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Resumo
Talvez Freud tenha tido uma relação não-ocidental com sua produção de textos, a julgar pela importância que dava à palavra do outro. Aliás, há mais dificuldades em traduzi-lo para línguas ocidentais do que para orientais.


Autor(es)
Antonio Francisco Das Neves
é especialista em Teoria Psicanalítica (UFMG/ FUNDEP).


Notas

1. Conjecturo se Freud não deteria uma relação especial (pelo menos, digamos, não ocidental) com sua própria produção de palavras, a ponto de nos surpreender com sua capacidade de dar tanta relevância à palavra vinda do outro. Se isto se verifi casse, estariam justifi cadas, pelo menos em parte, as destacadas difi culdades em traduzir seus textos no Brasil e noutros países ocidentais, difi culdades que podem não ter ocorrido nalguns países orientais, pelo menos não em nível que merecesse a sua divulgação por aqui.

2. Tal afi rmação de Freud encontra-se, por exemplo, em “Tratamento psíquico (ou anímico)” (1890), Edição standard brasileira das obras completas de S. Freud (E.S.B.), Rio de Janeiro, Imago, vol. VII, p. 267, 1989.

3. S. Freud (1917), “Conferências introdutórias sobre Psicanálise”, E.S.B., vol. XVII, p. 178, 1976.

4. Uma visão inicial de Freud sobre esta integração encontra-se na leitura que K. Pribram e M. Gill fi zeram em O Projeto de Freud – um exame crítico, São Paulo, Cultrix, 1976, por exemplo, nas p. 78- 79 (aprendizagem e percepções).

5. S. Freud (1895), “Projeto para uma psicologia científi ca”, E.S.B., vol. I, 3. ed., p. 403, 1990.

6. Como se sabe, esses autores foram consultados como especialistas pelos editores ingleses de Freud quando se cogitou a inserção dos rascunhos do nas obras completas (SE), como registra a E.S.B. (1940/1989), vol. I, p. 399 (Pribram) e p. 400 (Gill).

7. K. Pribram e M. Gill, op.cit., p. 8.

8. S. Freud (1940) “Esboço de psicanálise”, E.S.B., vol. XXIII, p. 316-317, 1975.

9. F. Sulloway, “Freud, Biologe der Seele” (“Freud, biólogo da alma”), in Alfred Lorenzer, Arqueologia da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987, p. 14.

10. B. Fuks, Freud e a judeidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p. 139.

11. B. Fuks, op. cit., p. 19.

12. E. Jones, Vida e obra de Sigmund Freud, 3. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 38.

13. M. Kohn, Freud e o Iídiche: o pré-analítico, Rio de Janeiro, Imago, 1994, p.11.

14. S. Freud (1900), E.S.B., 2. ed., vol. IV, p. 201, 1987.

15. E. Jones, op. cit., p. 40.

16. P. Gay, Freud, uma vida para nosso tempo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 24.

17. E. Jones, op. cit., p. 57.

18. S. Freud (1925), “Um estudo autobiográfi co”, E.S.B., vol. XX, 1988, p.16.

19. Sigmund Freud e arqueologia, Rio de Janeiro, Salamandra, 1994, p. 169.

20. T. Boman, Hebrew thought compared with Greek, New York, W.W. Norton & Co., 1970.

21. O texto, em inglês, está na página http://www. ancient-hebrew.org/12_thought.html, e pode ser reproduzido para objetivos educacionais sem fi ns lucrativos. Fiz a tradução. A cópia está em http://www.shamar.org/articles/hebrew-thought. htm e, mais resumido, sob o título God is a verb, em http://danceofthemind.typepad.com/ mind/2006/01/i_took_a_class_.html.

22. Ver T. Boman, op. cit., p. 103.

23. A propósito, é interessante observar a ênfase com que Freud (1890) discorre sobre as exteriorizações das emoções em “Tratamento psíquico (ou anímico)” em E.S.B., vol. VII, 1989, p. 270- 271

24. Sobre essas traduções bíblicas, há informações no portal http://www.biblegiftstore.com/todparbibniv. html.

25. O portal http://www.ibs.org/niv/ traz informações sobre essa versão.

26. Comentário lido em http://portalteses.cict.fi ocruz. br/ sobre o livro de Moacyr Jaime Scliar, Da Bíblia à psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica (Doutorado). Fundação Oswaldo Cruz, ENSP, 1999.

27. Reportagem de Marcelo Leite, Folha de S. Paulo, 15/05/2005, “Ciência em dia”, in Biologia desorientada.

28. Em http://sun3.lib.uci.edu/~scctr/Wellek/keller/ e em inúmeras outras referências na Internet são encontradas informações sobre Evelyn Fox Keller e suas idéias.

29. O experimento está descrito no caderno Ciência da Folha de S. Paulo de 23/08/2005 sob o título “Chineses e americanos enxergam mesma imagem de modo distinto”.

30. B. Fuks, op. cit., p. 139.

31. S. Freud (1917), E.S.B., vol. XVII, 1976, p. 179.


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 TEXTO

Palavra é coisa freudiana

Antonio Francisco Das Neves


Nenhum outro cientista, em todos os tempos, percebeu tão bem quanto Freud a importância das produções corpóreas do indivíduo para o desenvolvimento da humanidade. Com isto quero dizer que urina, gestos, palavra, esgares, pensamento, orgasmo, escrita e fezes, dentre outras tantas, foram retiradas por ele dos diferentes e às vezes indiferentes desvãos onde jaziam na vida cotidiana e na história, e levadas a ocupar seus importantes lugares na vida do homem e na teoria psicanalítica. Não incluí o amor nessa lista – nem Deus – produções humanas com fortes influências evolucionárias e coletivas que em muitos sentidos extrapolam o âmbito individual, mas isso não se constitui num problema, porque também se pode dizer que nenhum outro cientista, em qualquer tempo, valorizou tanto as produções humanas quanto Freud. Incidentalmente, é bom não ignorar que produções corporais intrinsecamente individuais não existem, como sabemos, visto que para obrá-las estamos, desde a nascença, sujeitos ao meio externo nalguma medida, aí incluído o manual de instruções que portamos, vindo do outro. Pois bem, dentre as produções citadas separo aqui as palavras, sobre as quais quero refletir um pouco [1]. Elas tiveram sua força percebida por Freud antes até da descoberta de importantes aparatos conceituais com que constituiu a Psicanálise, em cuja origem já cuidou de mostrar que palavras são a ferramenta essencial do tratamento anímico – um tratamento, dizia, que parte da alma para aliviar a pessoa de suas mazelas [2]. Sua conclusão posterior de que o homem (no caso, o eu) não é o senhor de sua própria casa [3] não o levou, ainda assim, a enxergá-lo com duas naturezas, como era usual em sua época. Portanto, ele divisava o ser humano em sua constituição ideal como um ente uno e, além disso, integrado ao meio externo [4] (mãe, relações etc.). Porque assim o via e, dada sua inacreditável bagagem científi ca, Freud até chegou, em 1895, a rascunhar um projeto de “estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural [...]” [5] – pois, para ele, as formulações daqueles conceitos e suas defi nições eram apenas uma outra maneira de olhar para o mesmo objeto (o ser humano). Isso, parece-me, conforma com o que afi rmam Pribram e Gill [6]: “De fato, o ‘Projeto’ não só apresenta, mas também sugere mecanismos neurobiológicos para conceitos psicanalíticos tão importantes quanto os processos primário e secundário, o ego, o princípio da realidade, pulsão e defesa. Embora esses conceitos sejam também desenvolvidos em escritos ulteriores em bases essencialmente psicológicas, o ‘Projeto’ revela alguns dos pressupostos neurobiológicos encobertos com que esses conceitos estavam interligados” [7]. Com efeito, em um de seus últimos escritos, Freud afi rma a Psicanálise como “uma parte da ciência mental da psicologia”, e a psicologia como uma “ciência natural” [8]. Visto que, pelo menos na civilização ocidental, cientistas, filósofos e religiosos tinham certeza de que o humano é bipartido em corpo e alma (olhar também bastante enquistado no meio médico), Freud, que disso discordava, enfrentou muitas difi - culdades já nos tempos iniciais da talking cure. Ele, porém, persistiu nesta maneira de ver, inédita para a ciência no ocidente daqueles tempos, e aprimorou-a, impondo uma guinada ao pensamento ocidental – êxito que depois foi extensamente reconhecido e enaltecido, sendo comum depararmos com afi rmações como esta: “o horizonte teórico audacioso e a ousadia intelectual de Freud transfi guraram fundamentalmente o território da psicologia que existia em sua época” [9]. E o território da medicina, também, devese acrescentar.

Muitos autores já correlacionaram a origem familiar de Freud com sua, digamos, destinação (pela especifi cidade de seu olhar) a enxergar dessa maneira peculiar os humanos. Fuks, por exemplo, menciona que Lacan manifestou dúvida se se poderia conceber a Psicanálise como nascida fora da tradição judaica [10].

Uma forte característica de transmissão de culturas, como a judeidade, é a linguagem, e sabe-se que a língua materna de Freud foi o iídiche, uma língua de exílio fusionada do hebraico, do românico, do germano e de línguas eslavas, e escrita com caracteres hebraicos. Sua mãe, Amalie Nathansohn, falava com os filhos exclusivamente esta, que é a mame loschen (língua materna) [11], enquanto amamentava e acariciava seu pretinho [12], como apelidava o Sigi nos primeiros tempos. Kohn é outro a publicar que no vilarejo de Príbor os Freud falavam o iídiche, porque a Galícia é a zona lingüística do iídiche e o galiciano, um de seus dialetos [13]. Não quer isso dizer que em menino Freud não tivesse ouvido e até falado a língua da maioria da população do lugar, o tcheco. Ele escreveu: “Aliás, devo ter compreendido o tcheco nos primeiros anos de minha infância, pois nasci numa pequena cidade da Morávia com uma população eslava” [14]. Jones, seu amigo e biógrafo, afi rma que, com a velha babá, que era tcheca, Freud falou essa língua até aos dois anos e meio [15].

Nos 24 volumes da Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (E.S.B.), não há referência nem citação explícitas ao iídiche, e Kohn diz ser inútil procurar a presença do iídiche na obra de Freud. Quanto ao hebraico, Gay relata que o pai de Freud lia a Bíblia em casa, e Freud acreditava que ele “falava a língua santa tão bem ou melhor do que o alemão” [16]. E Jones diz de Freud: “Evidentemente, haviam lhe ensinado o hebraico” [17]. Novo, ainda, Freud se volta para a Bíblia, que estuda com um ótimo professor. Numa autobiografi a, declara, aos 69 anos: “Meu profundo interesse pela história da Bíblia (quase logo depois de ter aprendido a arte da leitura) teve, conforme reconheci muito mais tarde, efeito duradouro sobre a orientação do meu interesse” [18]. Ele até sonhava com esse livro, um exemplar que seu pai lhe presenteou da notável Bíblia de Philippson, que se encontra hoje no museu onde era sua casa em Londres. Numa reprodução de duas páginas dessa Bíblia, bilíngüe e fartamente ilustrada, se vê que o texto em alemão é grafado no alfabeto gótico, tendo ao lado o texto no alfabeto hebraico [19].

Assim, não é difícil conjeturar que esta convivência de Freud com a fala de seus ancestrais e com as leituras bíblicas em tão pouca idade terá, sim, direcionado seu modo posterior de produzir pensamentos e de agir. Essa idéia de um inconsciente freudiano portando registros da linguagem de seus antepassados hebreus está em Kohn e em Fuks, já citados, que pesquisaram o assunto do ponto de vista psicanalítico e de maneira, a meu ver, densa e emocionante. Mas, só fui atinar o quanto pode ser importante para a ciência essa diferença entre ver o mundo ao modo “oriental” (antigos hebreus), ou do jeito “ocidental” (oriundo da Grécia antiga), depois que li trechos do livro Hebrew thought compared with Greek [20]. Graças a ele, cheguei nas páginas da Internet a um texto bastante sumarizado, mas que me prendeu a atenção pela forma minudente, paciente e didática com que são abordadas certas diferenças entre as culturas arcaicas de língua hebraica e grega. Sua fala simples e objetiva, que mais parece dirigida a crianças, me fez lembrar o episódio que presenciei de duas meninas assistindo a um desenho pela TV. Quando a mais nova pressentiu que logo apareceriam bruxas que lhe davam medo, tratou de se levantar da cadeira para sair da sala – ao que a mais velha, percebendo a situação, lhe explicou: “não, você não precisa sair da sala, está vendo aquele vidro na TV onde as bruxas aparecem? – ele segura as bruxas lá dentro, elas só iam poder sair da TV e entrar aqui se ele estivesse quebrado; pode vir, vamos ver, o vidro está inteiro e as bruxas não vão poder sair lá de dentro.” Surpreso, olhei para seu rosto e percebi que ela de fato acreditava no que estava criando e dizendo ali. Ao ouvila, a menorzinha voltou para sua cadeira e assistiu às cenas descontraidamente, sem mais medos. Da mesma forma, eu também estava em busca de esclarecimentos assim precisos, resolutos, querendo saber mais sobre uma possível origem para a provada percuciência do olhar de Freud quando me deparei, no portal do Ancient Hebrew Research Center [21], com o tal sumário focado em textos bíblicos. Na ocasião em que o li pela primeira vez, tempos atrás, pelo menos um de seus leitores havia postado um comentário, mencionando que seu conteúdo era muito simplificador, enquanto outros o elogiavam. Não é para menos. Seu autor afi rma que culturas relevantes no passado, como a hebraica e a grega, tinham modos bastante diferentes de pensar e de se expressar. O pensamento grego via o mundo com a mente (pensamento abstrato), e o pensamento hebreu via o mundo com os sentidos (pensamento concreto). A cultura grega influenciou várias outras no ocidente, inclusive a hebraica moderna, na Israel de hoje. No hebraico os cinco sentidos são usados quando se fala ou se ouve, se escreve ou se lê. É citado um exemplo do Livro dos Salmos (capítulo 1, versículo 3), sobre o homem justo: “Ele é como árvore plantada junto a uma corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha”. Nessa passagem, palavras que expressam coisas concretas falam de pensamentos abstratos, por exemplo árvore (alguém correto, direito), corrente de águas (graça divina), fruto (bom caráter) e folhagem que não murcha (prosperidade). Pensamento abstrato, prossegue o texto, é expressão de conceitos e idéias que não podem ser vistos, tocados, cheirados, saboreados ou ouvidos. O antigo hebreu nunca usa pensamento abstrato como o faz o inglês. Exemplo de pensamento abstrato, nos Salmos 103.8: “O SENHOR é misericordioso e compassivo; difi cilmente fi ca com raiva, e é transbordante de amor”. (The LORD is compassionate and gracious, slow to anger, abounding in love). O hebraico usa pensamentos concretos, e não abstratos, mas aqui temos alguns conceitos abstratos como compassivo, misericordioso, raiva e amor na frase hebraica. Em verdade, o que há são palavras inglesas abstratas traduzindo palavras concretas do original hebraico. E prossegue esclarecendo que os tradutores freqüentemente traduzem desse modo porque o original hebraico não faz sentido quando literalmente traduzido para o inglês. Tomando como exemplo uma palavra abstrata, demonstra como isto funciona. Anger (raiva), uma palavra abstrata, é usada aqui para traduzir uma palavra do hebreu ( אף /a.p/awph) que signifi ca, literalmente, “nariz”, uma palavra concreta [22]. Quando alguém está muito enraivecido, começa a respirar com difi culdade e as narinas começam a fl amejar [23]. Um hebreu vê raiva como “o fl amejar do nariz (narinas)”. Se o tradutor vertesse literalmente a passagem acima como “slow to nose” não faria sentido para o leitor inglês, então אף“ ”, nariz, é traduzido como “raiva” nesta passagem.

O texto segue dizendo que o pensamento grego descreve objetos em relação com sua aparência, enquanto o pensamento hebraico considera objetos em relação com sua função. Um cervo e um carvalho, exemplifi ca, são dois objetos muito diferentes e nunca os descreveríamos do mesmo modo com nosso modo grego de pensar. A palavra hebraica para ambos é /איל a.y.l/ayil porque a descrição funcional desses dois objetos é idêntica para os antigos hebreus e, assim, a mesma palavra é usada para ambos. A defi nição hebraica para איל é “um líder forte”. Um cervo macho é um dos mais poderosos animais da floresta e é visto como “um líder forte” entre eles. Também a madeira da árvore do carvalho é extremamente rija (quando comparada à de outras árvores, por exemplo, como a do pinheiro, que é macia) e é vista como uma “líder forte” entre as árvores da floresta. Esta palavra hebraica איל é traduzida das duas diferentes maneiras em versões do Salmo 29.9: em uma delas (as inglesas NASB e KJV) [24], esse versículo é traduzido como “A voz do SENHOR faz ‘o’ cervo parir”, isto é, faz parir o cervo macho. Observo, aliás, que João Ferreira de Almeida, tradutor da versão portuguesa, em vez de algo como a tradução inglesa “the deer to calve”, nos trouxe: “A voz do SENHOR faz dar cria às corças”. Outra versão do trecho bíblico (NIV) [25] o traduz como “A voz do SENHOR chacoalha os carvalhos”. A tradução literal deste versículo no pensamento hebraico poderia ser “A voz do SENHOR faz com que os fortes líderes se curvem”. Ao traduzir do hebraico para o inglês, o tradutor precisa dar uma descrição grega a esta palavra, razão pela qual há dois diferentes modos de traduzir esse versículo. Outro exemplo do modo grego de pensar é dado na seguinte descrição de um lápis comum: “é amarelo e é comprido, medindo cerca de 15 cm”. Da maneira hebraica, a descrição do lápis poderia ocorrer pela função e ficaria: “Eu escrevo palavras com isto”, e explica que a descrição hebraica usa o verbo “escrever” enquanto a descrição grega usa os adjetivos “amarelo” e “comprido”. O tópico é concluído com a afi rmação de que, por causa dessa forma hebraica de descrições funcionais, verbos são mais freqüentemente usados do que adjetivos.

Explica ainda o autor que a cultura grega descreve objetos em relação com o próprio objeto, enquanto a cultura hebraica descreve objetos em relação ao hebreu. No exemplo do lápis, a descrição grega retrata o relacionamento do lápis com o próprio lápis usando a palavra “é”. O hebraico descreve o lápis em relação com o próprio hebreu dizendo “eu escrevo”. Como o hebraico não descreve objetos em relação aos próprios objetos, diz, o vocabulário hebraico não tem a palavra “é”. Nessa mesma linha, uma descrição grega de Deus poderia ser “Deus é amor” que descreve Deus em relação com Deus. Uma descrição hebraica poderia ser “Deus me ama” descrevendo Deus no relacionamento comigo.

Esclarece o autor, em seguida, que os substantivos gregos são palavras que se referem à pessoa, lugar ou coisa, enquanto os substantivos hebraicos se referem à ação de uma pessoa, lugar ou coisa. Os hebreus são um povo ativo e seu vocabulário refl ete esse modo de ser. O autor exemplifi ca: a cultura grega reconhece palavras como “joelho” e “presente” (pode ser dádiva também) enquanto substantivos que por eles mesmos não comunicam ação. No vocabulário hebraico, porém, tais substantivos vêm da mesma raiz da palavra ברך /b.r.k, porque eles são relacionados não com aparência, mas com ação. A palavra hebraica para joelho é /ברך b.r.k/berak e signifi ca literalmente “a parte do corpo que curva”. A palavra hebraica para dádiva é /ברכה b.r.k.h/berakah, signifi cando “que é trazida com o joelho curvado”. O verbo com a raiz da palavra é /ברך b.r.k/barak, signifi cando “curvar o joelho”. Como se percebe, ambos – verbos e substantivos hebraicos – se associam (entre si) na prática da ação, o que não ocorre com os substantivos gregos.

Na medida em que fui lendo tal sumário, cada vez mais me surpreendia com o que ali se encontrava escrito. Pode até ser que nesse texto tenham sido usados, “como os escritores bíblicos, em parte o fato histórico, em parte a imaginação” [26], mas depois que o li fi cou mais fácil imaginar que para os humanos – como acho que Freud os via, à semelhança daqueles antigos hebreus – seria mais natural estar com a palavra grudada em si, e não ao modo como se dá a palavra urdida pelos antepassados gregos (cultura ocidental) que adora voar (feito alma) se possível para longe de nós. E fiquei ainda mais entusiasta do fato de Freud tanto escrever na primeira pessoa.

Enquanto este e outros textos análogos na Internet e Boman em seu livro apontam para tais diferenças, outros que também já as haviam visto buscam uma reorientação na língua da ciência ocidental. Por exemplo, a física e historiadora de ciência Evelyn Fox Keller, professora do MIT, de 70 anos, manifesta em seus escritos um “rigor implacável no exame das metáforas e do vocabulário que a ciência da hora se permite usar”, como anota Marcelo Leite [27]. Para Keller, ele diz, “a cultura epistemológica ocidental está viciada em dicotomias e categorias baseadas em propriedades fi xas”. Keller está convencida de que “esses hábitos mentais partitivos remontam à própria mentalidade inscrita nas línguas ocidentais” e na forma com que são ensinadas às crianças. Um pai ocidental, diz ela, tende a ensinar nomes associados com propriedades e componentes (ênfase em substantivos). Já um oriental enfatizaria mais as relações entre objetos e as ações entre pessoas mediadas por esses objetos (ênfase em verbos). A esperança de Keller em verbalizar a ciência (no caso, a biologia) talvez se torne realidade a partir de contatos que ela tem feito com cientistas, na China [28]. Richard Nisbett, do Departamento de Psicologia da Universidade de Michigan em Ann Arbor (EUA), também aponta para as diferenças culturais – principalmente na educação das crianças – como explicação para o distinto modo de ver o mundo pelos chineses e pelos americanos, observado em experimentos. Ele afi rma que “Mães americanas tendem a usar mais substantivos, e a usar mais objetos ao brincar com seus fi lhos pequenos. Já as chinesas e coreanas utilizam mais verbos e enfocam mais relações sociais” [29]. Lidas essas coisas, fico a imaginar se Freud, nesse contexto, já não teria estado à frente da ciência ocidental e do seu tempo, também pelo que há de sua ancestralidade na psicanálise. Diz Fuks: “o imperativo de lembrar na análise, para romper sobretudo com signifi cações a priori e efetuar mudanças, é o meio pelo qual o sujeito se vê obrigado a comentarse a si mesmo, a ler os traços de sua própria história, e reescrevê-lo diante de suas dores e sofrimentos, de seus sintomas, inibições e angústias... bem como de suas alegrias. Trata-se exatamente daquilo que John Austin denominou de atos de fala, onde o dizer equivale a um fazer, pois produz mudança efi caz de sentido na situação” [30] (grifo meu). E crendo nisso, passo a entender mais profundamente esta afi rmação de Freud: “A Psicanálise tem apenas a vantagem de não haver afirmado, sobre uma base in abstracto, essas duas propostas tão penosas para o narcisismo – a importância psíquica da sexualidade e a inconsciência da vida mental – mas demonstrouas em questões que tocam pessoalmente cada indivíduo e o forçam a assumir alguma atitude em relação a esses problemas” [31] (grifo meu).
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