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Resumo
Resenha de Maria Thereza Waisberg, O esquecimento dos sonhos e as ilusões da consciência – Freud e o último caráter da hermenêutica, Belo Horizonte, C/Arte, 2006, 173 p.


Autor(es)
Cibele Ruas
é psicóloga clínica e escritora, com formação psicanalítica pelo Núcleo de Psicanálise (Belo Horizonte) e membro fundador do Núcleo de Psicanálise, Estudos e Práticas Institucionalistas (Belo Horizonte).

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 LEITURA

O sentido ético do esquecimento na psicologia dos sonhos

Cibele Ruas


Resenha de Maria Thereza Waisberg, O esquecimento dos sonhos e as ilusões da consciência – Freud e o último caráter da hermenêutica, Belo Horizonte, C/Arte, 2006, 173 p.

Maria Thereza Waisberg percorre questões importantes de um texto que, há mais de um século, tem se mostrado inexaurível – A interpretação de sonhos, de Sigmund Freud. A partir da tensa fronteira entre a fi losofi a e a psicanálise, ela segue por um viés pouco explorado: o esquecimento dos sonhos. O livro é versão modifi cada de sua dissertação de mestrado no Departamento de Filosofi a da Universidade Federal de Minas Gerais.

Questionar aspectos teóricos, técnicos e metodológicos da psicanálise é sempre, e muito, refl etir sobre a subjetividade. Quem é o sujeito psicanalítico, o sujeito do inconsciente? Qual é sua articulação com o sujeito do Cogito cartesiano?

Se interpretar é método científi co que visa a explicitar o funcionamento do psiquismo humano, é justo que se parta da genealogia dos modelos e dos referentes epistêmicos que circundaram o saber freudiano, emprestando terminologia e conceituação à linguagem do inédito. O que é interpretar? – a autora parte em busca dessa resposta, percorrendo caminhos que apontam para possíveis soluções da questão. A resenha se manterá fi el aos caminhos privilegiados por Waisberg.

O sonho tem um sentido passível de ser encontrado através da laboriosa operação de interpretação psicanalítica. A busca de sentido envolverá, aponta a autora, a compreensão ética como caráter último da tarefa hermenêutica.

O trabalho da interpretação psicanalítica exige que esta se volte sobre si mesma, interpretando- se ad infi nitum. “Com isso, a interpretação é um método que não se esgota” (p.154). Seu caráter inacabado é, antes de tudo, o reconhecimento de que não há verdade essencial e imutável a ser descoberta. Assim, a interpretação freudiana sempre obriga o intérprete a ela retornar, sem pretender esgotá-la.

O caráter de infi nitude do processo interpretativo impõe restrições na escuta clínica. Se a escuta permite um campo infi nito de signifi cados ao intérprete, é tarefa do psicanalista fazer que o analisando se reconheça implicado no campo de sentidos do texto que o sonhador constrói.

A interpretação psicanalítica deve permitir que se encontre um ponto de basta, justamente onde o sentido de um sonho possa ser traduzido, reconhecido in limine como desejo de um sujeito que se formula em texto, na elaboração da cadeia associativa entre os elementos que compõem a imagem onírica, ressalta Waisberg. A interpretação de sonhos é a obra-mestra para se entender como Freud – em meio à tradição científi ca naturalista e à fi losofi a consciencialista da época – conseguiu expandir a racionalidade, injetando-lhe o que até então permanecia excluído. Os argumentos de Freud em A interpretação de sonhos apresentam um modelo que fundamenta novas bases para a Ciência e uma concepção inédita sobre o psiquismo, que obriga a fi losofi a a retifi car o fundamento psicológico tradicional sobre o qual se construíra: ela terá de levar em consideração, a partir do advento da psicanálise, a atividade psíquica inconsciente.

A autora disseca as tendências que inspiraram Freud – Dilthey e Schleirmacher, bem como as do movimento naturalista – onde Freud deseja encontrar sua identidade epistêmica.

Waisberg destaca o ineditismo de Freud frente às infl uências sobre as origens da psicanálise. Por ser um pensador que se auto-analisa continuamente, assim como analisa sua construção científi ca, ele não deixa de refl etir e reconsiderar a repercussão das linhas de pensamento em voga sobre as bases e o alcance da interpretação. Essa refl exão leva-o a introduzir o conceito de sobredeterminação, de acordo com o caráter evolucionário da interpretação, na sua autêntica vertente darwiniana. Nada o impede de inaugurar, com A interpretação de sonhos, a tese de que o sonho mostra de forma emblemática que o homem não possui o centro que acreditava nem no plano universal, nem no plano biológico, nem em seu próprio psiquismo.

Para construir sua teoria científi ca sobre os sonhos, a autora chama a atenção para o fato de Freud romper com o modelo explicativo, sustentado em bases somáticas, perspectiva epistemológica da psiquiatria e da psicologia explicativas do século xix, constituindo um campo epistemológico original. A interpretação de sonhos marcou a construção de uma teoria psicanalítica do sentido. É nesse ponto capital, onde Freud demonstra a decisiva importância do sonho como formação do sistema inconsciente, que Waisberg analisa como a psicanálise se distingue da hermenêutica tradicional.

Segundo a autora, o método de interpretação cria um estilo próprio de hermenêutica, que ultrapassa o modelo consciencialista da Filosofi a e da Ciência da época. O descentramento do sujeito é novidade epistemológica e metodológica, e a interpretação, o instrumento necessário à captação do sentido relacionado com a verdade do sujeito.

Se o desejo inconsciente permanece oculto, distorcido e esquecido, a interpretação psicanalítica torna-se leitura rigorosa que permite resgatar a matéria-prima produtora da verdade do sujeito – o sujeito do inconsciente, revelado pelas formações do inconsciente. A psicanálise abandona os conceitos de sujeito da fi losofi a e da psicologia. A impossibilidade de trânsito entre esses três campos de saber marca a fronteira que delimita a especifi cidade da psicanálise, diferenciando- a como nova ciência.

Reflexão e consciência não mais coincidem. A interpretação questiona as ilusões da consciência e o caráter auto-evidente do eu, fundando novas bases de investigação que, destaca Waisberg, elevarão o estatuto do inconsciente à racionalidade. A nova ciência tem um imperativo: “não esquecer o inconsciente, o que implica tratar de lhe fazer justiça, e não abandoná-lo à irracionalidade” (p. 32).

No capítulo VII de A interpretação de sonhos, Freud inaugura a psicologia do sujeito dividido. O fenômeno da transferência permite apreender in statu nascendi os elementos do confl ito fundante do sujeito e de sua verdade.

O texto de Waisberg é rigoroso: repassa passagens polêmicas quanto à tradução dos termos empregados por Freud no original em alemão. A autora examina o efeito do termo interpretação (Deutung), dependendo da compreensão cultural das diversas tradições dos comentadores da obra freudiana. Ela ressalta as alterações radicais sofridas em suas sucessivas versões, suscitando discussões e equívocos não somente entre as diversas escolas de psicanálise, mas também em outros campos do saber.

A autora convida a psicanálise ao debate sobre a linguagem, especialmente a linguagem onírica, perguntando em que medida a fi losofi a compreende a psicanálise como um estilo de hermenêutica. Afi nal, a psicanálise lida com as aparições lingüísticas do desejo, sendo o sonho uma formação do inconsciente que se apresenta como texto. “O ‘inconsciente’ não é o inconsciente do texto formado por essas transformações, mas é a expressão do regime que regula a manifestação confl itual que subjaz a essas transformações” (p. 50).

Descortina-se a complexidade do que a psicanálise propõe: a busca dos pensamentos oníricos, originários do conteúdo manifesto, delineia os processos psíquicos em jogo. A memória, então, não se situa numa disposição contínua em relação à realidade: ela está gravada de diversas maneiras, nos diferentes registros – que serão designados como consciente, pré-consciente e inconsciente. Freud nunca ofereceu um estudo completo sobre a memória, mas várias questões foram sinalizadas. À medida que o tema se aprofunda, a diferença entre pensamentos oníricos e conteúdo onírico revela a existência de um fato fundamental, a natureza superdeterminada do conteúdo do sonho, e princípios fundamentais, “um verdadeiro ‘aplainamento’ entre realidade e fantasia” (p. 155), no processo de estruturação psíquica.

A psicanálise faz sua contribuição à lingüística, já que aponta para a relação entre palavra e desejo. A linguagem humana, simbólica, é distorcida: “o que é dito freqüentemente quer dizer outra coisa” (p. 53).

Não basta ao analista a familiaridade com a língua da teoria. As palavras do paciente não se deixam encerrar por esquemas preestabelecidos. Toda a conceituação tem sua origem na experiência pessoal, cuja originalidade deve ser reencontrada, destaca a autora.

Como interpretar? Waisberg apóia a tese de que, por meio de sua auto-análise, Freud criou uma forma singular de racionalidade, ao encontrar vínculo entre a racionalidade e o imaginário.

Em A interpretação de sonhos, misturam-se os planos da experiência clínica, das experiências pessoais e da experiência teórica – afi nal, a obra marca uma grande virada, que emerge da preocupação de estruturar um método, no mesmo tempo em que se revolucionam os paradigmas que embasavam a racionalidade. Os processos das formações do inconsciente estão articulados aos processos de estruturação da linguagem.

Freud intitula o capítulo VII de A interpretação de sonhos de “A psicologia dos processos oníricos”. Sendo o inconsciente, por excelência, o objeto da psicanálise, e sendo a consciência o objeto da psicologia, Freud obriga a questão do inconsciente a ser tomada como objeto da ciência, provocando vertigem nos confi ns da metafísica e da ciência, conforme salienta Waisberg. O termo metapsicologia é utilizado para defi nir a originalidade de sua tentativa de edifi car uma psicologia que leve ao outro lado da consciência, diferentemente das psicologias clássicas da consciência.

Interpretação, no vocabulário fi losófi co, remete sempre à hermenêutica, mas seria a Deutung freudiana uma hermenêutica? Waisberg chama a atenção para o fato de que, para o próprio Freud, o método seria utilizado para substituir o conteúdo ininteligível dos sonhos por outro, compreensível e signifi cativo. O inconsciente freudiano coloca a hermenêutica em crise, demonstra a autora, pois esta não pode mostrar como é seu modelo de interpretação. Freud se recusa a subordinar a psicanálise a uma racionalidade hermenêutica, o que é atestado por sua fi delidade obstinada ao ideal explicativo: “Não existem aspectos de um sonho que não possam ser explicados desta maneira”, afi rma ele no Esboço de Psicanálise (1940[1938]), referindo-se ao estudo da elaboração onírica.

Seguindo Waisberg, o esquecimento e a dúvida, nos sonhos, são mensagens que insistem em se fazer presentes – funcionam também como espécie de pontuação, operam como a interrupção da trama de um texto. O desejo do sonho é transmitir uma mensagem. Ora, todos os sonhos são realizações alucinatórias de um desejo recalcado; por outro lado é função do sonho impedir que essa mensagem seja transmitida à consciência. Freud observa que os sonhos possuem regras que funcionam como operadores nos processos de linguagem. Tais operadores, sob a censura do sistema préconsciente/ consciência, distorcem e deslocam o conteúdo da mensagem, de maneira a torná-la incompreensível ao sonhador no estado de vigília. Entretanto, Freud faz ver que, embora a mensagem seja incompreensível à consciência, ela não é intraduzível; para tanto, deve ser interpretada pela linguagem da vigília. A censura opera como resistência à recordação, que ainda assim insiste em ser recordada na sua forma distorcida. O esquecimento é, portanto, o efeito de um trabalho: ele é a resultante de duas forças que operam em sentido contrário para satisfazer o desejo, que é imperativo, frisa Waisberg.

O desejo é a própria condição do trabalho de sonho, de forma a perturbar minimamente o sono. O esquecimento do texto onírico (manifesto por meio da percepção de imagens e palavras) é o operador da censura, que impede ou permite que o sujeito continue a dormir ou acorde, dependendo da intensidade provocada pela apresentação das imagens na tela do sonho. É também o esquecimento que impede que os pensamentos dos sonhos cheguem à consciência. Seu acesso à consciência só é permitido quando são respeitadas as leis vigentes nesse sistema.

O texto de Maria Thereza Waisberg demonstra, de forma peculiar, a originalidade da pesquisa inaugurada por Freud. Seu pensamento instiga a refl etir sobre problemas não resolvidos na pesquisa atual sobre os processos que promovem o esquecimento, levando ao apagamento da memória. Ora, se a memória tem a função de recordar – entre outras –, a autora se dá conta da necessidade de examinar, com Freud, quais seriam os mecanismos que a fariam operar em sentido contrário. Por ser um fenômeno universal, a pesquisa sobre o sonho é, por excelência, caminho privilegiado para o conhecimento do funcionamento psíquico humano. A autora ressalta, assim, os efeitos a serem buscados para uma pesquisa que vá além do interesse sobre aspectos psicopatológicos cotidianos do sistema percepção-memória.
Waisberg indaga:

Mas é então cabível ao trabalho interpretativo, em estrito sentido, estender e esgotar o campo científi co e, com o saber da associação livre, poder se chegar ao que Freud denomina seu limite, como um “umbigo”? Ou, ainda, não seria esta a pretensão do trabalho interpretativo: esgotar o campo científi co e, com o saber da associação livre, se chegar à “castração”? (p. 89).

É a transferência que marcará o terreno em que se dá a problemática de um tratamento psicanalítico – suas modalidades, sua interpretação e sua resolução caracterizam o processo, sua função estando classifi cada por Freud entre os principais obstáculos que se opõem à rememoração do recalcado. A transferência põe-se em jogo no momento em que o recalcado ameaça revelar- se – a transferência é, reconhece Freud, em relação à rememoração verbalizada, resistência de transferência, constituindo maneira privilegiada de apreender os elementos do confl ito infantil, terreno em que se representam, em sua irrecusável atualidade, a existência e a permanência dos desejos e fantasias inconscientes. O fragmento esquecido será revivido, e não eliminado. “[…] ainda que apareça como texto, o sonho é um texto esburacado” (p.160). Se há furos no texto, são eles que permitem, pelo viés do analista, enxergar a verdade de uma realidade psíquica.

A autora demonstra que Freud formula, então, uma lógica do esquecimento: o que for mais rapidamente esquecido deixa entrever mais nitidamente o efeito da resistência. Quanto mais dúvidas, mais há certeza subjacente.

Ao observar como se estruturam os sonhos, Freud se dá conta de que existem contradições, paradoxos e opacidades entre a teoria e a experiência clínica. Não excluídas do seu campo de refl exão, salienta a autora, são essas contradições e opacidades que lhe permitem revelar, de forma original, onde se apóia o método analítico, e também seu progresso.

Retomando rigorosamente o pensamento de Freud, Maria Th ereza Waisberg mostra que a interpretação na transferência é a repetição de uma demanda dirigida do lugar do Outro – é o retorno de uma demanda passada, que, não tendo sido nomeada, retorna pelas formações do inconsciente – e o sonho é o protótipo desse movimento.

Na regra da associação livre – dizer tudo livremente, sem censura – objetiva-se resgatar o sentido do que não pode ser dito e está no lugar do esquecimento. “[…] nada do que foi esquecido, distorcido ou escolhido é inocente ou arbitrário. Todo o processo onírico está atrelado ao desejo inconsciente e às formas possíveis de sua emergência” (p.131). Freud assinala a questão dos erros: várias interpretações possíveis, as resistências, o esquecimento, as falhas e incoerências no relato do sonho.

Como resume a autora:
O sonho entendido como texto a ser decifrado, ou interpretado, acolhe com igualdade de importância tudo aquilo que for considerado erro ou retifi cação. Tem-se como pressuposição que qualquer distorção absurda ou ilógica na narrativa não é aleatória, nem obedece a um princípio de causalidade único ou simples. Com a noção de sobredeterminação, o todo determina as partes, bem como a estrutura determina os elementos. (p.134).

Freud propôs uma teoria que torna o sonho “objeto de conhecimento construído pelo pensamento. Então, o que se interpreta não são as imagens oníricas, mas estas imagens quando transformadas em texto” (p.134). “Em outros termos, a interpretação é operação da representação, que possibilita ao sujeito, sob as condições da realidade psíquica, nomear seu desejo a posteriori, em movimento contínuo” (p.135).

Ao finalizar sua obra, a autora reporta-se ao comentário de Lacan sobre a revolução que Freud introduziu nos métodos tradicionais da pesquisa científi ca. Com o capítulo vii de A interpretação de sonhos, a consciência, depositária da Razão Iluminista, é uma ilusão, tanto quanto pode ser um sonho. “O sujeito psicanalítico, sujeito do inconsciente, é aquele referido ao Cogito cartesiano, que tem sua origem histórica no sujeito da ciência”, conclui a autora (p.164). Há um sujeito que pensa, antes que advenha à certeza. O Cogito, revolucionado e subvertido pela psicanálise freudiana, é uma experiência ética – o que implica uma forma de pensar sobre o sentido da própria existência humana: ele não é, em sua base, uma atividade diferente do fenômeno onírico.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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