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Resumo
Este texto evidencia o obscurecimento da posição crucial do método psicanalítico, que se deu em grande medida porque passamos a confundir técnica com método. O projeto de recuperação metodológica da psicanálise desenvolvido pela Teoria dos Campos deu corpo a uma vertente da psicanálise brasileira, caracterizada pela investigação dos fundamentos da psicanálise freudiana ou, em outras palavras, pela refl exão epistemológica. O método resgatado por Herrmann faz com que, no seu uso, a teoria se altere, em vez de reconduzi-la a termos teóricos já consagrados. O método interpretativo psicanalítico compõe-se de dois aspectos: um heurístico e outro terapêutico. O fator terapêutico comum a todas as formas de interpretação é a ruptura de campo.


Palavras-chave
método psicanalítico; método interpretativo psicanalítico; técnica psicanalítica; teoria dos múltiplos campos.


Autor(es)
Marilsa Taffarel
é membro associado da SBPSP, membro fundador do Centro de Estudos da Teoria dos Campos, doutora em Psicologia Clinica pela PUC-SP, co-autora do livro Isaías Melsohn – A psicanálise e a vida.


Notas

1 S. Freud (1922), “Dos artículos de enciclopédia: ‘Psicoanálisis’ y ‘Teoría de la libido’”, p. 232.

2 S. Freud (1923), “Breve informe sobre el psicoanálisis”, p. 214.

3 F. Herrmann. “Interpretação: a invariância do método nas várias teorias e práticas clínicas”, p. 27.

4 Cf. F. Herrmann, “Horkos, ou ‘Pelos charutos de Freud’”.



Referências bibliográficas

Freud S. (1922/1979). Dos artículos de enciclopédia: “Psicoanálisis” y “Teoría de la libido”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, vol. xviii.

____ (1923/1979). Breve informe sobre el psicoanálisis. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, vol. xix.

Herrmann F. (1983). Interpretação: a invariância do método nas várias teorias e práticas clínicas. In: Figueira S.A. (org.), Interpretação sobre o método na psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.

____ (1989). Horkos, ou ‘Pelos charutos de Freud’. Folhetim, Folha de S. Paulo, 12 jun.





Abstract
This text highlights the fading of the critical position of the psychoanalytical method, in a large measure caused by confusion between. It technique and method. The project of methodological reclamation of Psychoanalysis developed by the Theory of Fields gave form to a ramifi cation in Brazilian psychoanalysis, characterized by the investigation of the foundations of Freud´s contributions and by an effort directed at epistemological clarifi cation. The method of Psychoanalysis involves two aspects: heuristic and therapeutic. The rupture of fi eld in which the latter consists is a common factor in all forms of interpretation.


Keywords
psychoanalytic method, rupture of fi eld, epistemology of Psychoanalysis, psychoanalytic theory, interpretation.

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 TEXTO

Recuperação e identificação do método psicanalítico pela Teoria dos Campos

Reclamation and identification of the psychoanalytic method by the Theory of the Fields Abstract
Marilsa Taffarel


Freud tinha uma noção clara da importância do método e de sua especifi cidade na psicanálise. Em 1922 [1] ele a defi ne como sendo um procedimento que serve para a investigação dos processos psíquicos e um método de tratamento das neuroses que se funda na investigação desses processos. Essa noção de interdependência entre um plano e outro, ou seja, efeito curativo e conhecimento do psíquico, Freud credita a Breuer. Já o método catártico de Breuer que buscava o alívio dos sintomas investigando o psiquismo sob hipnose tinha esta “inabitual conjunção”. Em Breve informação sobre a psicanálise (1923), referindo-se ao método catártico de Breuer, diz Freud: “O mesmo procedimento servia simultaneamente para a exploração da vida psíquica e para eliminação do padecimento. Essa conjunção foi conservada pela psicanálise que viria a surgir” [2]. Freud usava indistintamente o termo Methode ou a palavra Verfahren, que signifi ca procedimento.

No período de transição da fase pré-psicanalítica para a psicanálise, pode-se ver claramente uma alternância, quase uma simultaneidade entre invenção teórica procedente da investigação curativa e lenta criação do método interpretativo. É o tempo das primeiras descobertas sobre o psiquismo possibilitadas ainda pela hipnose. O que Freud descobre então? Os pacientes eram hipnotizados a fim de rememorar o trauma, mas eles queriam falar sobre a infância. Freud descobre o papel fundamental da infância. A descoberta da importância da vida sexual, para Breuer, era um elemento não priorizado, se dá de forma contemporânea. À medida que Freud progride em seu trabalho, a resistência do paciente à rememoração se mostra. Esse obstáculo é enfrentado primeiramente com a sugestão, que logo é abandonada. O fundamental, no entanto, é que Freud, com o dado clínico da resistência, conceberá a repressão. A concepção da repressão é o passo decisivo para que a arte da hermenêutica adentre a psicanálise. O reprimido se mostra por indícios e precisa ser interpretado para que o sentido se faça. A suspensão da repressão requer a interpretação – o método está criado. Por outro lado, a descoberta da transferência, feita depois, mostra que esse conhecimento curativo não é meramente intelectual, mas conhecimento que emana da atualização das pulsões e das defesas em relação ao analista.

O método interpretativo psicanalítico compõe- se, então, de dois aspectos: um heurístico e outro terapêutico. Investigação e cura. Mas, como sempre acontece, o que é óbvio passa despercebido: a posição crucial do método para a psicanálise se obscureceu. Isto se dá em grande medida porque passamos a confundir técnica com método. Freud chamava muito a atenção para a técnica da associação livre, eleita como a regra fundamental da terapia psicanalítica. Se perguntarmos a algum psicanalista qual é nosso método, ele prontamente dirá que é o da livre associação. A técnica – um feixe de prescrições ou recomendações – é propiciadora da boa aplicação do método, mas não é o método, esclarece Fabio Herrmann, criador da Teoria dos Campos. Outro fator que encobre a importância do método é nosso apego às teorias. São essas que costumam identifi car a psicanálise e os grupos psicanalíticos. Para Fabio Herrmann, não se comete um erro ao defi nir a psicanálise pelas suas teorias ou por suas técnicas, pois estas são concreções do método psicanalítico. São produto da operação fundamental da psicanálise, que é a interpretação, da qual nosso autor se propôs a desvelar o momento crucial.

Para a Teoria dos Campos, a psicanálise não tem uma idéia clara de como atinge seus resultados, mas o fato é que ela tem efeito transformador em qualquer uma das Escolas ou linhas psicanalíticas. Diz Fabio: a psicanálise funciona, tem êxito como terapia, embora haja notável diversidade e divergência no plano da teoria e da técnica. O que funciona então? A aplicação do método interpretativo.

Todo psicanalista, ao longo da história do movimento psicanalítico, continuou interpretando, embora interpretação signifi que diferentes coisas. Pode signifi car construção de um sentido a partir de alguns indícios, ou construção de um acontecimento da infância também a partir de alguns indícios. Pode signifi car o estabelecimento de nexos entre elementos associativos, pode consistir em mostrar para o paciente a fantasia transferencial em jogo, em determinado momento; mostrar as defesas e as pulsões correspondentes etc. A interpretação psicanalítica transferencial – seja uma interpretação da transferência ou na transferência, seja feita várias vezes numa sessão ou mais raramente, seja sua formulação cuidadosamente reticente ou acolhedora – manteve-se. A regra fundamental, sua grande facilitadora, continua intocada, assim como sua contra-parte, a atenção fl utuante. Nenhum psicanalista voltou a usar técnicas prépsicanalíticas, embora se fale muito sobre o caráter hipnótico de algumas relações analíticas.

Para Fabio Herrmann, o fator terapêutico comum a todas formas de interpretação é a ruptura de campo. Em geral, os pacientes que nos procuram estão aprisionados a uma litania, uma ladainha de representações de si e da realidade. Eles sofrem de e com a imobilidade identifi catória. Estão presos a determinadas representações. Para que novos sentidos emerjam, é preciso afrouxar e romper os sentidos que foram congelados. Essa ruptura é a interpretação. Ela pode ser feita como uma pontuação, uma pergunta, ou mesmo pode estar contida em uma fala mais longa. Uma interpretação é necessariamente subseqüente a um tempo de escuta, de atenção fl utuante. Uma atenção que se deixa captar pelas repetições, pelo inopinado, isto é, uma palavra que ecoa, que se reitera, uma expressão fora de lugar, um certo tom. Deixar surgir um indicador de sentido, para a seguir tomá-lo como um eixo da escuta. O importante é que o direcionamento não é o da reconstituição do sentido e sim a ampliação do nonsense que leva à ruptura da circunscrição em que o paciente estava retido. A interpretação visa a abrir espaço para que outras representações emerjam, para que o paciente transite e estabeleça nova relação com seu desejo. É isto que signifi ca ruptura: ruptura do campo de sustentação da relação vigente em dado momento.

A renovação empreendida pela Teoria dos Campos tem justamente o propósito de reabilitar, de re-trabalhar o método, de evidenciá-lo, de estabelecer sua relação intrínseca com o objeto do qual trata a psicanálise. Herrmann escreve: “Devemos conceder ao método da Psicanálise um estatuto singular, híbrido, operação do analista, mas estrutura psíquica do paciente, dotado de certa espessura ontológica: é a operação que recupera a constituição psicológica que a originou” [3].

O projeto de recuperação metodológica da psicanálise desenvolvido pela Teoria dos Campos tem uma inserção na nossa história. Ele dá corpo a uma vertente da psicanálise brasileira. Aquela que se constrói com base na forma de transmissão e recepção inicial da psicanálise no Brasil. Nossa história é caracterizada pela inexistência da importação de grandes nomes do cenário psicanalítico internacional, seja nos seus primeiros tempos, o dos seguidores imediatos de Freud, seja no segundo tempo, o da formação das Escolas [4]. Isto faz com que nenhuma das leituras ou dos desenvolvimentos feitos a partir de Freud, em qualquer desses dois momentos, imprima sua marca na psicanálise brasileira. A recepção da idéia psicanalítica, em São Paulo, fermenta em diferentes meios. Intramuros, geram- se basicamente dois movimentos: um caracterizado pela inquietação com a busca de aprendizado nos grandes centros psicanalíticos, busca de bem assimilar uma Escola psicanalítica. Outro, caracterizado pela investigação dos fundamentos da psicanálise freudiana ou, em outras palavras, pela refl exão epistemológica. Em Isaías Melsohn, fundador dessa vertente, o procedimento adotado para apreender o que é essencial à psicanálise é o de pôr entre parênteses as teorias psicanalíticas. A partir daí ele irá se dedicar à busca das formas de expressão características da vida emocional e à reflexão sobre a concepção de psiquismo congruente com estas. Melsohn tem se empenhado em abrir a escuta para os indicadores do sentido na fala associativa, por oposição a uma escuta informada por uma teoria psicanalítica. Propõe que se ponha em ação um ouvido informado esteticamente. Aberto para a melodia, o ritmo da fala, as repetições, as cacofonias, as assonâncias etc. Segundo uma expressão cara a Melsohn, uma escuta do dizer da fala.

A Teoria dos Campos compartilha este procedimento de suspensão das teorias psicanalíticas vigentes, o que signifi ca deixá-las de lado, num primeiro momento, para, a partir do que se destaca na fala do paciente, construir um interpretante específi co. Esse momento já é teórico, uma vez que na construção do interpretante entram concepções mais gerais sobre o homem, que se prestam ao caso, sejam elas psicanalíticas ou não.

Mantemos com muito zelo a relação entre a clínica e as teorias psicanalíticas. A determinação das teorias pela clínica, pelo empírico. Sentimo-nos confortáveis com a noção de que nosso conhecimento não é especulativo porque procede da clínica. Teremos razão para esta tranqüilidade? Para a Teoria dos Campos, não, uma vez que a psicanálise tende a perder a inabitual conjunção de que falava Freud, embora ela apresente uma tendência a recuperá-la ao longo de sua história. Para a Teoria dos Campos, o que valida a teoria é sim sua origem clínica, isso quer dizer que uma teoria começa a se formar no jogo interpretativo. Uma vez elaborada, ela irá informar a escuta clínica e participar da produção de novas interpretações que, por sua vez, deverão ao longo do processo modifi car a teoria usada. A teoria pode e deve ser usada como um interpretans, sob a condição de modifi car-se em seu uso. Não se trata apenas, para Herrmann, de escolher a teoria que pode dar sentido à fala do paciente, ou seja, de usar a teoria dentro de contexto. É preciso que no seu uso a teoria se altere, adquira o selo daquele interpretandum. Para que isso se dê, o analista precisa conservar o frescor das palavras que brotam no trabalho interpretativo em vez de reconduzi-las a termos teóricos já consagrados e precisa pacientemente construir o que Herrmann chamou de uma proto-teoria sobre o paciente, que poderá ou não ganhar o estatuto de uma teoria mais geral.

Tomemos como ilustração o início da análise de Mariana. Ela chegou toda confi ante na resolução de seus sintomas, sem reclamar explicitamente do custo e do número de sessões semanais. A análise tinha sido muito bem indicada. Deitou no divã, alegre como quem compra cadernos novos para o novo ano escolar. No mesmo momento, aparecem as lembranças da escola religiosa, escola de madres, como ela diz, onde fez seus primeiros estudos, uma escola horrível. Começam então as queixas de constrangimento, de aplicação cega das regras, de grandes exigências. Num dado momento, a atenção do analista é capturada por uma delicada correntinha de ouro que ela usava junto com o relógio de pulso mais pesado e escuro. O analista apenas lhe observa isso. Mariana, então, se espreguiça no divã. Lembra que está chegando o verão, tempo de chopinho, petiscos, banho de sol…. Logo se corrige dizendo que só quer o de direito. Diante de uma pergunta do analista – “Você não pode querer muito?” – Mariana detém-se, fi ca em silêncio. Na sessão seguinte reinstala-se fortemente o campo da queixa, que se mantém intocado enquanto vai se delineando a fi gura daquela que a ajuda para se livrar logo dela. A mãe que sempre a acolhe com frases feitas, às quais a paciente se agarra como um náufrago, mas continua afogando-se. O analista resolve dizer, ele também, uma “frase de ajuda”: dá razão a ela concordando que a vida é muito difícil assim como a análise. A paciente reage: “Li tantos livros de ajuda psicológica que estou cansada de blá, blá, blá, de frases como ‘só você pode se ajudar’. Queria ver como os que me dizem isso reagiriam se estivessem no meu lugar”. Ela não está mais se queixando, está reclamando vivamente da falsa ajuda, a ajuda ligeira, que rapidamente a abandona, como se ela ainda fosse a chatinha (era assim que se sentia na escola das madres). Após essa explosão desaparecem, por um tempo, os sintomas intestinais, uma de suas queixas importantes, e Mariana quer novamente aproveitar a vida, embora haja agora um fundo de cautela. Na história mais recente dessa paciente, se destaca sua dedicação aos cuidados do pai durante sua doença – um tumor benigno que, no entanto, acaba por matá-lo, um tumor inoperável que com seu crescimento comprimiu um órgão vital. Mariana aceitou as injunções da análise porque esta deveria libertá-la das madres exigentes e levá-la para a benignidade do chopinho, do verão, dos passeios pelas lojas. Essa organização do campo transferencial já foi tocada na análise e começa a desmoronar.

O diálogo mantido na sessão analítica deve caminhar para a ruptura do campo de sustentação das relações vigentes num certo momento. Um momento de impossibilidade de representar- se, que pode aparecer como silêncio, como vertigem, é um indício de ruptura. As representações que emergem a partir daí irão reestruturar outro campo, corporifi cado em outra forma de relação. E assim segue a análise, cuja característica é dar-se num campo onde todos os campos que se mostram valem, ensina Fabio Herrmann, pela possibilidade de ser rompidos. Não há um solo último a ser atingido. A análise não é, porém, uma atividade sem fi m. A sucessiva aplicação do método, cuja marca característica é ruptura de campo, aos poucos dá lugar à multiplicidade possível de representações identifi catórias e representações da realidade, mostrando a conformação do desejo.

Há muitos anos, chega certo paciente para sua primeira sessão. Ele está um pouco atrasado. Sua primeira frase é uma excelente frase inaugural. “Finalmente consegui chegar, eu e mais meu caminhão de eus”, diz ele. Logo me ocorre que ele deve ter deixado o caminhão de eus estacionado na frente do consultório, porque quem se vê ali é um condutor cansado. A análise deve possibilitar que esses eus amontoados no caminhão entrem na sessão e que este exauridor estilhaçamento do eu condutor ceda lugar a certa assunção da multiplicidade e a uma fluência identifi catória. A estrutura pode ser concebida como composta de diferentes eus – eus-id, eussuperegóicos, eus-complacentes – e de diferentes relações entre eles, como, por exemplo, na melancolia onde o eu melancólico tem sobre si o superego opressor. Essa estrutura marcada por um descentramento tem no método, entendido como ruptura, seu anverso. O método visa a pôr à mostra esse descentramento essencial. Com isto, se frustra a busca de alcançar uma unidade inquebrantável, mas abre-se a possibilidade do acesso à pluralidade possível de desejo.

Este texto resulta da retomada de uma exposição oral feita por mim na sessão plenária de encerramento do primeiro colóquio da Teoria dos Campos, no dia 24 de outubro de 1999.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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