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Resumo
A autora comenta o material clínico de uma criança pequena utilizando conceitos da Teoria dos Campos. Destaca a ampliação de representações de si mesmo no processo desta análise e o uso cuidadoso do método na investigação clínica.


Palavras-chave
análise de criança; Teoria dos Campos; ruptura de campo; método; duplicação subreptícia do eu.


Autor(es)
Alice Paes de Barros Arruda
é psicanalista do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e membro do CETEC (Centro de Estudos da Teoria dos Campos).


Abstract
The author discusses the clinical material of the analysis of a small child making use of concepts of Fabio Herrmann’s Field’s Theory. She emphasizes the expansion of the use of self-representations during the analytic process, and the attentive use of the psychoanalytic method in the clinical investigation.


Keywords
child analysis; Theory of the Fields; field disruption; method; infinitive hidden multiplication of the ego.

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 TEXTO

A intimidade da clínica

permanência e simbolização: o que o vento não levou


The intimacy of clinical practice.
That which is not gone with the wind
Alice Paes de Barros Arruda


O material clínico apresentado por Sandra requer um tratamento condizente com sua riqueza, constituindo-se num estímulo ao pensamento clínico. Vejamos:

A analista é procurada por uma mãe atrapalhada, assustada e que não sabe o que fazer diante do que a vida lhe coloca de mais grave pela frente: a morte. Morte que chega, como sabemos, sem ligar nem avisar. Como o cocô do fi lho. Ricardo faz cocô na cueca, em qualquer lugar, na escola, na rua, em casa, descrevendo a mãe uma confusão de espaços, que vem acompanhada de uma confusão temporal dela própria ao relatar os fatos. A analista, como nós, acaba por se confundir com os dados, com a cronologia dos fatos.

Sabemos que a morte, que constitui um corte, um limite, instaura tempo e espaço na vida, o que, como Freud apontou em “Sobre o narcisismo, uma introdução”, de 1914, provoca imensa ferida.

O pai de Ricardo, por sua vez, observa que o garoto é estranhamente quieto, muito bom. Cordato. Parece nem sentir falta dos pais quando estes viajam! É, então, surpreendente quando Ricardo chega aos berros, no maior pampeiro, para o encontro com a analista. Seria um protesto desesperado? Em todo caso, é assim que Ricardo se apresenta.

Acontece, então, algo muito interessante que quero examinar melhor: Diz Sandra no material apresentado: “Mudei meu sistema de portas”. Pensemos: uma analista que de saída é assaltada por um estardalhaço na entrada de sua sala, no hall de um conjunto de um prédio eminentemente de analistas – diga-se de passagem, aquilo devia dar um eco para os outros andares… – essa analista, embora se desorganize com a difi culdade da situação – criança berrando, mãe falando junto, perdida – assim permanece apenas por instantes. Rapidamente se reorganiza e muda seu sistema de portas. Abre a porta que dá direto para a sala de ludo e ali fi ca, quietinha, aguardando sensatamente a criança se acalmar. Nada mais que isso. Tudo isso! Sim, porque quem trabalha com crianças conhece o impacto de uma situação delicada como essa. Aqui a analista vive na relação transferencial esta confusão toda. Difícil não se impressionar com o barulho e não querer se livrar do incômodo gerado por meu cliente junto aos colegas que estão trabalhando também. Difícil não sair pondo panos quentes, e nada mais oposto ao trabalho analítico! Não fazer nada disso é muito. É o analítico que a situação demanda. Agüentar tudo mantendo-se fi rme é permanecer no lugar de analista, que não se mistura. Numa agilidade impecável, Sandra, ao abrir a porta que não costuma abrir, e fechando a porta que costuma abrir, favorece uma aproximação e compreende o pequeno Ricardo: ele é diferente dos outros, ele é singular. Ali já começa a história da dupla, única. A atitude da analista de escolher mudar seu sistema de portas facilita o encontro. Trata-se de outro jeito, outra técnica para receber Ricardo, que favoreça o estabelecimento de um campo transferencial e que permita colocar em movimento um método: o deixar que surja para tomar em consideração. A técnica muda, a atitude de recepção da analista muda, mas o método, não. A analista é levada por ele, instaurando o surgimento do Homem Psicanalítico, objeto de nosso fazer analítico, com o qual temos encontro marcado. Este é o nosso compromisso. O Homem Psicanalítico para Herrmann é o ser da estranheza, “é o ser do método da Psicanálise, transferencial e descentrado internamente, dividido e múltiplo no íntimo de suas operações, este que aparece na sessão por efeito de ruptura de campo”, tomando por ruptura de campo o que possibilita o movimento emocional de abertura para o novo.

Não se trata, aqui, do homem concreto, evidentemente, mas do homem enquanto fi cção verdadeira, como nas grandes obras literárias, já que para este autor a Psicanálise ocupa uma posição especial entre a Literatura e a Ciência. Além disso, para a Teoria dos Campos não existe uma teoria geral do inconsciente; o que existe são campos cuja lógica emocional o processo de ruptura pode compreender. A técnica adequada favorece o trânsito, mas não garante a ruptura, o que a induz é o método. Assistimos, então, ao desenrolar da história da dupla: Ricardo vai desfi lando seus possíveis, ou seria, como diz Sandra, um desfi ar de uma série de nós, os nós do desejo que é então retomado ao se liquefazer o sintoma, obra do psíquico.

Ricardo é o Ricardo-vento: vazio, quietinho, sem marcas humanas de falhas e incompletudes.
É também Ricardo-vento zunindo: num estardalhaço de vendaval danado, de barulho ensurdecedor.
Mas é também o Ricardo-pum: vento fedido, fedido…
Mas é ainda Ricardo-vento inflável: vento que faz voar, como tapete voador do Aladim, e que faz ganhar os céus…

Entre o Ricardo que chega desesperado, fazendo cocô nas cuecas, a qualquer momento e em qualquer lugar – seu sintoma – e o Ricardo na privada (quando na sessão ele pede para a analista desenhar o Ricardo na privada), há todo um caminho que foi percorrido pela dupla, onde Ricardo vive seus possíveis e amplia as representações de si, nas infi nitas duplicações sub-reptícias de seu pequeno eu, seus euzinhos, como num espelho onde há inúmeros desdobramentos de si mesmo.

Cada conjunto de fantasias, cada núcleo de complexos psíquicos (Freud), ou campos (Teoria dos Campos), tem seu eu e age sobre outras dimensões do psiquismo. O método ou ato falho a dois deixa que a associação livre aconteça e vença a resistência ali onde se denuncia a negatividade do desejo, permite a ruptura de um determinado campo e surgimento de seu inconsciente relativo. Esses eus, até então periféricos por serem negados àquele campo, passam então ao centro da consciência, e um novo campo se forma.

Os efeitos curativos (terapêuticos) de tal indução de novas representações e de novos campos acabam por se fazer sentir, Ricardo-vento acaba por ir-se embora (depois da tempestade, vem a bonança?) e surge o Ricardo-sol (sol que ele pede para Sandra desenhar no fi nal), le roi-soleil.

A estratégia, então, adotada pela psicanalista é, uma vez mapeados os diversos eus, colocá- los para dialogar entre si, eventualmente fazendo-os colidir e provocando novas representações de si mesmo. Favorece um processo de construção egóica onde há uma circulação do sujeito psíquico semeando diversos eus que vão se sucedendo nesta posição.

É essencial na escuta, nos recomenda Herrmann, que se atente para os eus deslocados e seus inconscientes relativos que se exprimem em linguagem estrangeira e reconhecer a intenção articulada por meios precários, por estes eus periféricos.

Em seu livro A psique e o eu, de 1999, Herrmann nos propõe sua crítica conceitual de eu: o eu é construído de tal forma que é agente e alvo ao mesmo tempo de ações psíquicas, de tal modo que é continuamente sintetizado numa representação (ilusória) totalizante de si mesmo que envolve de fato o sacrifício de outros eus. Para conservar a forma do eu total é a atividade do eu que se sacrifi ca, posto que cada ato visa a construir o sujeito do ato. Para este autor, o sujeito psíquico é concebido como um lugar funcional, cuja posição é de agente em relação ao psiquismo. Se neste lugar se instala uma representação do eu que se declara única e defi nitiva, aí se eternizando, assistiremos ao “narcicismo do eu totalitário, onde o eu sucumbe à megalomania e fi ca prisioneiro do fígado da pedra”. Em contraste com este eu patológico, tirânico e ameaçado por outras representações que subjazem, há o eu da criação: uma circulação de sujeito psíquico semeia diversos eus que se sucedem nesta posição e dominam as funções egóicas como memória, atenção, motricidade. No processo de construção do eu dominante, outros eus-representação serão armazenados em outros depósitos culturais pré-estabelecidos, sendo talvez a vida onírica o melhor deles, onde vivem outros eus que não vingaram.

Devo acrescentar que o encontro analítico pode se constituir num espaço privilegiado para o desvelar de outros eus, como sugere o material de Sandra.

Outra questão presente no material apresentado por ela diz respeito à linguagem utilizada no trabalho com crianças, pensando em relação à especifi cidade deste trabalho. A certa altura, ela diz: “Um gesto justo, mais que uma palavra justa, garante o movimento seguinte e defi ne a intimidade da clínica com crianças”.

Ricardo chegou dando um banho em todo mundo, como vimos, mas foi banhado pela analista, que com sua capacidade de contenção, sensibilidade e agilidade técnica foi respondendo às suas inquietações. Com crianças, tudo acontece muito rápido, o analista que não é ágil dança mesmo. Também concorre para a rapidez da comunicação o imediatismo da linguagem utilizada. A linguagem gestual, como a visual, é direta, sem a mediação da palavra. Não há compasso de espera. A efi cácia da linguagem gestual que constatamos estaria também ligada ao brincar, que, como ela enfatiza, é mágico, é associação livre; ao brincar, a criança já está vivendo (atualizando) seus confl itos. Talvez pudéssemos dizer que o gesto de um analista de crianças equivale a uma interpretação nos moldes clássicos. A precisão de um gesto é a precisão de uma intervenção interpretativa, nesse caso.

Ainda com relação à efi cácia da linguagem gestual, eu me pergunto se, sendo a linguagem gestual imagética – que é a linguagem utilizada pelo inconsciente – estaria implicada na comunicação entre os inconscientes da dupla.

Para finalizar, quero destacar a contribuição da Teoria dos Campos para o crescimento da Psicanálise como investigação cuidadosa do método interpretativo. Em minha experiência pessoal no contato com seu autor, em que pude aprender de forma encarnada o funcionamento do método, conquistou-me o casamento da enorme sensibilidade clínica em relação à dor do paciente, com o extremo rigor metodológico. O ofício de analista, se por um lado fi ca mais difícil pela exigência de rigor e precisão impostos pelo método, por outro fi ca mais leve uma vez que somos ancorados por ele. Contraditório? Não, apenas complexidades inerentes ao próprio método e também a nosso ofi cio, que sem dúvida alguma sai muito enriquecido com Herrmann, a quem procuro homenagear neste pequeno artigo.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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