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38
O pensamento vivo de Fabio Herrmann
ano XX - junho de 2007
248 páginas
capa: Fabio Herrmann
  
 

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Resumo
Este texto trata do conceito de destino na Teoria dos Campos, de autoria de Fabio Herrmann. Também são levados em consideração os efeitos do destino no processo analítico, as noções de inconsciente e de inconsciente recíproco. O ponto principal do destino, como conceito da Teoria dos Campos, é a noção de “ruptura do campo” e seus efeitos na história do paciente.


Palavras-chave
destino; Teoria dos Campos; análise como apropriação do destino; história do paciente na análise.


Autor(es)
Rubia Mara do Nascimento Zecchin
é psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Psicologia Clínica pela PUCSP. Membro fundador do CETEC (Centro de Estudos da Teoria dos Campos). Professora e coordenadora do Curso de Extensão Universitária da Faculdade São Marcos – “A clínica psicanalítica freudiana e a Teoria dos Campos”.


Notas

1 Anotação de aula expositiva na PUCSP, em 2003.

2 L. Herrmann, em sua tese de doutorado, Andaimes do real: a construção de um pensamento, observa que: “Essa pequena ficção metafísica, defi nida como a projeção ontológica do ato psicanalítico de descoberta que ajuda compreender a clínica, é também uma amostra do estilo irônico praticado por Fabio. Na primeira página do capítulo, ele tranqüiliza o leitor de que não vai inventar uma fantástica teoria metapsicológica, apenas modestamente, uma metafísica, e logo cita Nietzche, um antimetafísico por excelência, dando a entender não só que metapsicologia é uma forma de metafísica, como também que esta última, no seu texto, nada mais é que uma paradoxal projeção ontológica do método, o caminho do pensamento. É um lance que limpa a mesa de discussão para que nela caibam, sem reifi cação, as idéias de real e desejo, válidas para o Homem Psicanalítico e seu mundo – mas não para o mundo concreto, já que, como fi naliza o capítulo, “não se pode garantir […] que o demiurgo que criou este mundo tivesse sido analisado”. Tese defendida em 2005, na Pontifícia Universidade Católica, ainda não publicada, p. 81.

3 L. Herrmann, op. cit., p. 81.

4 Remeto o leitor interessado à leitura da quarta parte do Método da Psicanálise, livro primeiro de Andaimes do real.

5 F. Herrmann, Introdução à Teoria dos Campos, , p. 139.

6 F. Herrmann, op. cit., p. 172.

7 F. Herrmann, op.cit., p. 173.

8 F. Herrmann, op.cit., p. 179.

9 Este conto foi trabalhado por diversos autores, inclusive por Borges.

10 F. Herrmann, Psicanálise da crença, p. 97.

11 F. Herrmann, op. cit., p. 99.

12 F. Herrmann, op. cit., p. 112.



Referências bibliográficas

Herrmann F. (1991). Andaimes do real. Livro primeiro. O método da psicanálise. São Paulo: Brasiliense.

____ (1998). Psicanálise da crença. Porto Alegre: Artes Médicas.

____ (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Herrmann L. (2005). Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Paulo: pucsp. (Tese de doutoramento.)





Abstract
This paper explores the concept of destiny in the Fabio Herrmann’s “Theory of multiple Fields”. The effects of de destiny in the analytic process into consideration are also taken, the notion of the unconscious and the reciprocal unconscious. The main point of the destiny is the notion of “fi eld disruption” and its effects, whenever “destiny” can be transformed into “history” for the patient, object of the cure.


Keywords
destiny; Herrmann’s theory of multiple fi elds; history of the patient.

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 TEXTO

O destino – da psicopatologia à cura

um breve passeio pela Teoria dos Campos


Fate – from psychopathology to healing
A brief stroll in Theory of Fields
Rubia Mara do Nascimento Zecchin


O meu destino só será conhecido quando eu morrer.
Até lá, sou eu que faço, lutando com as coisas que surgem
. [1]
[Fabio Herrmann]


Muitas vezes fui visitada pelo destino. Na clínica, na vida pessoal, na relação com o mundo. Com a proposta da Revista Percurso de fazer uma homenagem póstuma a Fabio Herrmann surgiu o desejo e a possibilidade de escrever algo sobre o assunto, já que, com a perda de Fabio, o destino bateu de novo a minha porta. Mas será mesmo destino nesse caso?

Nesse mesmo registro que enlaça tantos afetos me deparei com a difícil tarefa de recortar o que teoricamente seria necessário para transitar por este conceito – o destino – simples para seus correspondentes, inconsciente recíproco ou excesso do real, no entanto, complexo na clínica e encontrá-lo na obra de Fabio. Está bem espalhado. Explico: a Teoria dos Campos tem a marca herrmanniana, a qual freqüentemente vem com um tom e clima de um trânsito teórico com alinhavo da clínica, da literatura, de forma que, a cada passo, descobre-se, redescobre-se, retoma-se, buscando compreender o homem psicanalítico e seu mundo, mas a trama dos conceitos é complexa e um recorte já é um trabalho.

A morte de Fabio nos tomou, a cada um de forma diferente, a todos que o cercavam, intensamente, como uma experiência emocional do destino. Não é possível ainda sabermos quais caminhos se constituirão a partir desta falta, para cada um, em particular. Por outro lado, seu legado teórico, de alguma forma, nos faz sentir acompanhados, porém, sem certezas, como sempre nos alertou Fabio, numa de suas tantas formas de expressão.

Escolhi o destino, como conceito da Teoria dos Campos, para uma pequena refl exão psicanalítica.

Para melhor localizar o leitor, o conceito de destino na Teoria dos Campos entranha-se com o de real, de inconsciente, desejo, representação, realidade, transferência, mas principalmente com a psicopatologia psicanalítica e a cura. Estes dois últimos nortearão mais pontualmente este trabalho.

Partiremos para um curto passeio a largos passos. Tomemos, para iniciá-lo, a questão fundamental para Fabio que sempre foi resgatar o método da Psicanálise. Por meio da observação do método psicanalítico em ação, esbarrou no problema do originário. Foi necessário lançar mão de um recurso, e o fez pelo fi ccional, “uma pequena fi cção metafísica” [2], ou poderíamos chamar de um “mito de origem”.

O método não permite substancializar o inconsciente nem o homem. Esta pequena nota, carregada de signifi cado, dentre outros fatores mais importantes, sugere a escolha pela fi cção.

Os sistemas teóricos trazem, de modo geral, uma história do bebê, deduzindo uma origem infantil, sendo esta feita a partir das experiências de análise de adultos, mesmo adolescentes e crianças maiores. No entanto, Fabio faz uma crítica quanto a se tratar essas interpretações, isto é, como é pensada a infância, em cada sistema, como sendo o inconsciente do adulto. Sua crítica aponta para um circuito tautológico no qual, ao ouvirmos o adulto, buscaremos a forma apropriada para desencavar aquele inconsciente que demonstra a origem infantil daquele sistema teórico, a qual prova o inconsciente do sistema e assim sucessivamente.

Ao lançar mão do recurso da fi cção metafísica sobre a origem do homem, leva-nos, seguindo viagem, ao conceito de real: por real entendemos o lugar onde há uma fabricação incessante do ser e do sentido. Desta fabricação surge um produto equívoco, ainda que nobre, uma vez que o homem vai compreendendo sua espécie e a cultura. Como isto acontece?

O real dobra-se sobre si mesmo como a dobradura da ponta de uma folha de papel, e essa parte dobrada do real redireciona-se para o resto dele, tomando-o como objeto. Assim surge o real humano, o real interiorizado no sujeito, como uma duplicidade. A folha de papel é o real simplesmente, sua ponta dobrada, o real subjetivado. O real interiorizado no sujeito está delimitado, mas ansiando por uma reintegração – esta parte regrada do real, o sujeito, deseja o real uma vez que o ser do sujeito se produz por um movimento dirigido ao real, ou, como diz Fabio, de apetência constante para o real [3].

Tomemos agora o inconsciente. Um inconsciente não é feito de idéias, mas da lógica que as concebe. Assim pensamos na Teoria dos Campos. Qualquer representação tem um substrato de signifi cações potenciais que se ocultam nas regras que a conceberam. Estas são as regras. Há um par, a representação e a coisa representada. Isso signifi ca, para a Teoria dos Campos, que representação inconsciente é a representação que, a posteriori, conseguimos obter quando as regras inconscientes, que a constituíram, se mostram, numa ruptura de campo, valendo-se do método psicanalítico. O inconsciente, para a Teoria dos Campos, não existe – mas há o inconsciente, ou melhor dizendo, ele passa a ter havido quando se põe à mostra, através da ruptura de campo. O inconsciente é o avesso da consciência, lugar limite da consciência em condição de análise [4]; ainda podemos fi gurar o inconsciente como o objeto do saber psicanalítico. O inconsciente, em primeiro lugar, é a possibilidade de rupturas de campo; em segundo lugar, o conjunto mais ou menos estável dos signifi cados coerentes que tais rupturas deixam à vista. O inconsciente possui um modo de ser a cada momento do processo analítico.

Um exemplo clínico, simples: certo paciente, erudito e genial em sua área, excessivamente recomendado por uma colega, por sua agressividade e descrença na psicanálise, me foi encaminhado. Já havia passado por psicanalistas experientes, mas sempre rompia a análise esbravejando sob todas as formas que podia manifestar sua contrariedade sobre os psicanalistas. Desde suas primeiras entrevistas, deixava claro que não acreditava na psicanálise e que ninguém conseguiria nada com ele; suas queixas eram sobre as mulheres que o sacaneavam. Ele havia dado de tudo a todas às quais se referia, e, por fi m, fora traído de formas diversas. Guardava em sua voz, em sua postura corporal, uma mágoa muito grande, ressentimentos não dizíveis ainda. Seguimos, e, já para combinarmos os horários e o valor das sessões, clara fi cou a disputa. Numa determinada sessão, em que eu já estava mais relaxada, ele me conta que destruiu um aluno arrogante com a resposta em público dirigida ao aluno: “quem você pensa que é para supor coisas sobre minha vida?”.

Nesta mesma sessão me dirigiu um ataque fulminante dizendo que eu não o escutava e que não era capaz de compreender sua dor, e que certamente deveria estar fazendo algum experimento com ele jogando interpretações no escuro sem saber o que estava dizendo. Respondi: “quem você pensa que é para supor de minha condição de analista?”. Encerrei a sessão, certa de que seria nosso último encontro. Ao contrário, ele levantou-se e me dirigiu um sorriso aliviado e um forte aperto de mão, seguido do “até segunda”. Nem tudo são fl ores. Algumas semanas se passaram e voltam os ataques fulminantes. Desta vez foi mais longe. Ficou sexualmente impotente, e, ao me dizer isto, perguntava, quase gritando: “você sabe o que é ser um homem impotente em minha idade?”

Não respondi. Deixei que falasse. Sem ser interrompido, me garantiu que iria se suicidar naquele dia porque a psicanálise nada podia fazer por ele e que estava de saco cheio. Fiquei em pânico. “Sem querer”!, – disse – atreva-se! Ele esbravejou, saíam perdigotos de sua boca e dizia aos berros comigo: “você está me desafi ando? Diga, é isso?”. Até agora não sei dizer onde fui parar.

Mas o que importa aqui é nosso assunto, retomemos. Ao dizer: você está me desafiando, algo nos dirigiu ao campo que seria rompido. Ele me desafi ava em busca, certamente, de minha intervenção, como a fi z da vez que citei acima. Mostrar que seu desafi o em relação à sua mãe sempre o deixou impotente, deprimido, desvalorizado. Celebrava esta impotência havia muito e de diversas formas, algumas muito graves para sua vida. O inconsciente passou a ser havido, nos termos campistas, à medida que revelou regras que sustentavam o Bravo desafi ador impotente. Desafi o masoquista que o levou a conhecer o inferno em vida.

Sigamos nosso passeio posicionando a condição do desejo. Desejo é o inconsciente em ação. Ações com marcas inteligentes do real no psiquismo. Suas ações no embate com o mundo vão criando precipitados de representações mais ou menos estáveis que acabam por defi nir o sujeito. O desejo é um estado aberto do inconsciente que pode se reconhecer e se representar. Resumindo: para a Teoria dos Campos, Desejo é a matriz interna das emoções, portanto, desejamos o que é agradável e também desejamos o desagradável, o repugnante. “Aquilo que se quer – que se quer que suceda, que se quer amorosamente, que se quer possuir – deriva do desejo, porém não é sua expressão direta. O que não se quer, o que se teme ou se abomina também faz parte do desejo; desejamos tanto o querido quanto o detestado”. Nesse ponto a concepção de desejo na Teoria dos Campos se identifi ca com tantas outras. O importante é não confundir desejo com vontades inconscientes. “O desejo é regrado; em essência é um conjunto de regras emocionais, uma lógica produtiva, de concepção, que nunca alcançamos representar explicitamente” [5].

Mesmo que matemos a vontade, como se diz, sobra uma margem de desencontro produtivo, pois o conjunto nunca cessa sua produção. O desejo, lógica produtiva das representações psíquicas, matriz interna, portanto interioridade humana, advém do real e se dirige ao mundo. Desejo é o real em sua função geradora. São regras estruturantes do sujeito; para este, o sujeito, a estrutura está oculta. É uma lógica indecifrada, cifrada no jogo dos símbolos. O desejo é um aprisionado ao real, através da interioridade do homem e, pelo caminho das emoções, tenta incessantemente dirigir-se à totalidade da qual foi seqüestrado. É na consciência que apreendemos as emoções do mundo, o modo de o real se representar a si mesmo. Por desejo, entenderemos toda efi cácia anímica, que direciona o homem ao mundo, especialmente ao mundo humano.

A psicanálise nasceu para cuidar da doença psíquica, das neuroses. Recordamos que o Homem Psicanalítico não pode ser confundido com a pessoa. Uma pessoa poderá estar na condição de Homem Psicanalítico por um tempo da vida, num consultório de psicanálise, o qual, lembremos, é um regime especial dentre possibilidades científi cas de ver o mundo, uma vez que lá vemos o patológico e o quotidiano, territórios interdependentes e que não se distinguem como opostos ou por exclusão.

Desde o século XIX, a psiquiatria já havia classifi cado os distúrbios psíquicos através da nosografi a psiquiátrica, classifi catória. Embora útil até hoje, ainda não é psicopatologia. Portanto, a psicanálise foi criada como um instrumento apto a penetrar a lógica interna das doenças psíquicas. Fabio afirma:

A psicopatologia, o pensamento que penetrou o mistério da lógica de concepção das neuroses, rompeu o campo que cuidadosamente distinguia e separava a vida psíquica normal da patológica, pôs em evidência o inconsciente freudiano, o qual ocupa, por conseguinte, a posição de vórtice – como as associações que se seguem a uma ruptura de campo na análise. Por isso, ainda hoje, a psicopatologia é nosso instrumento de aproximação ao quotidiano… reservando a nosografi a psiquiátrica para seus fi ns próprios e lícitos, enquanto, na cura analítica, pensamos psicopatologicamente. Em nossa prática clínica, o diagnóstico não consiste, como na psiquiatria e na medicina em geral, em encontrar a rubrica correta onde se situa o cliente. O diagnóstico, para nós, é uma das dimensões do processo terapêutico, sua dimensão longitudinal [6].

O que seria a dimensão longitudinal? O início de uma análise é marcado por uma espécie de imersão na vida anímica do paciente. Vamos, por meio de pequenos toques, provocando ruptura de campo. Mas não é possível fazer uma idéia do conjunto. Volta e meia saímos da imersão, olhamos, ponderamos para ter uma referência de onde estamos. Nesses tempos podemos teorizar, é certo, mas pouco ainda. Conseguimos apreender algo da lógica emocional que está se desenrolando. Na Teoria dos Campos, o rumo é chegar numa construção de uma teoria para cada paciente, sob medida. Precisamos teorizar nesta modalidade. Assim entendemos a psicopatologia psicanalítica, como uma forma de pensar em Psicanálise. Esta forma singular nos levará, a partir das rupturas de campo, à possibilidade de construir prototeoria, pontualmente, uma teorização para cada paciente. A psicopatologia faz parte do processo de interpretação, tanto no sentido transferencial quanto na direção à cura.

Para tanto, Herrmann construiu um referencial, para tratar do que denominamos acima como dimensão longitudinal; isto nos ajudará na apreensão do que é uma construção do diagnóstico sob medida e, tomando isto em consideração, avançamos para o campo da cura onde, fi nalmente, encontraremos nosso conceito, o destino.

Dimensão longitudinal

Uma análise contempla três tempos: o tempo curto, o médio e o longo, no sentido do tempo musical. Os três tempos se dão simultaneamente, como um fenômeno ondulatório. É no tempo longo que o diagnóstico pode ser constituído.
Cito Fabio:

O tempo curto é o da atenção à palavra do analisando e é o tempo da técnica psicanalítica, senso estrito. Nele, as palavras perdem seu signifi cado fi xo, consensual, dicionarizado, e abrem-se em valores conotativos, em jogos de paronímia, compõem-se para formar sentidos que o paciente não tinha intenção de proferir. Livre associação, atenção fl utuante, ou nossos próprios conceitos técnico-metodológicos de deixar que surja para tomar em consideração, de densidade da atenção analítica e ângulo da interpretação, vigem nesse tempo curto. O tempo médio é aquele do vínculo emocional entre analista e analisando, da relação analítica. Nós apreendemos nele sentimentos transferenciais; nele, uma turbulenta experiência, feita de amores e de ódios, além de dúzias de outros sentimentos, reedita as relações da vida do paciente, reposicionando-as com respeito ao analista. Essencialmente, o tempo médio é ocupado por um drama passional – não simplesmente amoroso – e seu tratamento transferencial. O tempo longo é o da história do Homem Psicanalítico; é lá que a história de uma vida se projeta sobre a história da análise, numa espécie de concentração, de condensação. Neste, a análise ganha a forma do destino do analisando, do qual ele não consegue dar-se conta, e tampouco o analista, a menos que o consiga diagnosticar. No tempo longo, dimensão longitudinal do processo analítico, faz-se o diagnóstico transferencial, e organizam- se as estratégias terapêuticas… os três tempos, cronologicamente, dão-se ao mesmo tempo, ao modo de um fenômeno ondulatório… Os sinais que levam ao diagnóstico ocorrem também nos três tempos, mas é no tempo longo que o diagnóstico se pode realizar e em que se pode planejar o tratamento [7].

O diagnóstico psicopatológico psicanalítico é, portanto, histórico e transferencial.

Para chegarmos a nosso destino, visitaremos a cura para melhor prepararmos nosso ponto de chegada.

Para a Teoria dos Campos, curado, o homem se cura do desejo. Entre os muitos destinos possíveis da doença psíquica está o de curar-se, também. A singularidade da cura psicanalítica está em que “o Homem Psicanalítico encontra uma nova posição em face do desejo, que pode ser resumida numa só frase: curar é cuidar dele, que sempre inspira cuidados”. Diferentemente de concepções psicanalíticas que atribuem o destino de maturidade a uma essência anímica e, portanto, haveria uma seqüência desenvolvimentista natural do sujeito, o que implica que a doença seria concebida como um desvio do desenvolvimento, impõe também uma modalidade de cura. Fabio faz uma crítica importante:

Isto é, caso postulemos, como analistas, uma seqüência necessária para o desenvolvimento psíquico e um estado de maturação defi nido, por termos aderido a certo gosto teórico, não estaremos longe de assumir, por nossa conta e risco do paciente, a posição do deus gourmet, que exige para seu paladar conceitual um homem bem cevado nos requisitos da genitalidade, da posição depressiva, na ordem simbólica… Uma análise do estado puro de curar do desejo estaria mais ao feitio do fi lósofo que adequada à modesta pretensão do psicanalista… O movimento em direção à cura, por conseguinte, deve restaurar a unidade histórica do paciente, não tanto por modifi car sua opinião a respeito do passado,mas por trazer de volta ao curso histórico presente a força de construção perdida… É o trânsito pelos possíveis que provoca mudanças. O trânsito entre novas versões do passado altera seu próprio futuro, situando o sujeito num tempo condicional (futuro do pretérito), que é característico do Homem psicanalítico [8].

Agora nos aproximamos do destino.
Resgato um conto que muitas vezes Fabio usou para cuidar desta questão: o encontro em Samarra.

O encontro em Samarra aconteceu na cidade do Cairo. Um servo chegou para seu senhor e disse: “Estive no mercado e aconteceu uma coisa espantosa, por isso preciso que me empreste um cavalo, vou fugir”. Pergunta o senhor a seu servo: “O que aconteceu?”. “Eu me encontrei com a morte e ela me ameaçou com um gesto. Empresta-me um cavalo, que fugirei para Samarra”. O senhor bondoso, porém ousado, foi ao mercado, encontrou-se com a morte e perguntou: “Como ousaste ameaçar meu servo?” A morte respondeu: “Não é verdade, senhor! Eu não ameacei seu servo. Fiz um gesto ao vê-lo, mas foi um gesto de espanto, pois esta noite temos um encontro marcado em Samarra [9]. Isto é destino. O preceito desta fábula nos diz sobre o destino – algo que encontraremos, estará marcado em alguma temporalidade da dimensão longitudinal de que falamos acima. Não há como escapar. Todavia a função do analista não é aceitar o destino, mas lutar contra ele. Numa análise, o analista busca roubar a história do destino, como bom e honesto ladrão, é claro. O que não se consegue roubar se perde, se mantém como destinado. Em termos clínicos há uma infinidade de determinações. As determinações do real vêem para nós – nascemos do real, somos constantemente recriados pelo real. Este nos penetra totalmente. A análise busca que haja sentido onde só havia o real que parecia destino. A função do analista não é consertar o destino, mas lutar contra ele. Tudo pode se tornar destino a menos que roubemos sua história. O que não conseguimos roubar, perdemos.

Inspirado em Freud, mas com a singularidade crítica do pensamento de Fabio Herrmann, destino é um conceito da Teoria dos Campos chamado também de inconsciente recíproco e de excesso do real sobre o desejo. Destino é um nome simples para seus correspondentes. Esse excedente do real sobre o desejo, sobre o campo da personalidade, escapa das representações de realidade e identidade, formas de o desejo se representar. Embora real excedente sobre o desejo, ainda é matriz simbólica de emoção, é uma regra que organiza o sentido emocional, neste caso, não subjetivo. É emoção sem sujeito. A identidade não o atrai, dissociada que está, tampouco esse excedente tem a propriedade de se projetar no mundo. Esse conceito, chamado contágio, não dispõe de lugar nas representações. O real onde se encontra a ferocidade, o calor da paixão incontrolável, caracteriza-se pela força de um contágio. Trata-se de emoção de procedência abstrata, de fortíssimo efeito, porém, vago e impessoal. O destino é como se fosse um modo de funcionamento de leis científi cas que causam fenômenos, como magia sem mago. Este algo a mais opera sem sujeito, determinando a interrelação fatal e inexorável dos rumos de entidades distintas.

A princípio Herrmann propõe esse conceito para permitir, permanentemente, uma operação clínica numa análise, através do diagnóstico, como vimos, todavia reconhecendo que no processo analítico, em geral, alguma coisa, regularmente, aparece ultrapassando os limites da ação da análise, sob a forma de repetição. Isto não é nenhuma novidade, uma vez que a análise não busca reformatar uma pessoa criando uma outra, nova, como um disco de computador que você reformata ao zero. Este mesmo, reformatado, guarda informações. Mas alguma coisa na análise resiste, insiste, adere, ultrapassa o limite da análise. Trabalhando e operando no sentido de insistir, de lutar contra o destino, até perder.

Podemos figurar o destino, dentro da Teoria dos Campos, de duas maneiras diferentes. A idéia fundamental, primeira, é que no processo de formação do psiquismo, das representações do mundo, algo fi ca muito marcado. Quando o cerco das coisas se transforma em realidade do real, isto é, quando surge o real humano – seja na criança pequena, seja numa área do psiquismo humano que está se transformando, do ponto de vista clínico é como se na dobradura do real sobre o sujeito se constituísse um campo contaminado.

Isso funcionará na análise como um limite para o processo analítico. Embora pareça mais uma explicação metafísica, na prática isso vai aparecer como uma espécie de efeito entre paciente e analista, como uma força inconsciente, efetivamente ativada pela reciprocidade entre a dupla paciente e analista. Há um efeito de inconscientes, que não se trata do inconsciente do analista ou do inconsciente do analisando; quando estamos em relação, ainda que imaginária, isso pode ser ativado. Considerar o conceito de destino cumpre a função maior de dimensionar tudo aquilo que não é destino e que se pode tentar vencer, mesmo que nem sempre seja possível o paciente encontrar um espaço representacional. A noção de destino é uma forma de tentar destituir a força do destino. Não precisamos pensar nele, basta saber que ele existe e está presente na análise. Assim, tenta-se minimizá-lo ao máximo.

O inconsciente recíproco, correspondente do destino, como acima descrito, é ativado no par analítico, tanto no analista quanto no paciente, o inconsciente recíproco. A importância de termos clareza sobre a existência do destino, para os analistas, é evitar criá-lo de forma bárbara, isto é, pensar que este ou aquele paciente não é possível de tratar, considerando destinos funestos a priori. É saber que somos insuficientes, mas devemos seguir tentando. Há o limite, há o destino e a ele sempre chegaremos pontualmente, mas só o descobriremos depois que aconteceu, na morte, por exemplo, ou em algo que termina. O destino não é necessariamente pensado como destino mal, é algo que pode manter-se como destinado. Isto só se pode saber a posteriori. Por isso há que se tentar. Um exemplo de Fabio nos ajudará a fazer a passagem para o conceito de inconsciente recíproco.

Diz Herrmann:

Dois homens avançam pela vida fora, sejam Pedro e Paulo, ou Esaú e Jacó, e seus destinos parecem interligados por um destino do real – no ventre da mãe, no útero do real – que os faz inimigos, amigos, êmulos, colaboradores, mas nunca indiferentes. Talvez não se conheçam, mas partilharão o prêmio Nobel ou numa cela na penitenciária. Ou não são dois homens, são duas idéias, três mulheres, um grupo de colegas que a vida separou, nações, movimentos históricos ou artísticos, fi losofi as. Há um estrato do real que só se ativa pela reciprocidade, uma determinação não determinística, um estrato de geração recíproca. Chamemo-lo de inconsciente recíproco. Ou, para os adeptos da boa nomenclatura tradicional e popular, chamemo-lo de destino [10].

Onde mais freqüentemente encontraremos sinais do destino é na ação humana. Ele se manifesta sob a forma de convicção. Na convicção, a identidade é posta à prova demasiadamente. Inicio uma ação sendo um, me transformo, transformo meus pares e terminamos diferentes. É na ação que opera excelentemente o inconsciente recíproco. O sujeito, sentindo-se convicto de sua autoridade sobre os destinos da ação, ao dar-se conta dos desvios que necessariamente se produzem da diferença entre seu querer e seu desejar, experimenta o dilema de admitir que seu caráter difere da identidade e escolhe caminhos imprevistos, como se a ação criasse vida própria, escolhendo seu destino; dito de outro modo, o destino, o inconsciente recíproco, opera apoiando a convicção em circunstâncias alheias à minha vontade, durante a ação, especialmente durante uma ação partilhada. É uma área de contágio, mas com força concreta e irrepresentável.

A sobrecarga do destino, com todas as discrepâncias de que é inocente, e seu cancelamento posterior, deixam como restos a convicção no determinismo absoluto. Nunca um bode expiatório terá sido mais bem carregado e para mais longe enviado do que o inconsciente recíproco, o destino, para o deserto da negação [11].

O destino é, portanto, o depositário de todos os excedentes. Tal como vimos, é na ação que ele se manifesta. É inconsciente recíproco por não ser nem de um nem de outro, mas inconsciente da própria reciprocidade. São movimentos em ação que podem parecer, à primeira vista, independentes um do outro, mas um mistério os conjuga.

Deixo por aqui esta refl exão, esperando segui- la num outro momento.
Faz-se necessário deixar Fabio falar:

Nossa vida transcorre simultaneamente em dois planos. Num deles, tomamos infi nitas pequenas decisões, sujeitas à incerteza e ao sofrimento, porém o rumo geral que o conjunto mesmo dessas decisões toma acaba por cumprir um desígnio que escapa a cada uma delas. O rumo geral de nossa existência, particular e inelutável, é determinado por um rio subterrâneo de sentidos que corre num plano completamente diverso daquele onde nossas escolhas operam. Na verdade, a dimensão trágica da vida não consiste propriamente em que, qualquer que seja o caminho percorrido, a morte nos espere ao fi m dele, ou que as paixões comuns vençam todas as precauções tomadas contra elas. Não é a vitória bruta do universal sobre o particular, mas sua articulação, a fonte da tragédia: ou seja, a forma particular de viver em face das paixões e da morte constitui um desenho muito especial para cada um de nós, desenho que vamos preenchendo sem a menor consciência de conjunto, até que ele se põe diante de nossos olhos, acabado. Então percebemos que tudo só podia levar a isto, que isto tem exatamente nossa fi sionomia, que este é e sempre foi o sentido de nossa vida [12].

A experiência de trabalhar este texto foi marcada por uma luta contra o destino.
Agradeço aos amigos que me ajudaram nesta travessia.

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