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Resumo
Resenha de Ana Cecília Carvalho, A poética do suicídio em Sylvia Plath, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003, 307 p.


Autor(es)
Eliane Accioly Fonseca
é psicanalista e poeta. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, autora dos livros A palavra in-sensata, poesia e psicanálise (Escuta, 1993), Corpo-de-sonho arte e psicanálise (Annablume, 1996), entre outros.

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 LEITURA

Entre a literatura e a psicanálise: uma poética da dor

Eliane Accioly Fonseca

A psicanálise sempre se reconheceu próxima ao sonho, ao mito, às religiões e às artes em geral. E à literatura em especial. Tanto uma como a outra têm na linguagem, na língua, na palavra, na voz, na escrita, na fala e na letra o campo de trabalho e a matéria-prima.

Sylvia Plath, poeta norte-americana, viveu em um período histórico, cultural e social entre as décadas de 1930 e 1960. Nessa época, Hiroshima inevitavelmente a atravessou. Outro acontecimento de comoção internacional, ocorrido nos Estados Unidos, foi a morte do casal Rosenberg.

A poeta deu cabo de sua vida em 1963, aos 30 anos. Dois fi lhos pequenos, vivia um momento efervescente de sua produção, quando sua identidade como poeta viria a se solidifi car justamente com o que escreveu ao fi nal de sua vida. Recém-separada de Ted Hughes, poeta inglês, com quem se casara anos antes, saúde frágil, resfriados e febres freqüentes, insônia, sem ninguém de sua confi ança com quem compartilhar os cuidados com as crianças e a casa.

Ganhou inesperada e inesgotável notoriedade após a morte precoce e trágica. A fama póstuma, segundo Ana Cecília, não é comum nos meios literários. No caso de Plath, o que ocorre é que, além das conjunturas de sua vida e morte, seu projeto literário era bastante relevante.

Sylvia Plath é apresentada no livro não apenas como poeta, mas como pessoa. Em nosso tempo fragmentado, que nos fragmenta, preocupamo- nos com o desamparo primário do ser humano e procuramos, em nossas clínicas, recursos para lidar com as ansiedades impensáveis e indizíveis de nossos pacientes. Nos limites da linguagem, deparamos com o não representável.

Este é um dos paradoxos apontados por Ana Cecília na singularidade de Sylvia Plath. Sua proposta não foi diagnosticar Plath como melancólica ou suicida e, em nenhum momento, a reduz a um historial psicopatológico. Procura fi car próxima “do que Frieda Hughes apropriadamente sugere a todo aquele que se debruça sobre a obra de sua mãe: embora a escrita e a morte tenham feito de Sylvia Plath um ícone, ela só pode ser defi nida pelas palavras que deixou” (p. 18).

E diria eu, do que a poeta compartilhou para além das palavras e representações, não apenas no real de sua morte, mas, no silêncio das entrelinhas de seus diários, cartas, poemas, outros, onde deixou rastros de sua luta “para sair da letargia que a horrorizava” (p. 59). No diário, confessa que sua criação literária viria da transformação (lógica) do que viveu na infância, e que talvez, antes de dar uma forma às experiências, “devesse mergulhar na não existência, no medo mais absoluto” (p. 59). No que ainda não possui forma. O informe.

Não há o ser humano universal. Sabemos, entretanto, que não é simples para o psicanalista enxergar, reconhecer, perceber, receber a singularidade do outro, traço primordial de cada humano. Penso que, muitas vezes, não conseguimos alcançá-la no conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas da metapsicologia. Na clínica, entretanto, embora precariamente, almejamos maior sucesso.

Na leitura de A poética do suicídio em Sylvia Plath, percebe-se que, para alcançar a singularidade da poeta, de sua pessoa, dos vários aspectos de sua obra, vida e morte, Ana Cecília caminhou por um fi o estrito, que ameaçava romper a todo instante. Em estado de risco e sem garantias, embora as referências e o propósito que a orientaram sejam defi nidos passo a passo. O processo não se deu ao acaso. Como está no resumo, “[…] O que articula psicanálise e literatura neste trabalho é a finalidade da escrita” (p. 19). Especialmente num caso como o de Sylvia Plath.

Um dos recursos usados por Ana Cecília foi o dialogismo com teorias, e com depoimentos de poetas, escritores, inclusive os de Sylvia Plath. Traça dois eixos estruturantes: o de um discurso da melancolia, e o outro, “os fi os autobiográfi cos e textuais de uma obra onde o fi ccional muitas vezes se faz passar pela realidade mais factual” (p. 18). O projeto poético de Sylvia Plath alimenta- se com suas cartas e diários. Sua autobiografi a se inscreve no coração do fi ccional.

Outro eixo estruturante para Ana Cecília é o da tradução, que se desdobra em níveis diferenciados, como veremos. Traduzir/transcriar/ múltiplas-inscrições são, nesse livro, expressões que se correspondem, revelam e apontam para diferentes camadas. Não apenas as das múltiplas inscrições exaustivamente criadas e reinscritas pela poeta, na busca de transformação, metabolização da dor psíquica, em sua produção – cartas, diários, poemas, contos, romances, peças teatrais.

A tradução encontra-se, também, nos efeitos que a obra de Sylvia Plath produz no leitor. Vários de seus leitores comentaram acerca desses efeitos e Ana Cecília diz que os mesmos são conhecidos de longa data pelos estudiosos da obra da poeta.

A psicanalista conta que em vários momentos o fantasma da poeta ameaçou fazer sombra ao projeto poético. O curioso é que no livro de Ana Cecília o fantasma de Sylvia Plath continua provocando estranhamentos no leitor, numa peculiar repercussão dos efeitos provocados, nela, durante a pesquisa. Um transbordamento da obra de Sylvia Plath no território da pesquisa, no qual efeitos estéticos ressoam?

Ana Cecília faz uma leitura desses efeitos estéticos pelo viés de teorias da literatura, e através da ótica da escola de psicanálise francesa.

Vou compreender aqui esses efeitos, dentro do que Freud, na Metapsicologia, chamou Das Unheimlich, o estranho-íntimo (1919, Madrid, Biblioteca Nueva, 1973).

Para Freud, o estranhamento é um fenômeno, uma vivência, uma forma de percepção e consciência – a passagem da familiaridade para a intimidade. Ou seja, o estranhamento para Freud é tanto vivência emocional e estética, como tradução. A familiaridade acachapa, apaga os contornos das coisas e objetos. A intimidade realça o mundo, as situações, o si mesmo e o outro, seus relevos e contornos. O estranhar como forma de tradução tornou-se o procedimento estético que me orientou na leitura crítica para a composição desta resenha.

Esse recorte tornou-se não apenas possível, mas necessário, por ter experimentado estranhamentos na leitura do livro de Ana Cecília. Por exemplo, a sensação de ser empurrada para olhar por um buraco de fechadura. A obra da poeta me atraía em um segundo plano, mais confortável, em relação à curiosidade pela autobiografi a, diários, cartas. Psicanálise e literatura, campos estetizantes. O estranhamento, fenômeno da vida, o qual pode ser usado como ferramenta, tanto no trabalho teórico, como no consultório. Penso que os efeitos estéticos da obra de Sylvia Plath em Ana Cecília adensaram o trabalho de sua pesquisa e aguçaram sua lógica crítica.

Já na “Introdução”, Ana Cecília nos fala de tradução, quando aponta a conjunção entre a interpretação psicanalítica e a escrita literária. Ambas manifestando-se na linguagem “aferrando- se ao seu aspecto essencial” […], que é o de não ser unívocas, isto é, “não dizer exatamente tudo”. Para Ana Cecília, o eixo da tradução em seu projeto de doutorado foi muito além do fato de ter escolhido uma poeta de língua inglesa:

As dificuldades que um leitor de língua portuguesa encontra ao ler a poesia de Sylvia Plath não são menores do que as encontradas por um leitor de língua inglesa. O aspecto estrangeiro de sua poesia foi aqui considerado tendo-se em vista que uma questão crucial era ligar o estilo singular da poeta a uma busca nostálgica por uma terceira língua, que assoma à língua ofi cial adotada por seus pais (p. 21).

O pai de Sylvia era alemão. Sua mãe, filha de alemães, aprendeu a falar o inglês após os seis anos. Havia para a poeta ao mesmo tempo uma urgência e uma impossibilidade insuperável em aprender a língua de seus antepassados. Ana Cecília chama a poeta de estrangeira.

A terceira língua não seria, entretanto, apenas a original dos antepassados. (E não apenas no caso de Sylvia Plath, mas para qualquer um de nós). Esta língua nostálgica também não seria somente a do inconsciente, mas um desdobramento dos primórdios da vida, em uma língua materna e outra paterna. A primeira, o lugar nostálgico onde tudo pode ser dito, mas igualmente, vir a ser perdido. Em contraposição, a língua paterna traz limites e regras. A língua materna estaria na confl uência com o corpo da mãe. E no risco da fenda que se abre onde e quando este corpo falta. Na língua materna, no umbigo da linguagem, o escritor corre o risco de encontrar a morte, o que não signifi ca que ele deva morrer.

As dimensões de dizer tudo, esbarrar em limites, empurrá-los até a borda, extravasálos, com o risco de romper as membranas do próprio corpo, encontram-se no trabalho de Sylvia Plath, linguagem poética que possui movimentos próprios. Ana Cecília considera o corpo como limite extremo, a pele que o recobre, e que se instaura por meio de inscrições simbólicas. O real perigo estaria em extravasar o próprio limite (simbólico e real) do corpo: “indício da ‘hemorragia interna’ de que nos fala Freud ao descrever o discurso da melancolia?” (p. 129).

Cita a autora:
segundo Blanchot, “o escritor é aquele que ‘escreve para morrer’, e que recebe o seu poder de escrever de uma relação antecipada com a morte” […] – embora o movimento que na obra é aproximação, espaço e uso da morte, […] não constitui, de modo algum, o mesmo movimento que conduziria o escritor à possibilidade de morrer (p. 231).

Sylvia Plath, além de poeta, deu aulas de literatura, logo abandonadas, pois a radicalidade com que vivia seu projeto poético/literário exigiu “devotar-se exclusivamente à escrita, apesar das difi culdades materiais e das hesitações de ordem emocional que, segundo acreditava, a impediam de criar” (p. 29). Das atividades acadêmicas deixou, porém, uma dissertação de mestrado, dedicada à problemática do duplo em Dostoiévski. Em diversos momentos do livro, Ana Cecília desdobra a duplicidade encontrada na poética plathiana – nomes de personagens que se sobrepõem, pseudônimos, o desmentir das cartas nos diários, a diferença entre o tom das cartas à mãe (cheias de idealizações e superlativos) e as enviadas ao irmão (onde disfarça, em humor, as experiências sofridas e difíceis), entre outros.

Em seus diários, Plath se preocupava com o que seria a escrita em sua vida. Sua poética passou pela fase da impessoalidade, infl uenciada por teorias do momento histórico que viveu. Diz Ana Cecília: “Mas, ao declarar em Context que os poetas que mais admirava eram aqueles ‘possuídos por seus poemas do mesmo modo que pelo ritmo da respiração’, deixou clara não apenas sua divergência do New Cristicism, como também ressaltou aquilo que, no texto, atesta uma presença concreta; a pessoalidade do escritor.

Será, sobretudo, na poesia que Ana Cecília encontrará as marcas da indissociação entre a experiência interna e a escrita. “Mas é preciso esclarecer que essa indissociação não deve ser tomada no sentido que lhe foi dado por aqueles que, em nome da psicanálise, serviram-se de seus textos como se fossem testes projetivos para compor um diagnóstico de sua personalidade […]” (p. 169).

O que a corporeidade significa na materialidade da escrita, e em especial na de Sylvia Plath, foi um aspectos abordados por Ana Cecília, em algumas meditações. Uma delas, ao se voltar para a voz humana. Sylvia almejava escrever poemas que pudessem ser lidos em voz alta. Enquanto viveu, leu seus últimos poemas para mais de uma pessoa. E seus ouvintes viveram efeitos de estranhamento: a voz da poeta podia ser estridente na leitura de um poema, raivosa na leitura de outro. A ressonância dessa voz, entretanto, chocava, e podia tornar os poemas incompreensíveis a uma primeira escuta.

As noções barthesianas desenvolvidas em O grão da voz […] mostrarão o lugar do corpo na escritura. Estabelecendo a diferença entre fala e escritura, Barthes introduz o termo “escriptação” ou transcrição, para mostrar que na escritura não é a fala, não sendo nem o escrito nem “transcrição”: na escritura, o que está demasiado presente na fala e demasiado ausente na transcrição é o corpo. É ele que retorna indiretamente, na escritura, pela via da voz […] A voz aparece não para comunicar, mas para dar testemunho de resíduos do corpo na escritura (p. 220).

Para Paul Zunthor, autor com quem Ana Cecília trabalhou em seu projeto (na bibliografi a), a voz humana não pode ser confundida com a palavra nem com a linguagem, porém não pode ser dissociada dessas. A voz não é palavra nem é linguagem, mas atravessa uma e outra. A voz não é estrutura, é imanência e expressividade. Emana do corpo de quem fala, tanto na oralidade como na escrita. A voz é o que confere materialidade à linguagem.

“[…] Sylvia Plath confessou que os poemas do livro Th e colossus a aborreciam, porque não podiam ser lidos em voz alta. Para ela, o poeta teria cumprido sua missão se seus poemas pudessem ser declamados, e não apenas lidos em silêncio”. Em seu diário é encontrado que as palavras deveriam soar, cantar, para ter sentido. “[…] Se o esforço literário de Sylvia Plath almejava alcançar o irrepresentável, é importante pensar que esse intento coincide com o retorno aos limites do corpo, como fi ca claro em sua preocupação com a leitura da palavra em voz alta” (p. 219).

Mais adiante, Ana Cecília dirá que, afi nal, o sopro de ar que a fazia viver podia levá-la à morte: Sylvia aspirou gás mortífero.

Freud se espantou, após a formulação metapsicológica da sublimação, que a angústia e o sofrimento psíquico de escritores não fossem mitigados pela escrita. E no seio da sublimação se deparou com a pulsão de morte. Resgate que Ana Cecília faz. Há bálsamo e toxidez na escrita, remédio e veneno. O escritor não escapa de morrer, pelo contrário, corre riscos.

Poética é uma expressão muito usada no campo da teoria literária. Um dos usos está em enfatizar o trabalho envolvido na escrita, o texto, e não apenas o gênero literário. Ou seja, o texto é uma produção singular, enquanto a questão do gênero é mais generalizável. As poéticas usadas por Ana Cecília, como poética da tradução, poética autobiográfi ca, poética da melancolia e, fi nalmente, poética do suicídio – termo cunhado pela autora – descrevem os vários níveis do trabalho de transformação do sofrimento psíquico de que se nutria a escrita de Sylvia Plath.

Esses termos prestaram-se como verdadeiros operadores ao exame metapsicológico da sublimação, à medida que destacavam os limites desse processo, ou seja, seu lado funcional – no qual a criação literária cumpria seu papel organizador, senão terapêutico, e seu lado disfuncional – a partir do qual a escrita era como que dominada por uma espécie de toxidez, revelando a participação disfuncional das pulsões de morte.

Ana Cecília Carvalho traduziu 83 poemas de Sylvia Plath, que limitações impostas pelos atuais controladores do espólio proibiram a publicação em seu livro. Este episódio traz à tona a existência de vozes proibidas de serem ditas, une as vozes de Sylvia Plath, e a de Ana Cecília Carvalho.

A autora nos informa que a mãe de Plath censurou suas próprias cartas assim como as da fi lha, na ocasião de sua publicação. O mesmo fez Ted Hughes, ao alterar a ordem que a mulher, que acabaria por se perpetuar em sua vida, havia estabelecido, suprimindo parte dos textos. Textos inteiros foram destruídos, ou desapareceram. Tragédias humanas.

A poeta, como dito acima, “sabia melhor do que ninguém que o texto literário é a fantástica ‘cidade onde os homens são remendados’ […] e nele a poeta sempre ‘renascerá tão boa quanto nova’” (p. 23).

A apresentação de Sylvia Plath nos fragmentos de sua complexidade e singularidade, a intensidade de sua dor, a prática literária que perpetuou a poeta no legado de suas inscrições. As funções da escrita: cura e toxidez.

Se Ana Cecília correu risco de generalizar, driblou-o com o dialogismo entre a psicanálise, a teoria da literatura e depoimentos de escritores. Tentação à qual sobreviveu foi a de não tratar os textos de Sylvia Plath como testes projetivos de seu inconsciente. A poética do suicídio em Sylvia Plath é uma poética da dor na obra, vida e morte de Plath, embora traga a dimensão de que cada ser humano será sempre pleno e misterioso, inacabado e singular em sua dor.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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