, é responsável, então, pelo desencadeamento do recalcamento. A essa explicação acrescentam-se novas interrogações, cujas respostas propostas por Freud irão levar-nos ao papel do trauma na nova teoria da angústia.

De onde provém a energia utilizada para a produção do sinal de desprazer? A resposta é que o eu retira o investimento pré-consciente da representação pulsional a recalcar e o utiliza para o desencadeamento da angústia. Tal resposta, segundo o próprio Freud, esbarra no seguinte problema: como é possível que um simples processo de retirada e descarga produza angústia que, segundo as pressuposições anteriores, requereria um incremento nos investimentos? Notemos que esse problema existe na medida em que, após o abandono do primeiro modelo do trauma, a concepção do recalcamento não mais contemplou a questão da primeira liberação desprazerosa de afeto, restringindo-se a pensar o recalcamento originário como um mecanismo de contra-investimento. Assim, para enfrentar o problema da origem da angústia, Freud se vê compelido a postular que essa seqüência causal, isto é, a retirada de investimento desencadeando angústia, não pode ser explicada apenas do ponto de vista econômico. A angústia não seria, portanto, engendrada originalmente no recalcamento, mas reproduzida como estado afetivo, de acordo com uma imagem mnêmica pré-existente. Essa imagem mnêmica deverá ter sido registrada por ocasião de uma vivência traumática precoce. É nesse momento que Freud recorre à idéia de um trauma do nascimento como responsável pela vivência que, pela primeira vez, imprimiu ao afeto de angústia certas formas características de expressão.

Podemos notar que é grande o peso conferido à realidade nessa nova teoria da angústia. A angústia é a reação ao perigo, reação a uma realidade traumática, sendo seu protótipo o trauma do nascimento. Ora, a experiência do nascimento é uma experiência situada no domínio do vital, o perigo de que se trata aí é um perigo real, poderíamos dizer, ou mesmo hiper-real, conforme propõe Laplanche, comentando esse texto de Freud:

“Mas no momento em que essa realidade é máxima, em que o perigo está em seu ponto culminante, esse perigo não é percebido enquanto tal; aí está um dos pontos importantes desta discussão de Freud. No nascimento, se algo pode ser considerado como percebido, é unicamente o fenômeno somático da angústia; a idéia de um elo associativo que poderia estabelecer- se entre angústia e perigo – ou entre angústia e separação – é contestável” [20].

De fato, o trauma do nascimento é tomado por Freud apenas como protótipo do afeto de angústia, segundo a idéia de que as bruscas mudanças fi siológicas desse momento fornecem um padrão de expressão corporal que fi ca registrado no psiquismo nascente, podendo ser repetido em outras situações em que há grande afl uxo de excitação. Ele não aceita a idéia de uma continuidade entre o trauma do nascimento e as subseqüentes situações de angústia que predispõem à neurose e, por isso, não acredita que a tentativa de Otto Rank tenha solucionado o problema da causação das neuroses.

Portanto, se afirmamos acima que é grande o peso conferido à realidade nessa nova teoria freudiana, temos que acrescentar que a realidade, se concebida como realidade vital, é apenas tomada como modelo, fi cando nas fronteiras da teoria e não no seu interior. O trauma do nascimento serve como modelo para o afeto de angústia, como vimos acima, e a reação do indivíduo ante os perigos reais serve como modelo para o mecanismo do recalcamento, conforme afi rma Freud: “Em vista dos perigos da realidade, o eu é obrigado a colocar-se em defesa contra certas moções pulsionais do isso e a tratá- las como perigo” [21]. Sendo assim, podemos dizer que a realidade ensina ao eu como reagir ante a pulsão, da mesma forma que o grande e súbito afl uxo de excitação do momento do nascimento ensina ao aparelho psíquico o que é o afeto de angústia.

Mas a realidade que está, de fato, no interior da teoria, como aquela que tem o peso de determinação dos sintomas neuróticos, é a sexualidade e, mais especifi camente, a sexualidade infantil, expressa, nesse texto de 1926, pela centralidade do complexo de castração. Assim, numa genealogia da angústia, não é o trauma do nascimento que constitui a medida da neurose e sim a angústia de castração. Freud reafi rma, portanto, o papel central da sexualidade e do pulsional no campo da Psicanálise. Preserva, ao mesmo tempo, a idéia de conflito psíquico em que um dos pólos é sempre o sexual.

Todavia, se compararmos os modelos do trauma, que analisamos anteriormente, com o modelo do presente texto, percebemos que, neste último, a realidade externa ganha um peso maior na determinação dos sintomas, ao mesmo tempo que há uma tendência a afi rmar a exterioridade entre sexualidade e angústia, ou entre trauma e pulsão. A pulsão se reveste, aqui, de uma positividade difi cilmente encontrada em outros textos, perdendo seu caráter traumático e sua ligação íntima com a angústia. Ela não é em si mesma ameaçadora, ou fonte de transbordamento de energia no interior do aparelho psíquico, mas só se torna perigosa quando convoca a ameaça de castração, tomada como realidade exterior. A esse respeito, Freud afirma:

“Chegamos também à conclusão de que uma reivindicação pulsional freqüentemente só se torna um perigo (interno) porque a sua satisfação provocaria um perigo externo, portanto, porque esse perigo interno representa um perigo externo” [22].

Poder-se-ia objetar que Freud, na verdade, reserva um espaço para o perigo da própria pulsão, como testemunha a nota de rodapé que aparece no texto, logo após a passagem acima citada, e na qual menciona uma angústia pulsional, normalmente acrescentada à angústia realística. Poder-se-ia também argumentar que a ameaça de castração, considerada nesse texto como um perigo externo, pode ser interpretada, com base nos próprios escritos freudianos, como sendo efetivamente um perigo interno na medida em que tal ameaça só pode se confi gurar no psiquismo da criança sobre o fundo de sua sexualidade infantil. Ou seja, é preciso que existam fantasias sexuais e teorias sexuais para que se possa temer a castração. Nesse sentido, haveria uma relação mais dialética entre realidade externa e fantasia do que deixa entrever esse texto de Freud, em que fi ca proeminente uma oposição estanque entre o traumático e o pulsional.

Pensamos que essa oposição entre o trauma, representado pela realidade externa e suas falhas, e a pulsão, concebida como endógena, predomina na Psicanálise de língua inglesa e, em particular, inspira a concepção Winnicottiana do trauma. Embora Winnicott não cite explicitamente o texto Inibição, sintoma e angústia como referência maior para sua concepção de trauma, sabemos que ele deteve-se neste texto de 1925 para expressar algumas reservas em relação à teoria da angústia aí apresentada e, em particular, em relação à idéia de trauma do nascimento como protótipo do afeto de angústia. Se ele expressa reservas a formulações tão importantes do texto em questão, como podemos então afi rmar que sua noção de trauma encontra aí uma fonte de inspiração? É o que buscaremos esclarecer, em seguida.

Em relação à idéia do trauma do nascimento, como protótipo da angústia, Winnicott afi rma:

“Me é difícil aceitar a idéia segundo a qual o que acontece em termos de ansiedade é determinado pelo trauma do nascimento, porque isso signifi caria que o indivíduo que nasce naturalmente não tem ansiedade, ou não tem maneiras de mostrar que está ansioso. Isto seria absurdo” [23].

Notemos que essa objeção apóia-se na distinção entre experiência do nascimento e trauma do nascimento pois, segundo Winnicott, a maioria das situações de nascimento são normais, não traumáticas, e isso por dois motivos principais. O primeiro deles é que, pressupondo-se que o eu não existe no momento do nascimento, não há como caracterizar tal momento como traumático no sentido do desencadeamento de angústia. Para esse autor, a palavra angústia aplica-se a uma situação em que o sujeito encontra-se nas garras de uma experiência que não pode evitar e nem compreender. Portanto, se não há um eu interpelado na situação de nascimento, não haverá aí resposta passível de ser caracterizada como angústia.

Uma vez afastada a relação necessária entre nascimento e angústia, o outro motivo que leva Winnicott a rejeitar a relação entre trauma e nascimento é sua idéia de que as experiências normais do nascimento são boas e podem promover a força e a estabilidade do eu. Embora não pressupondo a existência de um eu, nem mesmo a de um self, anteriormente ao nascimento, Winnicott afi rma a existência de uma continuidade experiencial, por ele chamada de primórdios do self, que é periodicamente interrompida por invasões ambientais. A experiência normal do nascimento representa uma dessas invasões, que provocam reações necessárias para se preservar a continuidade experiencial em seu início, inaugurando, outrossim, a possibilidade da oposição entre o eu e o outro.

Uma vez defendida a condição normal e favorável da experiência de nascimento, pode-se então falar de trauma do nascimento quando este representa uma invasão ambiental prolongada, perturbando, além dos limites, o sentido de existência ou a continuidade de ser. Chegamos aqui ao cerne da noção de trauma em Winnicott, pois esta defi ne-se exatamente pelas invasões do meio ambiente em virtude de falhas ambientais, concebidas como as falhas de adaptação da mãe-ambiente às necessidades básicas do bebê [24]. O estágio mais primitivo da constituição psíquica, chamado de estado de dependência absoluta, caracteriza-se por uma unidade formada pelo bebê e pela mãe, num estado de preocupação materna primária. Esse estado signifi ca uma adaptação ativa às necessidades do fi lho e pressupõe uma capacidade de identifi cação com ele. A unidade mãe-bebê deve funcionar num equilíbrio tal que a linha da vida do bebê não seja perturbada por um reagir em maior escala do que aquele que pode ser experimentado sem uma perda da continuidade de ser. “A alternativa a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila” [25]. Sendo assim, reagir a uma falha ambiental constitui-se em um trauma, caracterizando uma ruptura no self do lactente.

Vemos que Winnicott coloca em relevo a falha da mãe-ambiente como geradora de trauma, da mesma forma que, em Inibição, sintoma e angústia, Freud salienta a situação de desamparo inicial do bebê, na origem da situação de angústia. Mas o que, a nosso ver, estabelece maior aproximação entre a concepção Winnicottiana de trauma e o modelo freudiano do texto em questão é a constatação de que, em ambos, o traumático está colocado do lado da realidade (mãe-ambiente em Winnicott e realidade externa em Freud), sendo que essa realidade não tem uma relação direta com o processo que origina a pulsão. O bebê já possui ímpetos pulsionais que só serão traumáticos quando o eu não for capaz de incorporá-los, sendo que a capacidade ou incapacidade do eu dependerá da provisão ou não de cuidados ambientais. Podemos notar a proximidade dessa idéia com a conclusão de Freud, citada anteriormente, de que uma exigência pulsional freqüentemente só se torna um perigo interno porque sua satisfação provocaria um perigo externo.

Conclusão

Não há dúvidas de que a contribuição de Winnicott à Psicanálise é preciosa e que sua concepção de trauma alerta-nos para o cuidado que requerem aqueles pacientes vítimas de invasões ambientais traumáticas. Se há uma clínica do traumático em Psicanálise, o pensamento de Winnicott é rico em elementos que ajudam a defi nir um enquadre propício a esta clínica. Suas idéias abrem-nos possibilidades para lidar com os traumas que se confi guram tanto nos primórdios da constituição do sujeito, pelas falhas da mãe-ambiente, quanto posteriormente, pela sujeição a condições psíquicas demasiadamente penosas, ou mesmo extremas.

Em contrapartida, a articulação entre o pulsional e o traumático, que consideramos ausente em Winnicott, é fundamental para se estabelecer os contornos do pensamento psicanalítico sobre o trauma. Nesse autor, a constituição das relações objetais segue paralela à manifestação das pulsões, de tal forma que as relações de objeto podem favorecer, difi cultar ou organizar as manifestações pulsionais, mas nunca gerá-las. Se o objeto é sufi cientemente bom, ele apazigúa, não excita; ele protege do trauma. Ou seja, a tensão existente entre trauma e pulsão é desfeita ou, pelo menos, reduzida. Em contraste com essa visão, situam-se os dois outros autores, J. Lacan e J. Laplanche, que mantêm a tensão entre trauma e pulsão, no sentido em que esses termos constituem- se num mesmo movimento. No primeiro autor, o encontro do sujeito em vias de constituição com o ambiente, concebido como o Outro, é sempre traumático, ou seja, o encontro do ser com a ordem simbólica representa um traumatismo constitutivo pela própria impossibilidade de recobrimento do Real pelo Simbólico. A pulsão é um efeito desse processo de constituição e não anterior a ele. Laplanche acompanha Lacan no que diz respeito à prioridade do Outro na constituição do sujeito. No entanto, concebe esse outro não como a ordem simbólica em geral, mas como as mensagens sexuais inconscientes do adulto, em particular, sendo que, para Laplanche, a pulsão gerada nesse processo é sempre a pulsão sexual. Para esse autor, no âmago da subjetividade da qual se ocupa a Psicanálise, está a sexualidade infantil, seja em sua forma ligada, como no narcisismo, no amor e nas demais manifestações da pulsão de vida; seja em sua forma desligada e fragmentadora, como nas manifestações perversas da sexualidade e em todas as formas de expressão da pulsão de morte.

A reafirmação da primazia da sexualidade infantil na Psicanálise foi uma constante na obra de Freud. Foi dentro desse espírito que ele manifestou a expectativa de que a oposição entre neuroses traumáticas e neuroses de transferência pudesse ser superada, no breve texto que escreveu em 1919, como introdução ao trabalho de alguns discípulos sobre a psicanálise e as neuroses de guerra. Essa oposição entre as duas categorias de neurose, ele a expressa da seguinte forma:

“As neuroses traumáticas e as neuroses de guerra podem proclamar em voz muito alta os efeitos do perigo mortal e podem fi car em silêncio ou falar apenas em tom surdo dos efeitos da frustração no amor. Mas, por outro lado, as neuroses de transferência comuns, de tempos de paz, não dão valor etiológico ao fator de perigo mortal que, na antiga categoria das neuroses, desempenha um papel tão poderoso” [26].

Logo em seguida, nos fornece a indicação de que talvez a teoria da libido possa vir a ser estendida às neuroses traumáticas da mesma forma que o foi às neuroses narcísicas, acrescentando que um caminho para isso seriam as investigações das relações que sem dúvida existem entre o medo, a angústia e a libido narcísica. Sobre essas relações, ele nos deu várias indicações no decorrer de sua obra, das quais podemos deduzir que se o medo de um perigo real representa a reação do sujeito diante de uma ameaça à sua auto-conservação, a angústia representa sua reação à ameaça de fragmentação de um eu investido narcisicamente. Ora, por um lado, sabemos que nenhum sujeito reage a um perigo vital movido apenas por um instinto de auto-conservação, pois este, se existe no ser humano, foi totalmente recoberto pela libido narcísica. Sendo assim, um perigo real mobiliza toda a quota de narcisismo disponível para tentar restabelecer uma onipotência ante o desamparo, mas pode revelar, no mesmo ato, o avesso do narcisismo, ou seja, a fragmentação auto-erótica, uma vez que é da energia das pulsões parciais que se alimenta o narcisismo. Por outro lado, é pelo fato mesmo de o sujeito depender de uma unifi cação narcísica para se preservar que o pulsional auto-erótico representa sempre a possibilidade de invasão traumática e que o recalcamento deve ser mobilizado contra essa invasão. Chegamos assim a uma outra indicação da aproximação entre as neuroses traumáticas e as neuroses de transferência pois, conforme afi rma Freud, “afi nal de contas, temos o direito de descrever a repressão [o recalcamento], que está na base de cada neurose, como uma reação ao trauma – como uma neurose traumática elementar” [27].

A introdução da pulsão de morte por Freud, sua relação com a compulsão à repetição e com o trauma favoreceram o surgimento de uma separação entre os fenômenos psíquicos atinentes ao inconsciente e aqueles relativos à pulsão. Essa separação, se levada ao extremo, acaba por tornar problemática a própria idéia de pulsão sexual e por desalojar o inconsciente de sua posição central na teoria e prática psicanalíticas. Édipo e castração, desejo e censura, libido e narcisismo, entre outros, tornamse conceitos associados a uma espécie de primeira era psicanalítica dominada pela descoberta do inconsciente e de sua inextricável ligação com a sexualidade, ao passo que os conceitos de repetição e pulsão, juntamente com o conceito lacaniano de real, tornamse associados com um mais além não só do princípio de prazer, mas também do próprio inconsciente e do sexual. Antes, porém, de nos apressarmos a aclamar uma suposta nova era da Psicanálise, fundada na pulsão e não mais no inconsciente, julgamos prudente lembrar o caráter insidioso e persistente das resistências que se opõem ao reconhecimento dos aspectos mais perturbadores e desconcertantes da sexualidade. Fiquemos, portanto, atentos e cuidadosos com os argumentos que nos sugerem uma separação entre pulsão e inconsciente, entre pulsão e sexualidade. O trauma talvez seja o principal elemento de uma teoria capaz de juntar esses conceitos cujos destinos se confundem com os destinos da Psicanálise.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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