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Autor(es)
Rubens Marcelo Volich
é psicanalista, doutor pela Universidade de Paris VII – Denis Diderot, professor do Curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Psicossomática – De Hipócrates à Psicanálise e de Hipocondria – Impasses da alma, desafios do corpo (Casa do Psicólogo, 2000 e 2002), de Segredos de Mulher: diálogos entre um ginecologista e um psicanalista (em coautoria com Alexandre Faisal, Atheneu, 2010) e co-organizador e autor dos livros da série Psicossoma (Casa do Psicólogo).

Carmen Savorani Molloy
é psicanalista.

Liana Pinto Chaves
é membro efetivo e analista didata da SBPSP

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 DEBATE

Morrer em análise

Rubens Marcelo Volich
Carmen Savorani Molloy
Liana Pinto Chaves

Existem temas que não são usualmente abordados nos escritos psicanalíticos, como a doença e a morte do analista, essa agudização de sua humanidade e corporeidade − ferramentas fundamentais ao exercício desse estranho ofício.

Não foi sem confl ito que esse tema se colocou ao grupo de entrevistas, no contexto deste número da revista Percurso, dedicado ao psicanalista Fabio Herrmann, falecido em 2006.

Fabio Herrmann, cujo câncer foi diagnosticado em estágio bastante avançado, seguiu atendendo seus pacientes mesmo nos momentos mais agudos de seu adoecimento, interrompendo apenas em períodos em que esteve hospitalizado.

Resolvemos nos defrontar com essa questão delicada, incômoda, árida talvez, mas que nos toca tão de perto. Três analistas aceitaram nosso convite, formulado da seguinte maneira:

“Gostaríamos de conhecer suas refl exões sobre o tema do adoecimento e da morte do analista no decorrer de uma análise.”

Em diferentes estilos, eles nos oferecem caminhos por meio dos quais pensar o tema, entre eles: as signifi cações possíveis do morrer em análise, os impasses que a doença imprime na dessubjetivação do analista no exercício de sua função, o vislumbre da possibilidade de transferir a transferência.

Pareceu-nos o início de uma longa conversa, para a qual escolhemos o título proposto por Rubens Volich.



RUBENS MARCELO VOLICH “Sinto que você morreu…”, disseme Martine, após alguns minutos de silêncio. E ela tinha razão.

Acompanhando seus pensamentos ao longo da sessão, fui subitamente tomado pela dor de uma lembrança insuportável. Capturado, realmente deixara de escutar Martine, que, sentindo ter me perdido, apontava-me tê-la abandonado. Resgatado por sua frase, lembrei-me de sua história, de suas difi culdades amorosas, da morte precoce de sua mãe, de sua amargura e de sua agressividade contida, mas freqüentemente manifesta contra aqueles que ela mais amava.

Qualquer um desses caminhos provavelmente poderia tê-la levado a retomar suas associações, sua elaboração, suas próprias lembranças. Porém, era verdadeiro o que sentira. Mais que uma reprodução do passado, era certo que ali, naqueles instantes, no presente, eu efetivamente não pudera investi-la. Morrera.

Insidiosa, marcada por uma dor que não escolhemos, infi ltrou-se entre nós não a fantasia, mas a realidade da perda. Sem dúvida, seria mais seguro persistir pelos clássicos caminhos da transferência: lembrara de sua mãe? desejara sua (minha) morte?…

Poderíamos, talvez, esperar que as interpretações e as elaborações contribuíssem para o lento trabalho de cicatrização de antigas feridas de Martine. Deixaríamos, no entanto, sangrando o corte daquele abandono que acabávamos de experimentar.

Correndo o risco de um movimento delicado, da ruptura possível que ele poderia provocar, disse-lhe que, efetivamente, não pudera estar com ela naqueles momentos. Que fora ela que me trouxera de volta de um lugar que eu não pudera evitar. Entre lágrimas silenciosas, Martine suspirou, aliviada. Não suportaria, disse- me, mais uma mentira em sua vida. Seguimos trabalhando. Por alguns anos…

Na análise, como na vida, quase nunca escolhemos o encontro com a perda. Fantasia e realidade dessa experiência se impõem, mesclando- se às vivências pulsionais mais primitivas, muitas vezes, sem palavras. O frio, o silêncio, a penumbra, a paralisia, a solidão combinam- se para compor o cenário doloroso por onde desfi lam os abandonos, as separações, as mutilações, as doenças, as mortes. Na análise, porém, apresenta-se a possibilidade de, não mais solitários, mas acolhidos por uma pessoa signifi cativa, retomar o contato com essas feridas, esperando que possam cicatrizar. O investimento do analista, pela presença, pela escuta, pela palavra, em alguns momentos – inclusive, pelo gesto – é o que propicia a aproximação dessas dores para a constituição de um outro olhar, de uma outra experiência que permita libertar-se da tendência algumas vezes irrefreável de sua repetição.

Há porém momentos em que, mesmo com o resguardo e a proteção do enquadre analítico, subitamente, o investimento não é mais possível. Pelo encontro insuportável com uma cena desde sempre evitada, pela intensidade da dor mobilizada, pela violência pulsional irrefreada. Recolhidos ao mínimo espaço de nossa própria sobrevivência, por alguns instantes, nos anestesiamos, ensurdecemos, abandonamos, desinvestimos. Morremos. Para o outro, para o mundo.

Assim oscila a análise, para ambos, paciente e analista, entre o investimento e o desinvestimento, entre a vida e a morte. A dor da morte, da perda, é a dor do desinvestimento.

Por que falou Martine a um morto? Por um lado, naturalmente, pela estranha familiaridade de sua sensação, para conjurar a idéia/desejo de que eu realmente tivesse morrido. Por outro, por se perceber como a única que poderia, ali, naquele momento, ao dirigir-me sua fala, seu desejo, seu investimento, me ressuscitar. Mesmo em meio a sua dor, Martine descobriu-se como guardiã da vida.

Ainda que a aliança em torno do desejo de vida seja a condição fundamental para uma análise, é inevitável nesse processo que analista e paciente se deparem freqüentemente com experiências de perda, de abandono, de desinvestimento. Somos constantemente confrontados com dolorosos momentos em que morremos um para o outro. Insuportável condição de não existir para o outro, da qual, muitas vezes, nem mesmo o enquadre ou a técnica podem nos proteger. Condição incontornável, porém, quando tolerada, para a descoberta, mesmo em condições extremas de sofrimento, dos recursos de investimento de cada um.

Há ainda, é verdade, inesperados momentos em que perdas, mortes, separações reais tornam impossível o reencontro, esvaziando gestos e palavras, tornados quase sem sentido. Momentos solitários, em que o resgate da memória, dos encontros, do vivido é quase a única arma de resistência à inefável convocação melancólica, último recurso para o investimento e a promoção da vida.


CARMEN SAVORANI MOLLOY Antes de mais nada, gostaria de agradecer à Revista Percurso por abrir a possibilidade de uma refl exão sobre tema tão delicado e complexo, que faz parte fundamental da nossa clínica cotidiana.

A primeira aproximação que me ocorre é conceitual. Trata-se da diferença entre a função analítica e a pessoa que se oferece como suporte dela.

Desde Freud, as regras de abstinência e neutralidade marcam uma especifi cidade para o exercício da psicanálise, onde o corpo e a subjetividade do analista ocupam uma posição excêntrica em relação à prática da função que ele sustenta. Isso determina algo paradoxal: o analista comprometido com o seu fazer paga com sua pessoa pelo exercício de sua função. Deste ponto de vista, analisar não é um trabalho como outro qualquer. Na medida do possível, aquilo que concerne a sua subjetividade e ao corpo que a carrega não deveriam interferir na escuta e na interpretação. Mas, como não estamos falando de um discurso de mestria, quando isso acontece apelamos ao dispositivo da supervisão, para que o analista possa retornar a sua função de escuta.

Do lado do analisante, é absurdo pensar que ele fale à pessoa do analista. Pelo fato de falar ele faz o analista e o faz à sua medida. Sabemos que isso está relacionado à transferência. Estruturalmente, o lugar do analista depende não somente de que alguém se ofereça a escutar, mas, também, da disposição do analisante de se interrogar acerca de seu sofrimento e de seus enigmas. É porque há uma demanda de seu lado que se institui um analista. Ele terá os traços que se lhe atribuem de acordo com os ideais contidos na demanda inicial − meu analista não se equivoca, não é traído, não é abandonado, não adoece, ou… não morre…

A rigor, não há análise fora da transferência. É por isso que não é possível falar ao analista ou falar do analista, já que o endereço da fala do analisante é sempre alguém − algum traço − da Outra cena, de seu próprio inconsciente. Qual seria o sentido que têm para ele a tristeza do analista, a cara de bravo ou o defi nhar físico? Sejam reais ou imaginários, qual é a suposição que ele faz a respeito disso?

Penso que as referências à pessoa, ao corpo, à situação vital do analista só valem se tomadas dentro do sistema de signifi cações de cada um, do dito e do não dito de cada um.

Não existe o analista dos seus analisantes, existe o analista em cada transferência, aquele que escuta uma singularidade e sustenta uma transferência. Se a clínica freudiana é a clínica do “caso a caso” e o analista é o que cada analisante faz dele, cabe então ao analista, no desempenho de sua função, a responsabilidade ética de tentar saber: (1) como entra essa doença no sistema de signifi cações de seu analisante e (2) se ele suporta o lugar transferencial em que está implicado em cada uma das análises que conduz.

Do lado da pessoa que encarna a função, quando o peso da doença lhe faz presente também a questão de sua própria fi nitude, o preço a pagar por sua dessubjetivação pode ser muito alto para ela. Ou, contrariamente, se a doença o permite, e a proximidade da morte está relativamente simbolizada − já que totalmente é impossível −, o trabalho em posição dessubjetivada lhe ajude a tomar uma certa distância da enfermidade e assim ter uma pausa em sua luta cotidiana.

A questão é do campo da ética do analista. Não existe regra que possa determinar o conhecimento de suas limitações com cada um de seus analisantes.

Então, o problema é de limites… E que limites! Subjetivos, do lado da pessoa; éticos, do lado de sua função.

LIANA PINTO CHAVES A cena analítica já foi muito comparada com o teatro. À medida que vai sendo construída, ela se torna o palco, por excelência, em que o mundo interno do analisando se presentifi ca e se dá a conhecer. Ela partilha com o teatro desse pedaço de chão como algo de sagrado, onde se expressam, como diria nosso Isaias Mehlson, o mítico, o mágico e o religioso. Ela é ao mesmo tempo tão frágil (são duas pessoas falando) e tão poderosa. Quando a transferência se instala com vigor, a análise se torna esse lugar diferente de todos os demais. Pela sua própria natureza, tudo ganha proporções muito diferentes do senso comum, com grande intensidade e profundidade. Aprendese a ouvir melhor e a ver melhor, num processo mútuo (analista olhando e ouvindo o paciente e vice-versa).

O espaço analítico convida à regressão e ao mergulho, dá guarida ao infantil, ao absurdo, ao excesso, ao ridículo. Por isso mesmo, pela concentração, pela assiduidade, pelo olhar e pela escuta especiais, a corda das emoções fi ca muito esticada e sensível. Tudo importa. Sentimentos intensos são mobilizados, dos sonhos mais ardentes aos medos mais inomináveis.

A impermanência e a frustração são características centrais da vida humana. Os pacientes chegam em diferentes graus de negação da inevitabilidade do envelhecimento e da morte. A morte é o impensável, é a indesejada das gentes. O analista é sentido como fonte de alimento, amor, proteção e conhecimento. A idealização do analista, visto como forte, imortal, sábio, adulto, é, como sabemos, uma proteção contra a fragilidade e os medos mais extremos.

Dentre esses, os mais extremos são o medo da morte e o medo da loucura. Numa análise comum (existe alguma?), esses medos vão sendo abordados aos bocadinhos, numa medida suportável. Com sorte, o analisando embarca num processo longo em que seus temores e fantasias mais primitivos ganham acesso à palavra e podem ser conhecidos. Os ritmos da análise constroem um relacionamento que vai aos poucos se consolidando, gerando uma confi ança, um senso de continuidade, e, ao mesmo tempo, um respeito pela realidade e as limitações. Fantasias sobre a saúde, o bem-estar, a sanidade mental do analista são comuns em qualquer análise e, tudo correndo bem, podem ser analisadas como fantasias e projeções de estados mentais do paciente.

Imagine-se, então, quando elas se tornam realidade por meio da doença incurável do analista: aí tudo fi ca demasiado real, rompese o espaço protegido de sonho. O paciente se vê diante de sua pequenez, de sua fragilidade, diante de algo maior, tão defi nitivo; é forçado a abdicar do controle onipotente e se submeter à realidade tão temida. E já não pode mais se abrigar na proteção do analista idealizado.

Tive em minha prática clínica dois casos de pacientes que perderam seus analistas. Um deles me procurou quando a analista adoeceu subitamente e já não pôde mais trabalhar, da noite para o dia. Durante muitos anos dessa longa análise comigo essa situação não pôde ser abordada e permaneceu silenciosa, na sombra. Uma outra paciente continuou em análise com sua analista doente até o fi nal, de forma intermitente, segundo as possibilidades de saúde da analista; fi cava sempre sobressaltada quanto à minha saúde e tendia a interpretar tudo a meu respeito na chave dessa ameaça de morte.

Ficamos sabendo vez por outra de colegas que adoecem e que são analistas até o fi m, como Fabio, cuidando de forma admirável de seus pacientes nessa situação-limite, ajudando-os a fazer a transição para novos analistas.

Em minha primeira análise senti gratidão por meu analista, que era um homem de mais idade, e pude expressar esse reconhecimento por ele não ter morrido durante aquele tempo todo, por ter me dado a oportunidade de me analisar em paz, de brigar em paz, de crescer em paz durante aqueles anos.

Sinto uma imensa saudade de Fabio. A vida analítica, o cenário analítico fi caram muito mais sem graça sem ele. Estão aí seus livros, sua obra, suas idéias. Mas discutir os casos de meus pacientes com ele, assistir a seus seminários, era um grande prazer, ele com sua verve, tão vivo, tão engraçado, tão surpreendente. Não tinham importância os referenciais teóricos diferentes. A conversa era sempre inteligente e iluminadora. Ele naturalmente funcionava por ruptura de campo: vinha sempre de um ângulo imprevisto e abria uma cunha, uma janela, uma outra perspectiva no material em discussão. Ele punha a imaginação clínica da gente para funcionar.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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