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Resumo
Resenha de Maria Laurinda Ribeiro de Souza, Violência, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005, Coleção Clínica Psicanalítica.


Autor(es)
Maria Cristina G. Vicentin
é professora doutora do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUCSP, no qual coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas “Violências: sujeito e política”.


Notas

1 Título do fi lme de Danis Tanoniv em que um soldado bósnio e outro sérvio fi cam presos numa trincheira localizada entre as forças dos exércitos dos dois países.

2 G. Agamben, Estado de exceção, São Paulo, Boitempo, 2004.

3 Contribuições de historiadores, cientistas sociais, psicólogos, fi lósofos são trazidas pela autora para sinalizar a química explosiva de nosso tempo: o processo de globalização e sua produção da desigualdade, marginalidade e tanatopolítica; a sobrevalorização do mercado de consumo; a humilhação social e as formas perversas de governabilidade.

4 Termo utilizado por Freud em Totem e tabu e preferencialmente adotado pela autora para referir-se à “soberana crueldade” (J. Derrida, Estados gerais da psicanálise, 2000) como uma das dimensões da pulsão de morte.

5 De fato, o excesso de tematização sobre a violência teve o efeito de construir um determinado imaginário sobre ela, que passou a informar e a produzir atitudes sociais a ela referenciadas, ou seja, a violência também aparece como linguagem, como ato de comunicação. Daí a importância de uma política da narratividade. A guerra pela produção de sentidos, como sempre insistira Foucault (1988), nos coloca na temática da “produção da verdade” como um ponto nevrálgico das operações de poder.

6 C. Calligaris, Terra de ninguém, São Paulo, Publifolha, 2004.

7 J. Derrida, Da hospitalidade, São Paulo, Escuta, 2003.

8 Wieviorka (1997) aponta para a necessidade de pensar um novo paradigma da violência, dadas as profundas transformações no mundo contemporâneo e a centralidade que a violência aí adquire. Sua tese é de que, tanto como realidade histórica quanto como representação coletiva e objeto de análise e refl exão para as ciências sociais, a violência contemporânea parece modelar um novo paradigma: ela apresenta- se ao mesmo tempo globalizada e localizada, mundializada e fragmentada; ela vem sendo atravessada também pelo crescimento do individualismo moderno, estando carregada de signifi cações mais culturais e identitárias que sociais; ela funciona por condutas que, mais além da expressão de uma crise ou de um confl ito, parecem “autonomizar-se”. (“O novo paradigma da violência”, Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, São Paulo, 9 (1), p. 5-41).

9 Singularidade da experiência latino-americana, que se avizinha das outras experiências do estado de exceção que a autora traz para o texto (Guantánamo e Abhu-Graib no Iraque).


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 LEITURA

Uma micropolítica das violências contemporâneas

Maria Cristina G. Vicentin

A empreitada realizada pela autora – pensar as modulações contemporâneas da violência, a partir das ferramentas psicanalíticas – se ancora e se efetiva numa atitude ético-clínico-política: convocada pela “vida, (pel)o espanto diante de experiências assistidas ou relatadas e (pel)a escuta na clínica de várias situações extremamente impactantes acerca da violência” (p. 25), a autora busca habitar os paradoxos dessas modulações e, numa perspectiva transdisciplinar de análise, encontrar as vias mais potentes para pensar-agir nesses tempos de “terra de ninguém” [1]. Entricheirados numa terra de ninguém, num estado de exceção [2] é a imagem-força que a autora utiliza para expressar as experiências contemporâneas da violência: a constrição do espaço público, a privatização da vida, a sociabilidade do medo e sua clausura paranóica, a degradação dos laços sociais e a constituição de uma sociabilidade violenta [3].

O ataque homicida a moradores de rua em São Paulo (ocorrido em agosto de 2004) é um dos exemplos contundentes e paradigmáticos trazidos, já na abertura do livro, para evidenciar a atrofi a do espaço público, o projeto eugênico para os “dejetos” sociais, mas também o “medo daquilo que o ‘outro’, superfi cialmente diferente, pode revelar de igual” (p. 20), alinhando-se à hipótese levantada por C. Calligaris no texto “Quem tem medo dos moradores de rua” (Folha de S. Paulo, 26/08/2004) sobre o medo do duplo. O ataque seria a forma de apagar as marcas do próprio medo da indigência e da ausência de projetos.

Em tempos de prevalência do narcisismo, do individualismo e da alienação (analisados com consistência no capítulo 3, com base em diversos pensadores do contemporâneo, como A. Giddens, Z. Bauman, p. Bruckner, F. Lyotard, G. Lipovetsky); em tempos em que a existência do outro perde seu valor simbólico e torna-se cada vez mais uma ameaça (p. 20), a superação da posição narcísica e dos efeitos nefastos do individualismo é condição fundamental para a constituição dos laços sociais e para a recriação do poder de ação e de discurso dos homens comuns (p. 81). Nesses tempos, as análises macropolíticas da violência precisam mais do que nunca abrir espaço para a perspectiva micropolítica, em que a dimensão das crenças, dos desejos, dos processos de subjetivação têm lugar. Pois, para ativar os laços sociais, não basta trabalhar apenas com “acordos de opinião” e/ou consensos (isto é, com o campo comunicacional) ou considerar apenas o campo das representações e da consciência (sejam elas coletivas ou individuais). Em se tratando da temática da violência, é necessário descer até os espaços infi nitesimais e micropolíticos da sociedade, pois o melhor dos socius é o que está dotado de forças para resistir a seus próprios autoritarismos e intolerâncias.

A autora desdobra ao longo do texto a atualidade e a potência da perspectiva (psico)analítica na análise “micropolítica” das atuais modulações da violência e anuncia sua aposta: a experiência analítica, ao colocar em cena o exercício da palavra dirigida a um outro, torna-se um dos microespaços privilegiados nos quais o circuito da violência pode ser interrompido. […] Seu apelo (da psicanálise) ao reconhecimento da alteridade, ao valor do desejo e da lei simbólica e sua capacidade de análise das situações de sofrimento decorrentes do embate entre o sujeito e a própria civilização podem nos ajudar a interromper os efeitos nefastos dessa “moção maligna” [4] entre os homens e a processar outras respostas possíveis (p. 23).

Se a perspectiva psicanalítica é claramente acionada em sua potência de pensar o contemporâneo, a autora não o fará sem colocar algumas regras de prudência, sem anunciar os riscos em questão e sem experimentar as atualizações e variações necessárias dos conceitos psicanalíticos para essa tarefa. Vejamos. A empreitada é de risco: se a discursividade sobre a violência constrói a própria violência – como se pode rapidamente detectar na espetacularização da violência empreendida pela mídia – como fazêla desde a mirada psicanalítica, que inscreve a violência como constitutiva da cultura e da subjetividade, “sem que essa perspectiva seja utilizada para banalizar, justifi car atos violentos ou ainda relativizar as referências entre o legítimo e o ilegítimo?” (p. 57), ou ainda, acrescento, para adensar os discursos da “irracionalidade” e do sem-sentido da violência? De fato, em tempos de “medo social”, de risco de uma “sideração pela violência”, a construção de respostas cada vez mais “penais”, repressivas ou simplifi cadoras – como temos visto com a criminalização da pobreza, o crescimento do aparato penal e a discussão em torno da redução da idade penal – têm sido hegemônicas. Como evitar o risco de dar munição para essa discursividade e manter a potência de problematização colocada pela psicanálise?

Na via das atualizações, ela nos alerta ainda que é necessário, para pensar a violência hoje, inverter o caminho original de Freud que desvendou nas fantasias o cenário do temido: “os tempos de hoje são crus. A escuta nesses tempos de horror tem de se haver com o ódio, com a crueldade derramada, sem limites, sem fronteiras. […] Há que reconhecer o real do traumático, as feridas na carne, o pânico do corpo…” (p. 25).

Mas é preciso também prudência no trabalho com a psicanálise. Alinhando-se a Derrida (Estados da alma da psicanálise, 2001), a autora entende que à psicanálise não cabe o julgamento do bem e do mal e nenhuma decisão acerca das punições a serem tomadas frente a atos dito violentos. Para tanto, o saber psicanalítico tem a responsabilidade de considerar o que acontece fora do seu campo. “Para passar à decisão é preciso um salto para fora do saber psicanalítico enquanto tal”, citando Derrida (p. 58). Mas, de outro lado, a autora entende que “as decisões a serem tomadas pelo direito, pela ética, pela política, têm, também, a responsabilidade de levar em conta o saber psicanalítico” (p. 58) e ela não se furta a provocar as relações e intercessões possíveis por meio desse livro: seja para tensionar o campo de decisões, seja para produzir nele novas infl exões ou desvios, seja ainda para fazer ressoar uma direção “comum” de ação.

É na perspectiva transdisciplinar, nas relações da psicanálise com o fora do saber psicanalítico, que a autora encontrará armas potentes: trabalhando a questão da violência como produção histórica e elegendo a via da política e da construção do espaço público como aquelas estratégicas para desconstruir e prevenir a violência. Para tanto, os parceiros fundamentais serão especialmente H. Arendt, em seu esforço conceitual de distinguir força, poder e violência, e J. Derrida, na tematização da alteridade, da tarefa inesgotável do encontro com a diferença e especialmente no paradoxo do hostis (que tanto pode ser hostil como hóspede).

Mas outra arma, igualmente valiosa, de que se valerá a autora, é a de uma “política da escrita”. Maria Laurinda Ribeiro de Souza nos traz um texto denso conceitualmente, mas também poético, valendo-se de imagens, cenas, fragmentos da clínica que carregam uma expressividade totalmente inversa à da espetacularização da violência, produzindo afetações e infl exões discursivas diferentes das hegemônicas e provocando no leitor outros regimes de percepção, de visibilidade e outras atitudes no tocante à temática da violência. Ou seja, não importa apenas o que se diz, mas como se diz [5]. A autora percebe que é crucial, política e metodologicamente, construir narratividades capazes de variar e de fazer diferir as “expressões” da violência e a produção de sentidos em torno dela. Mais do que apresentar os conceitos de hospitalidade e de alteridade, Maria Laurinda parece seguir à risca essa aposta: produz um texto “hospitaleiro”, aberto à inclusão dos saberes estrangeiros à psicanálise, mas principalmente às demandas da realidade que pedem atualizações para o saber psicanalítico. É por isso que o mote terra de ninguém, na sua versão inicial de “estado de exceção”, de “descumprimento do contrato social”, é levado ao final do livro à sua variação: como lugar-fronteira, do “entre”, como um “bom lugar para pensar sem dever nada a ninguém” [6], lugar de “hospitalidade pura” [7]. Fazer da “terra de ninguém” uma “terra para qualquer um…” é o trabalho a que o texto nos convida pelas mãos das ferramentas psicanalíticas na sua intercessão com a política.

Acompanhemos com mais detalhes os eixos centrais do trabalho conceitual empreendido. É em torno da via da política e de construção do espaço público que a autora desenvolverá o argumento principal do livro: para reverter a violência, precisamos de atos positivos que apóiem e realizem uma complexa prática de consolidação de vínculos sócio-comunitários, de tecidos conjuntivos que desarmem os fantasmas da dissolução e da impotência coletiva e que criem novos valores práticos capazes de revolucionar a sociabilidade e escapar do individualismo. Identifi cam-se, ainda, intercessões importantes entre H. Arendt e a psicanálise no tocante à distinção entre poder e violência: se para Arendt é a desintegração do poder que possibilita o surgimento da violência, para a psicanálise, onde há uma lei simbólica degradada, certamente se farão sentir os efeitos mortíferos da “moção maligna”.

A dualidade colocada na pulsão de morte, a polaridade eu-outro, amor-ódio, que estarão sempre presentes na vida psíquica, tornam tarefa contínua sua metabolização, do mesmo modo que é na perspectiva do trabalho permanente da palavra, do diálogo e da construção política para a gestão contínua do confl ito que se constroem o espaço público e o direito a ter direitos: a “terra de qualquer um”.

Se no enfrentamento da violência são necessárias as narrativas e a palavra, também é necessário arriscar atos, diz a autora (p. 152). É na idéia de ação (para H. Arendt, uma das mais decisivas experiências humanas, sendo capaz de iniciar processos novos) e de ato (em S. Zizek) que novas aproximações ganham relevância.

Se a transformação da realidade – restaurando o valor do espaço público, em atos e palavras – é o caminho possível, a autora também se interroga se as expressões contemporâneos da violência deixam ainda essa esperança.

Afinal, com a fragmentação ou o declínio dos espaços políticos, as expressões da violência indicam, de certa forma, perda, déficit ou ausência de confl ito (como nos sugere Wieviorka) [8]. Ou seja, não remetendo à imagem de um confl ito, ou mesmo de crise, a violência pode parecer, em casos extremos, um fi m em si mesma, puramente destruidora ou auto-destruidora, podendo tornar-se negação da alteridade e expressão desumanizada do ódio, da destruição do Outro. Nesta circunstância histórica, a violência vai perdendo seu caráter “analisador”, sua função crítica e se torna um novo padrão de relação no cotidiano da vida das pessoas, particularmente das novas gerações socializadas neste novo padrão de convivência.

Se, de um lado, é importante opor a violência ao poder (tal como Arendt e também Foucault formulam) naquilo que ela é ameaça à convivência pública, é fundamental não encarar a violência como uma “situação de exceção”, de “anomia” ou de “caos”, muito menos como resquício de um “barbarismo” em vias de extinção. Cabe lembrar também que, em seus escritos sobre violência, poder e democracia, a filósofa Hannah Arendt reconheceu o papel e o alcance da desobediência civil na construção da vida democrática, a necessária dimensão da ira e da resistência: ver-se desobrigado a cumprir a lei quando a reciprocidade inerente a toda promessa for rompida é ato eticamente válido.

De fato, depois de tantas aproximações entre a fi losofi a política e a psicanálise, que formulam que a saída é o poder, a via da política, fi ca a questão: o que é agir politicamente nesse tempo e nessa realidade de violência institucionalizada? Realidade na qual tantos seres humanos são integralmente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, a ponto de não ser delito qualquer ato cometido contra eles (como o estado de exceção em Agamben).

Não por acaso uma das cenas fi nais do livro invocará a experiência da ditadura latino-americana em seu período de terror (na fi gura da tortura, do seqüestro e do genocídio) e a violência de estado: sinistra institucionalização da violência para fazer frente ao processo de democratização que estava em curso. Institucionalização da violência que persiste hoje, a despeito da redemocratização, na criminalização da pobreza, na construção do medo difuso, de um estado penal e de uma sociabilidade nada hospitaleira [9]. O medo como eixo dos discursos atuais da segurança indicam, para muitos estudiosos, a passagem de um paradigma da segurança para o da insegurança como parte da gestão da sociedade contemporânea: jogar com a confusão entre os sentimentos de incerteza, falta de garantias e insegurança, semeando o medo e a desconfi ança entre as pessoas, é um pretexto para tornar mais repressivo o controle social punitivo. Neste contexto, a reocupação do espaço público como estratégia política, tal como indicado pela autora, é crucial.

Ao possibilitar que um pensamento e uma problematização sobre a violência se exercitem em tempos que favorecem a indiscernibilidade e a construção de um objeto difuso – “a violência generalizada” –, a autora já se alinha aos que trazem contribuições relevantes para essa questão. A problematização constitui novas linhas de demarcação, nos permite re-ativar a função de análise (e conseqüentemente política) que a violência pode ter e nos convoca a exercitar palavras e atos que construam socius.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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