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38
O pensamento vivo de Fabio Herrmann
ano XX - junho de 2007
248 páginas
capa: Fabio Herrmann
  
 

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Resumo
O trabalho relata uma supervisão com Fabio Herrmann, em que se discutem modos de perversão na clínica. Procura acompanhar o movimento da supervisão, numa tentativa de revelar os caminhos percorridos na teorização da clínica. Reconhece a difi culdade que os pacientes com funcionamento típico da psicopatia trazem ao analista e discute o manejo técnico nesses casos.


Palavras-chave
supervisão; clínica; perversão; absurdo; teorização da clínica; crença.


Autor(es)
Leda Maria Codeço Barone
é psicanalista, membro associado da sbpsp e do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Educacional do Centro Universitário Fieo – UNIFIEO.

Luciana Saddi
é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, autora do livro O amor leva a um liquidificador (Casa do Psicólogo), mestre em psicologia clínica pela PUCSP e colunista da Revista da Folha do jornal Folha de S. Paulo.

Magda Guimarães Khouri
é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Diretora de Comunidade e Cultura da SBPSP.


Notas

1 Como a analista atende crianças e adultos numa mesma sala, o material lúdico está à disposição de qualquer paciente.

2 J. Birman, “A psicopatologia na pós-modernidade. As alquimias no mal-estar da atualidade”, p. 188-189.

3 A noção de crença aqui utilizada está baseada nas idéias de Fabio Herrmann, no livro Psicanálise da crença. O fundamento básico é de que a crença é responsável pela sustentação das representações, participando decisivamente da função geral de asseguramento de nosso dia-a-dia. A representação possui duas faces: a primeira acusa o mundo e a segunda acusa o sujeito. A crença assegura a face externa – a realidade – e a face interna – a identidade do sujeito. Portanto, a crença está por toda parte.

4 F. Herrmann, Clínica psicanalítica. A arte da interpretação, p. 139.

5 F. Herrmann, op. cit. p. 128.

6 S. Freud, “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”, p. 87.

7 Fabio Herrmann considera o desejo como a matriz simbólica das emoções. Diz o autor: “…o desejo é a fonte interior que determina quais as emoções possíveis ou características, qual o caráter geral de sua relação com o mundo”. F. Herrmann, op. cit. p. 124.

8 F. Herrmann, op. cit., p. 127.

9 G. Diatkine, “El riesgo psicopatico en el niño”, p. 59-85.



Referências bibliográficas

Birman J. (2001). A psicopatologia na pós-modernidade. As alquimias no malestar da atualidade. In: Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Herrmann F. (1998). Psicanálise da crença. Porto Alegre: Artes Médicas.

____ (1991). Clínica psicanalítica. A arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense.

Freud S. (1985). Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago.

Diatkine G. (1986). El riesgo psicopatico en el niño. In: Las transformaciones de la psicopatia. Madri: Tecnipublicaciones.





Abstract
This paper recounts a supervisory session with Fabio Herrmann in which modes of perversion in clinical works are discussed. It follows the movements of the supervisory session in an attempt to reveal the paths taken to theorize the clinic. It recognizes the diffi culty that patients with psychopathic modes of functioning present to the analyst and discusses the analyst’s technical approach in such cases.


Keywords
supervisory session; clinical work; perversion; absurd; theorize the clinic; belief.

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 TEXTO

Pensando modos de perversão na clínica

Thinking about modes of perversion in clinical work
Leda Maria Codeço Barone
Luciana Saddi
Magda Guimarães Khouri

No dia 30 de junho de 2006, tivemos nossa última supervisão com Fabio Herrmann. Dessa supervisão produzimos este artigo clínico. Uma forma de reconhecimento de um trabalho marcado pela capacidade de Fabio estar constantemente na posição de um criador de possibilidades. Uma forma de registro de um saber perseguir a delicadeza e as nuances da relação clínica, não direcionado para o sentido fi nal, mas calcado na provisoriedade da palavra, do sujeito e da ação analítica. Num exercício permanente de não escorregar para idéias, formulações, interpretações saturadas, Fabio tentava nos mostrar o rigor psicanalítico levado a suas últimas conseqüências. E tudo, é claro, acompanhado de muito bom humor.

Procurada pelos pais de um menino de 17 anos, obeso com 140 quilos, a analista recebe o casal que se queixava sobre o filho freqüentar médicos, psicólogos ou nutricionistas por alguns meses, sem empreender nenhuma proposta de tratamento. Estavam extremamente preocupados, pois não sabiam como fazer para que o menino se tratasse adequadamente. Enquanto transcorria a conversa, a analista percebeu que os pais lidavam com suas angústias por meio de um controle do comportamento e da alimentação do filho. A situação poderia ser resumida assim: controle versus angústia. Ao mencionar essa dinâmica, eles concordaram e disseram que o filho não parecia sentir ou ter qualquer preocupação com sua própria saúde, peso ou mesmo aparência. Afinal, era um garoto que conseguia namorar; era aluno razoável; entre os irmãos havia uma espécie de mito de que Vitor era forte, grande e a gordura estava encoberta pelo tamanho avantajado dos ossos, por sua enorme simpatia e facilidade em fazer amigos. Além do mais, era um bem-sucedido negociante: aplicava, com sucesso, o dinheiro de alguns amigos de seus pais e de outros conhecidos numa espécie de fundo de investimento. A analista, a partir dessa visão dos pais de que Vitor não sentia nenhuma angústia, orientou-os no sentido de evitarem controlar o filho e, apenas, falar de suas próprias preocupações e angústias, sem propor solução, sem medidas controladoras de qualquer espécie, por enquanto.

Na semana seguinte, apareceram os três no consultório. Os pais falaram de suas preocupações com a saúde, a sexualidade e a aparência de Vitor, reconhecendo-se ainda desnorteados com a falta de preocupação que viam no filho. Vitor escutou e negou a “acusação” de que não fosse o maior interessado no assunto, acrescentando que nem sempre sua preocupação transparecia. A analista tentou mediar o encontro da família de modo que nenhum membro, depois que acionasse medidas de controle, permanecesse nessa disposição. Ao final, quando feita a proposta de trabalho ao paciente, ele aceitou prontamente, dizendo-se tão ou mais preocupado que seus pais. Freqüência e horários foram combinados. Quanto aos honorários, há uma observação importante: mesmo tendo uma situação financeira bastante privilegiada, fato omitido pela família, houve um pedido de desconto. Somente mais tarde a analista percebe que eles possuíam condição de pagamento dos honorários cobrados e que havia uma situação proposital, de disfarce: diminuição das condições econômicas da família, com o propósito a negociar a tal vantagem.

É curioso que, diante de seus pais, no primeiro encontro, o menino usava o discurso corrente, e de seus próprios pais, contra os gordos, tenho preguiça, sei tudo que preciso fazer, a alimentação está toda errada etc. Porém, na sessão com a analista, depois das explicações sobre o tratamento, sobre o fato de acreditar que não se deve culpar alguém que está sofrendo de um transtorno por esse mesmo transtorno, o paciente aderiu ao discurso, até repetia as mesmas palavras usadas pela analista.

Há algo de mimetismo na relação que ele estabelece com as pessoas, na qual, como um camaleão, toma para si as cores dominantes no ambiente. Defende-se, embora ainda não saibamos do que exatamente, e, ao mesmo tempo, conquista, seduz e nos convida a uma fusão, um estranho modo de engolir e ser engolido pelo outro. A distinção entre sujeito e objeto se desfaz.

Parece haver um esvaziamento de qualquer possibilidade de angústia, de transformação, porque ele esvazia a crítica do outro, aderindo a uma forma específi ca de autocrítica para não ter que mudar nada. Também sofro, vocês pensam que não sofro? Então Vitor passa a sofrer mais do que todos e ninguém mais pode lhe dizer nada. Essa adesão ao discurso com um aumento sutil, transformando a crítica em autocrítica ainda maior, faz as vezes de uma quase inversão e esvazia qualquer conversa, pela impossibilidade de atrito ou resistência.

Estar com Vitor é bastante estranho, nunca se sabe com quem se está falando: se com um homem de negócios ou com um garoto que nem prestou vestibular, que precisa emagrecer 40 ou 50 quilos e que, se não o fizer, poderá morrer de repente. Quando a analista acha que fala com o homem de negócios, sente-se louca e lembra que ele só tem 17 anos. Quando vê o garoto em sua sala, vê um menino disperso, alheio ao encontro e à presença da analista, muito regredido. Algumas vezes, ele brinca1 de refletir a luz do teto com uma caixa transparente, de “Supertrunfo”, jogo que compara tamanho e potência de carros; outras, bate a bola de vôlei ou a joga para cima, sem parar, num movimento constante de descarga.

Por ser tão plenamente convincente, ora faz acreditar que vai ganhar um milhão de dólares, até o fi m do ano, com um negócio novo no Brasil – sua única preocupação nos primeiros meses de tratamento – ora provoca desconfi ança na analista, que se sente enganada e tripudiada, quando ele diz: faz sentido tudo que está sendo trabalhado na análise. Mas quando questionado, por exemplo, sobre sua difi culdade de mudar algo na prática, responde: não faz diferença, não é importante. Quando lhe é apontado que no discurso ele vai muito bem, mas não consegue fazer nada com suas “aparentes” percepções, com ar de vitória ele afi rma: acho muito importante, nos dias de hoje, ser convincente, se não o for não terei clientes, não ampliarei meus negócios, perguntando- se também, com ar de vitorioso, de que modo a analista vê que ele é bom em falar, em parecer, porque, afi nal, aparência é tudo na vida.

Sobre o aspecto de sua pura aparência, o pensar e o agir se enquistaram numa forma concentrada a que chamamos ato puro. Uma forma de vida que se rege unicamente pela concatenação de atos, sem razão ou objetivo sustentável. Ao sujeito basta a imagem alcançada por meio de suas ações, tendo de seguir sempre em frente, custe o que custar em termos de economia psíquica.

Preso num jogo de aparências, Vitor espera da analista um olhar – que ele mesmo não pode ter – que lhe diga quem ele aparenta ser, uma vez que o ser já foi expulso, para uma posição de exterioridade, há muito tempo. Ele não está dentro dele, está condicionado à autocontemplação. Parece haver uma perda da substância humana, o que confere sentido para pensarmos num modo de vida do tipo: preenchimento, comida para dentro. Essa observação nos faz lembrar as idéias de Birman com base na análise que faz dos textos de Debord (A sociedade do espetáculo) e de Lasch (A cultura do narcisismo) em que “ser e parecer se identifi cam absolutamente no discurso narcísico do espetáculo, sendo aquele o pressuposto ontológico dessa interpretação da sociabilidade. […] Com isso, o que o sujeito perde em interioridade ganha em exterioridade, de maneira que aquele é marcadamente autocentrado. Neste sentido, o sujeito se transforma numa máscara para a exterioridade, para a exibição fascinante e para a captura do outro” [2].

Assim, numa tentativa de dar alguma substância a si – gerando uma contradição entre meios e fi ns, característica típica do trauma – Vitor utiliza para “cura” os mesmos meios que causaram a “doença”. E ainda, porque ser alguma coisa no mundo de hoje é parecer alguma, operação que é superfi cialmente bem realizada. O ser foi substituído pelo parecer, criando uma rigidez representacional ou crença [3] estreita, obrigando-o a agir apenas conforme o que dele é esperado. Ao mesmo tempo há um aumento em seu tamanho físico, uma corpulência que nos avisa que algo dessa operação está dando errado. Vitor ainda não se transformou completamente em um homem tão bem sucedido assim, ele ainda é um aprendiz, desde que entendamos por sucesso o próprio plano do garoto: aparência é tudo na vida. Há pelo menos 40 quilos que o distanciam de seu ideal.

Surge no grupo a hipótese de identifi car no caso um funcionamento típico da psicopatia e também o reconhecimento da difi culdade que temos em lidar, na clínica, com esses pacientes, que apresentam grande labilidade e podem confundir os analistas. Afi nal, se não tivermos desenvolvido maiores recursos de compreensão e manejo técnico com esse tipo de dinâmica, podemos fazer alianças com a parte aparentemente fl exível do paciente, que demanda do analista uma proteção, pois estamos ou nos sentimos diante de alguém que parece bem frágil – uma vítima desavisada dos males do mundo, pois o próprio Vitor nos diz: Sofro sim, sou o maior interessado em me tratar. Ou, ainda, podemos expulsar o paciente quando a manipulação e a ausência de alteridade se revelam, no momento em que o analista se percebe descredenciado pelo paciente. Essa questão também diz respeito ao fato de acreditarmos muito na possibilidade de crescimento do paciente, afi nal, ao iniciarmos uma análise fazemos uma aposta nele. Ao apostarmos, acreditamos na parte do paciente que procura ajuda e sofre, porém, na prática, muitas vezes, esses pacientes fazem um uso manipulador da análise, para obtenção de vantagens tanto dentro do grupo familiar como em outro grupo ou situação qualquer.

Fabio Herrmann foi concordando com a idéia da aposta, com a idéia da psicopatia e disse que Vitor era ainda um aprendiz dessa forma, e que ele, ao concordar com a crítica, transformava uma verdade em uma mentira, seja por meio da adesão completa a um discurso ou por alguma outra forma de autocrítica, que desmantela qualquer possibilidade de crítica real. E afirmou que o problema da verdade é que essa é apenas uma forma particular da mentira.

Esse modus operandi do menino nos confunde, pois, como uma ameba, engloba e assimila, com muita facilidade. A analista confi rma essa idéia ao dizer que o paciente fala e aceita sem pestanejar, dizendo que é verdade, quando a analista cobra dele o fato de fi car apenas no mundo do discurso. Porque ele cola no discurso, concorda com tudo e continua intacto. Mas fica especialmente feliz em saber que seu próprio discurso é convincente, afi nal, percebe que para o mundo de hoje e para seus negócios é muito importante ser bem sucedido nessa modalidade, e a crítica, por sua vez, se transforma em elogio. Ele inclusive é capaz de se questionar: por que será que não consigo sair do discurso para fazer algo prático?

Neurose e perversão dão testemunho de como o mundo é. Não se dão isoladamente, representam instâncias e constituições sociais. O neurótico suspeita, o perverso sabe, assim restringe seu mundo ou o campo das representações. “O voyeur, o fetichista, o exibicionista, mas também os psicopatas têm sua relação com o mundo e consigo próprios tão marcada por sua forma de ser característica que cada relação é uma réplica do modo central, é um facsímile da perversão fora do assunto perverso, quando não, caem elas no limbo da descrença. Nas adições severas, o mundo inteiro droga-se ou não se droga; é praticamente seu único problema.” [4]

Partindo da concepção de que a representação mais geral do desejo conhece-se pelo nome de identidade que é, fi gurativamente, a superfície interna da representação, sendo a superfície externa a realidade [5], pensamos que nesse paciente realidade e identidade concentram-se, encolhem. Ele vive numa espécie de claustro ou especialização do desejo e do real, organizado por preocupações estéticas e alimentares, ou mesmo fi nanceiras. Há um estreitamento do mundo que gira em torno de um tema, onde o mundo dos possíveis, das variadas formas de ser não tem lugar. Por isso Vitor não sente angústia, aparentemente, porque seus problemas de obesidade estão desacreditados, não têm importância, escorregam, embora ele afi rme que lá no fundo se preocupa muito com esse assunto. Não que deixe de problematizar suas questões no contato com a analista, e queira interpretar, discutir seus problemas, mas continua com o mesmo modus operandi de sempre, porque os modos de ser diferentes caem nesse campo desacreditado justamente por ameaçar as representações centrais de sua crença; no caso, aqui, ser convincente assegura sua identidade em seu sentido pleno. Em outras palavras, um componente, em si mesmo valioso, expande-se exageradamente e ocupa o lugar do todo.

A situação analítica de supervisão foi, aos poucos, adquirindo maior visibilidade. Partimos da apresentação do caso, quase que em estado bruto, e nossas indagações favoreceram a emergência de um tema, que transitou entre a psicopatia, a obesidade, a verdade e a mentira. A escuta analítica, por sua vez, era redimensionada, num trabalho de mão dupla: o caso faz pensar num conceito, o conceito redimensiona a experiência, que remete à clínica etc. Nesse movimento, a analista lembra dois fatos ocorridos durante a análise. O primeiro diz respeito à família de Vitor, porque depois de o contrato ter sido fechado, a família, que não havia dito seu sobrenome, revelou-o; sobrenome que não justifi cava o pedido de desconto. A analista se sentiu enganada e percebeu que a família havia arquitetado uma espécie de plano. Uma pequena mentira, algo escondido desde o início do tratamento. A pergunta referente ao fato de o nome não ter sido revelado antes reverberou entre os membros do grupo e duas formulações possíveis surgiram: talvez a família tenha medo de ser explorada, já que o sobrenome indica riqueza e, às vezes, o fato de se possuir muito dinheiro pode provocar uma desconfi ança, uma sensação de risco quase permanente de ser explorado e porque, por outro lado, é raro fi car muito rico à-toa, alguma exploração também pode ter havido, há um círculo vicioso, e detecta-se que algo persecutório está em jogo. A questão era complicada, porque o grupo não queria tratar desse problema de forma moralista, mas derrapava, de início, nas questões morais: verdade ou mentira e explorado versus explorador.

A perda de 40 ou 50 quilos passou a ser exemplar dessa segunda questão (explorados versus exploradores). Vitor precisa perder um excesso. Em nossas associações, uma pessoa, fruto de seu próprio excesso, oriundo de sua voracidade. Explorado e explorador são fi guras fundidas nesse rapaz e em sua dinâmica familiar. Outros pacientes acompanhados pela analista, que precisam perder quase tantos quilos quanto Vitor, apresentam também dinâmica signifi cativa em relação à questão do roubo.

A obesidade, como uma espécie de superego primitivo, denuncia a falha dessa organização aparentemente vitoriosa – sucesso e mais-valia –, revelando o fracasso em forma de gordura. Essa, a gordura, é a marca da falha, como um signo, é o superego cobrando e punindo, ao mesmo tempo. Por essa única e talvez insufi ciente rachadura, podemos dar início ao tratamento.

O outro fato lembrado referia-se à forma como tratou uma situação que o paciente lhe trouxera: o garoto fazia planos sobre como gastar seu primeiro milhão de dólares, depois que um grande negócio, em que estava trabalhando, desse certo. Porque, afi nal, é inquestionável a necessidade de ganhar um milhão de dólares antes dos 20 anos. Com esse dinheiro, ele compraria uma Ferrari, um carro que a analista sabia ser caro, mas não sabia quanto custava. Vitor lhe disse o preço de uma Ferrari. Um modelo mediano parecia algo exorbitante para a analista, mas muito razoável e até excitante para ele. Então, uma questão se impôs de tal forma que não havia como evitá-la: Mas como é que você vai caber numa Ferrari? Não é um carro pequeno, baixinho, você já entrou num desses para saber? Vitor titubeou, perdeu o rebolado, um pouco, mas logo se recompôs, afi rmando que ele acreditava que caberia, mas não tinha certeza.

O carro Ferrari também se torna exemplar dessa dinâmica complexa, símbolo de riqueza, de excesso e também ato de “ferrar”. Enriquecer se torna “ferrar” no contexto das fantasias do garoto e de sua família, que temia ser “ferrada” pela analista por meio de cobrança abusiva de honorários e que a “ferrava” ao montar uma situação, de certa forma, ilegítima.

Surgiram questões sobre a técnica na clínica: como operar o método diante de um funcionamento considerado próximo à psicopatia? Como trabalhar analiticamente com o tipo de funcionamento desse paciente, semelhante a tantos outros? O grupo pensou no problema de como desenvolver os recursos interpretativos do analista para que não se detivesse em considerações do tipo: necessidade de ganhar um milhão de dólares antes dos 20 anos. Considerações essas que acreditamos não favorecer a aproximação com o paciente nem com seu mundo interno. Estávamos tentando analisar a singularidade desse funcionamento, que mostra uma face que acompanha, assimila, compreende, e a outra que não desgarra de um modus operandi que parece fixo, imutável, e que, por fi m, também dá golpes no analista. Já a intervenção da analista provocara risos, irrompera uma certa graça no grupo, havia um humor inesperado e o paciente fi cara levemente desconcertado. A analista não havia dado regras nem julgado como se deve ganhar ou gastar o dinheiro. Isto é deslocado para a periferia e ela se concentra na realidade um tanto absurda das medidas físicas que não casam: 140 quilos num carro conversível. A própria intervenção da analista, porém, revela-se um tanto absurda, inesperada, fora do senso comum: um obeso numa Ferrari? Isso não é pergunta que se faça!

Fabio Herrmann, a partir daí, desenvolve suas idéias a respeito dessa situação clínica, dizendo que devíamos considerar o que esse moço fala, como verdade. O que ele está falando não deve ser questionado. Ao analista cabe entrar no delírio do paciente e ir minando, esse, por dentro. Funcionam como pequenas explosões, choques de representações, via absurdo. Tal como o exemplo da Ferrari.

Freud já havia dado recomendação técnica semelhante ao analisar Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. A história, bastante conhecida entre os psicanalistas, conta que um jovem arqueólogo, Hanold, fora tomado por um delírio que o afastara do interesse pela vida e o levara a se dedicar exclusivamente à Antigüidade clássica, ao descobrir num museu uma escultura de uma jovem com andar incomum: um dos pés se apoiava no solo, enquanto o outro se apoiava somente na ponta dos dedos. Hanold é absorvido por pensamentos incessantes sobre a figura da escultura, lhe dá um nome, Gradiva, uma nacionalidade, Pompéia, e para lá se dirige a fim de encontrá-la. Ele, como todos sabem, encontra Zoe, antiga vizinha de infância, que se faz passar por Gradiva e, aos poucos, por uma conversa impregnada de ambigüidades, lhe vai revelando a verdade, até que ele mesmo esteja pronto para compreender o que acontecera a ele. Freud elogia a “técnica” usada por Zoe, aludir à realidade sem questionar de frente o delírio e afi rma: “…a jovem se mantém fi el ao papel que lhe foi dado no delírio de Hanold e, por outro lado alude às circunstâncias reais a fi m de despertar no inconsciente de Hanold a compreensão das mesmas” [6].

Outro problema psicanalítico surgido no decorrer da supervisão esteve ligado à questão de como conhecer o desejo [7], como pôr em evidência o desejo desconhecido, pois, diretamente, ele não se mostra. Já o caráter, a forma geral da relação sujeito-mundo, se mostra e podemos caracterizá-lo: caráter melancólico, festivo, mau caráter, por exemplo. A direção do trabalho analítico seria de exercitar as possibilidades diferentes do desejo e, quem sabe, ampliar ou modifi car o caráter de uma pessoa. Na análise o paciente acaba por experimentar ser coisas em que nem sequer acreditava. E o analista pode provocar esse trânsito de diferentes representações, essa vivência dos possíveis modos de ser.

Para tal é necessário manter o desejo insatisfeito, uma certa dose de insatisfação para que se possa descolar das representações rotineiras, únicas do sujeito, tentando abrir caminhos para que o desejo se manifeste em suas potencialidades ocultas. O exemplo da Ferrari alude à existência de um objeto ligeiramente desencontrado da pulsão a satisfazer [8]. O analista se utiliza de alguma diferença ou ambigüidade, segundo Freud, para estar dentro e fora do delírio, ao mesmo tempo.

Retomando a idéia da restrição da realidade e identidade observada neste paciente, nesse estreitamento não cabe outro assunto fora aquele de seu núcleo representacional, sempre se repetindo, e tão marcada por sua forma de ser que cada relação é uma réplica desse modo, nada mais pode ter existência fora desse circuito realizador. O sujeito ignora ou desconsidera a existência de outras dimensões da vida, que se tornam insignifi cantes. O tema da conversa se caracteriza por uma espécie de predileção exclusiva e sua forma se restringe à possibilidade de seduzir, dominar ou se exibir. Há uma redução do mundo em que o sujeito habita. As sessões com Vitor eram praticamente monotemáticas, versando sobre dinheiro, lucros e grandes negócios. Outros assuntos lhe provocavam sono, desinteresse e distância. A analista fi cava reduzida a uma função bastante restrita, incapaz de gerar algum questionamento ou qualquer tipo de angústia. A interpretação nesses casos costuma escorregar pelo núcleo perverso central; ainda que o paciente só se refi ra ao problema, a interpretação desliza para uma zona vagamente desacreditada, por ameaçar as representações sustentadas pela crença. Essa última já sofreu um extremo estreitamento e é contra o alargamento representacional que o preconceituoso, o perverso e o psicopata irão lutar. Tal luta se dá de forma escorregadia e deslizante por meio do descrédito, do desinvestimento, que a interpretação ou a nova representação irá sofrer.

A pergunta que a analista fez sobre se Vitor caberia numa Ferrari produz um rápido deslocamento da representação “único assunto negócios” para outras representações, e explode um sistema. O analista precisa fi car sintonizado na crença central do paciente, é necessário que ele entre, praticamente, nesse sistema, para rompê-lo, seja por meio do absurdo, seja por intervenções que se caracterizam pela ambigüidade, segundo Freud no artigo sobre a Gradiva. Trabalhar as áreas sadias e oferecer novas representações signifi ca ir contra o cerne do problema, é preciso se instalar dentro desse sistema e de dentro dessa forma de pensar e organizar o mundo, gerar explosões mais ou menos controladas, que favoreçam o alargamento do campo representacional do paciente.

A via do absurdo é uma das formas de implodir o núcleo representacional enquistado. A ambigüidade recomendada por Freud no artigo acima citado é também uma forma particular de assumir em parte o absurdo, para questionar a loucura de dentro dela, para favorecer, em linguagem freudiana de 1907, a emergência da realidade, da razão e principalmente do desejo reprimido.

Seria no mínimo exagero de nossa parte ou ao menos incorreríamos em um erro ao enquadrar Vitor nas categorias perverso, adicto ou psicopata, até porque ele é sua principal vítima, sua obesidade assustadora é emblemática. Poderíamos pensar em partes da personalidade que funcionam da forma anteriormente comentada, restringindo, achatando o real e a si mesmo, convivendo com outras mais estruturadas e desenvolvidas. No artigo El riesgo psicopatico en el niño, Diatkine [9] afirma que o maior risco que alguns pacientes correm de fi carem restritos a esse funcionamento psicopático se dá quando o meio confi rma seus ideais grandiosos e conseqüentemente aumenta a culpa inconsciente e as tendências para auto-punição. A ameaça ao narcisismo do sujeito também reforça a conduta restritiva da realidade, por isso é importante pensarmos nas explosões das representações, por via do absurdo, pois essas se caracterizam por uma espécie de disfarce interpretativo da ruptura de campo.

Atrair lentamente os elementos desacreditados das representações e variações cada vez maiores é um desafi o considerável para o analista. Suportar constantemente o confronto com temas perversos, preconceituosos ou até com o estreitamento característico da conversa monotemática pode acionar o que há de perverso, manipulador e preconceituoso em nós mesmos. O analista acaba por mudar de assunto caindo numa espécie de interpretação explicativa, como forma de autoproteção, para criar uma barreira contra a sensação de estranheza, de soterramento ou de repulsa que alguns pacientes são capazes de provocar. E como escreve Fabio Herrmann, um dos maiores desafi os é pensar o diverso com alguém cuja identidade é quase toda jogada na zona periférica; pensar o diverso num mundo tão restrito.

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