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Resumo
O artigo analisa as relações entre autor, obra e leitor, com base na leitura realizada por Leda Herrmann da obra de Fabio Herrmann. Impõe- se como relevante a noção fenomenológica de “impensado”, que signifi ca não aquilo que uma obra deixou de pensar, mas o que ela, ao pensar, dá a pensar. Considera-se que o ato de ler cria um campo enigmático que demanda mais interrogação, abrindo a obra lida para o diálogo com outros autores.


Palavras-chave
autor; leitor; obra; recepção; Teoria dos Campos; Fabio Herrmann.


Autor(es)
João A. Frayze-Pereira
é psicanalista do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP.


Notas

1 S. Marton, A irrecusável busca de sentido, p. 112.

2 L. Herrmann, Andaimes do real – construção de um pensamento; F. Herrmann, Introdução à Teoria dos Campos.

3 L. Herrmann, op. cit., p. 19.

4 L. Herrmann, op. cit., p. 11-12.

5 C. S. Gonçalves, comunicação oral proferida como membro da Banca Examinadora da tese de doutorado de Leda Herrmann, apresentada à PUCSP em março de 2005.

6 L. Herrmann, op. cit., p. 283.

7 A. Green, Revelações do inacabado. Sobre o cartão de Londres de Leonardo da Vinci, p. 97.

8 Idem.

9 R. Barthes, A morte do autor (1968), p. 70.

10 R. Barthes, op. cit., p. 68.

11 R. Barthes, op. cit., p. 70.

12 M. Foucault, O que é um autor? (1969).

13 L. Goldmann, Le Dieu caché.

14 L. Herrmann, op. cit., p. 12.

15 C. Lefort, Le travail de l’oeuvre. Machiavel, Paris, Gallimard, 1972.

16 C. Lefort, op. cit.

17 C. Lefort, As formas da história, p. 15.

18 M. Chauí, Experiência do pensamento, p. 37.

19 M. Chauí, op. cit., p. 38.

20 M. Chauí, op. cit., p. 39.

21 M. Chauí, op. cit., p. 42.

22 M. Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, p. 156.

23 M. Merleau-Ponty, Le philosophe et son ombre, p. 260.

24 M. Merleau-Ponty, op. cit., p. 260-61.

25 M. Chauí, op. cit., p. 42.

26 L. Herrmann, 2005, p. 283.



Referências bibliográficas

Barthes R. (1968/1988). A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense.

Chauí M. (2002). Experiência do pensamento. São Paulo: Martins Fontes.

Green A. (1994). Revelações do inacabado. Sobre o cartão de Londres de Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Imago.

Foucault M. (1969/1992). O que é um autor? Lisboa: Vega/Passagens.

Goldmann L. (1956). Le Dieu caché. Paris: Gallimard.

Herrmann F. (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Herrmann L. (2005). Andaimes do real – construção de um pensamento. São Paulo, tese de doutoramento, pucsp (no prelo).

Lefort C. (1972). Le travail de l’oeuvre. Machiavel. Paris: Gallimard.

____ (1979). As formas da história. São Paulo: Brasiliense.

Marton S. (2005). A irrecusável busca de sentido. São Paulo/Ijuí: Ateliê/Ijuí.

Merleau-Ponty M. (1964). Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard.

____ (1960). Le philosophe et son ombre. In: Signes. Paris: Gallimard.





Abstract
The text analyses the relations among the author, the work and the reader, considering Leda Herrmann’s reading of Fabio Herrmann’s psychoanalytical work. It’s imposed as relevant the phenomenological notion of “non-thought” which means the thought that the work demands to be thought, not that one that has not been thought. It is considered that the act of reading creates an enigmatic fi eld that demands more interrogation, opening the work to the dialog with other authors.


Keywords
author; reader; work; reception; Fabio Herrmann; Theory of the Fields.

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 TEXTO

O impensado de Leda Herrmann

sobre a morte do autor e o nascimento do leitor


Leda Herrmann’s unthought
on the death of the author and the birth of the reader
João A. Frayze-Pereira

A figura do autor sempre ocupou o primeiro plano no campo das ciências humanas e da fi losofi a quando o assunto são os processos de criação das obras de cultura, obras de pensamento e obras de arte. A valorização do lugar do receptor é relativamente recente, apesar de a fenomenologia da percepção, desde os anos 1940, ter criado condições para questionar a hegemonia da estética da criação. É somente nas décadas de 1960 e 1970, com efeito, que o reconhecimento defi nitivo da fi gura do leitor, do espectador ou, mais amplamente, do público, surge em várias disciplinas, desde a hermenêutica até a consolidação da estética da recepção. Em todas elas, o receptor é considerado não apenas um aspecto do processo de construção das obras, mas um componente sem o qual o produto cultural não se perfaz. A relação entre leitor e autor, porém, relação de respeito e de admiração do primeiro pelo segundo, não se expressa apenas pela concordância entre ambos ou pelo elogio da obra lida, mas mediante leitura rigorosa, quando a obra é examinada à luz de seus pressupostos e levada ao limite de suas possibilidades. Como bem lembrou Scarlett Marton, por exemplo, a tradição da Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras da usp era honrar seus professores, ultrapassando-os, porque, acreditava-se, “nisso consistia o seu desejo. Com eles e com sua obra estabelecíamos uma relação de apreço que se expressava pela crítica radical de sua obra” [1]. Ora, não está nesse princípio, justamente, o sentido da filosofia, o amor à sabedoria?


O trabalho de Leda Herrmann Andaimes do real – construção de um pensamento, apresentado como tese de doutorado à pucsp em março de 2005, é um exemplo de leitura minuciosa e excepcionalmente bem feita dos escritos de Fabio Hermann. O texto, que prima pela clareza de propósitos e pela boa escrita, consagra a autora, seguramente, como a leitora que mais sabe da obra desse autor em nosso meio, obra que pensa a psicanálise com recursos da ciência e da literatura, da epistemologia e da ficção [2]. Mais do que isso, é bom lembrar, apenas de passagem, que essa obra foi produzida no contexto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo que, como sabemos, propõe a formação psicanalítica a partir da convivência entre tendências teórico-clínicas diversas, algumas vezes incompatíveis. Nessa medida, a obra de Fabio Herrmann pode ser considerada uma expressão superestrutural dessa paulistana cultura psicanalítica. E, para além do reconhecido talento do autor, pode-se dizer que vem daí a singularidade de seus escritos. Daí, também, o valor do texto elaborado por Leda Herrmann que, ao ser publicado, com toda certeza se tornará uma referência para todo aquele que se interessar pela Teoria dos Campos.

Tal trabalho, entretanto, não é de fácil leitura. Não permite ao leitor desvios da atenção, pois a escrita da autora não é barroca, não estimula o devaneio associativo e as construções metafóricas. Ao contrário, estritamente conceitual, impõe à leitura o ângulo cortante da tese que defende, isto é, a hipótese-tese de que “a idéia de dupla face método-absurdo” se encontra inteiramente na origem do pensamento de Fabio Herrmann.

Que idéia é essa? A autora escreve: “a idéia que me orienta, e que formulo como hipótese, é a de que esse pensamento psicanalítico, quando se apresenta no texto inaugural de 1976, já explicita as suas duas idéias formadoras: a do método interpretativo como ruptura de campo e a de absurdo como as regras que estruturam o sentido humano, a psique, seja ela considerada do ponto de vista do indivíduo ou do ponto de vista social, esta chamada psique do real na teoria dos campos”. E continua: “o título do escrito de 1976, Andaimes do real – um ensaio de psicanálise crítica, contém, na expressão andaimes do real, a concepção de absurdo como suporte para o real, expressão que se repete no título do primeiro livro de Fabio, publicado em 1979. Mesmo no texto de 1976, penso ficar clara, e esta é minha primeira conclusão, a presença do que chamei de duas idéias formadoras do pensamento de Fabio, que iria, posteriormente, expandir-se em sua obra escrita”. E conclui: “creio que posso desde já afi rmar que não são duas idéias independentes, mas o desenvolvimento em dois segmentos de uma idéia de dupla face” [3]. Ou seja, segundo Leda Herrmann, tal idéia é o núcleo que sustenta o pensamento de Fabio Herrmann e, por implicação, toda a psicanálise. E esta é a tese que a autora desenvolve ao longo de seu trabalho.

Posto isso, pode-se dizer que a área em que tal trabalho se inscreve é a da fi losofi a, apesar de Fabio ter alguma restrição a essa possibilidade, como ele mesmo sugere numa das últimas entrevistas que concedeu: “Sempre vigiei com cuidado meu gosto pela fi losofi a. A mistura de fi losofi a com interpretação psicanalítica pode levar aonde se quiser. Freud devia saber disso, a julgar por suas precauções. Não ter formação fi losófi ca traz suas vantagens: nunca tive de escolher entre Hegel e Nietzche, por exemplo” [4]. Apesar disso, a meu ver, é nesse contexto que esse trabalho deveria se situar, pois a questão exposta por ele é a questão da leitura, problemática filosófica por excelência, que envolve duas outras: a questão da obra e a questão da autoria. Portanto, leitura-obra-autoria são os pólos que definem o campo estruturante desse trabalho realizado por uma autora que acompanhou, na intimidade dos bastidores, o desenvolvimento da obra que analisa.

Na superfície do texto, a leitura proposta está claramente delimitada pelo perímetro dos escritos de Fabio, postura adotada desde a introdução até a conclusão. Isso significa que as referências são as do autor, assim como as questões analisadas cuja lógica é a de seu discurso, embora a discriminação e a escolha sejam da própria Leda, como Camila Salles Gonçalves observou numa contra-leitura que fez da tese [5]. É bom entender, entretanto, que o título do trabalho, Andaimes do real – construção de um pensamento, signifi ca a arquitetura conceitual da Teoria dos Campos, considerando que, em qualquer obra, os andaimes são os elementos que sustentam a construção desde o princípio e que, terminada a obra, fi cam nela inscritos de maneira invisível. Quer dizer, os andaimes constituem a estrutura invisível sobre a qual se edifi cou a composição visível da obra. E é a armadura sem a qual tal composição não existiria que Leda Herrmann busca apreender. Portanto, a palavra construção não signifi ca o processo de estruturação do pensamento, até porque com a idéia de dupla face Leda afi rma que, diferente do que ocorre com outras psicanálises, na obra de Fabio, a idéia já nasceu formada [6].

Ora, o modo de leitura da autora é coerente com essa idéia. É um procedimento que pode ser caracterizado a partir de uma perspectiva endopoiética que se defi ne complementarmente à perspectiva exopoiética. Ou seja, a análise das criações culturais (e creio não haver dúvida quanto ao fato de a obra de Fabio ser uma criação cultural), diz André Green, “pode emanar a partir de dois pontos de vista. O primeiro é endopoiético. Considerado deste ângulo, o estudo se reduz ao exame dos constituintes internos à obra. Ele é limitado a ela, ou às relações com outras obras do mesmo autor, ou ainda com obras de outros autores produzidas no mesmo campo” [7]. Leda trabalha nesse registro sincrônico. O segundo modo de ler é exopoiético. “Deste ângulo, vai tratar-se de considerar todos os fatores determinantes da obra em vários níveis” [8]. E aí se incluem desde a consideração pela vida do autor até o exame das condições sociais e políticas que formam o contexto de produção da obra, a história das formas culturais e ideológicas, entre as quais a obra se insere, os outros autores com os quais dialoga e as questões que a obra permite pensar para além dela mesma. A perspectiva exopoiética, pode-se dizer diacrônica, é reivindicada pela análise endopoiética, o que mostra que esta última é um momento necessário à leitura de uma obra. Quando o estudioso adota exclusivamente essa perspectiva, entretanto, a impressão de totalidade e auto-sufi ciência que ela engendra pode nos fazer esquecer o vínculo da obra com o mundo, seu enraizamento nele e a possibilidade de sua abertura para ele. E o risco da ilusão perspectiva que o esquecimento da origem acaba engendrando, característico daquele modo de leitura, é o de impossibilitar a transcendência da obra. O que signifi ca isso?

Nos anos 1960 e 1970, com o movimento estruturalista francês, muito se escreveu a respeito dos discursos e das possíveis formas de análise do discurso. Roland Barthes, em minha visão um dos mais poéticos e inventivos nesse campo, em 1968, escreveu um ensaio que fi cou célebre. Nele, esclarece que um texto é constituído de múltiplos escritos, hauridos em muitas culturas, que estabelecem relações mútuas de diálogo, de paródia, de contestação. Porém, há um lugar em que essa multiplicidade se encontra, e esse lugar é o leitor, e não, como sempre se pensou, o autor. “A unidade de um texto está não em sua origem, mas em seu destino […]” [9].

Nesse ensaio, Barthes sustenta a tendência moderna à dessacralização da imagem do autor. Ele argumenta que o autor, considerado como a origem única e a fonte singular do signifi cado autêntico de um texto, é uma fi gura moderna criada historicamente, idéia que se mostrou bastante equivocada. “Um texto não é uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (…a mensagem do Autor – Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas no qual se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é a original” [10]. Não cabe ao autor necessariamente ter ciência dessa condição. É o leitor ou os leitores que realizarão a tarefa de revelação dessa multidimensionalidade. E daí a tese do ensaio – “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor” [11].

Essa posição de Barthes não é uma posição individual. Vários outros pensadores concorrem para defendê-la até hoje, tanto no que diz respeito às obras de arte e literárias, sobretudo com os estudos mais recentes de estética da recepção, como às obras filosóficas propriamente ditas. Os autores são muitos. E gostaria de lembrar apenas alguns.

No ensaio O que é um autor, por exemplo, Foucault interroga a função autor [12]. Tanto quanto Barthes, mostra o que modernamente é posto em questão: o conceito de autor como fonte determinada e fixa de uma obra e de seus signifi cados. O autor é, na verdade, uma função que instaura discursividade. Freud, por exemplo, não é apenas o autor da Traumdeutung, ou Marx, do Kapital. São autores que estabeleceram uma possibilidade indefi nida de discursos, tornaram possível o advento de diferenças relativamente a seus textos, a seus conceitos, a suas hipóteses. E por isso se eternizaram. Ora, essa abertura é possível porque o autor não é um sujeito individual, mas transindividual, como também defi niu Lucien Goldmann ao ler o teatro de Racine [13]. Ou seja, o que subjaz ao autor, como sujeito de uma obra, são as condições de possibilidade culturais (não apenas epistemológicas) dessa obra, o que podemos chamar de origem ou de fundamento concreto dessa obra.

Quando Leda pergunta a Fabio, na entrevista com a qual abre seu trabalho, sobre os fundamentos de sua obra, nosso autor responde – “mesmo se quisesse dizer, não conseguiria, porque simplesmente não entendo bem a questão. A menos que fundamento seja bibliografi a. De onde Freud tirou a idéia de atender os pacientes daquele jeito? O pensamento da época deu-lhe linguagem, instrumentos. Mas a análise saiu da investigação com os pacientes, suponho. […] Quando me perguntam por minha raiz, costumo responder que sou freudiano, porque, na esteira de Freud, desconfi o muito do patrimônio teórico acumulado e acho necessário submetê-lo a uma ruptura de campo” [14].

Fabio tem razão ao dizer o que diz, isto é, que ignora seus fundamentos. E tem razão não porque os fundamentos de uma obra estejam fora dela, mas porque estão nela mesma de modo indeterminado, ou, para usar um conceito filosófico, como o seu impensado. O que é o impensado de uma obra?

Claude Lefort, discípulo de Merleau-Ponty, no estudo magistral sobre o pensamento de Machiavel, intitulado Le travail de l’oeuvre [15], demonstra que o impensado de uma obra é o trabalho que a própria obra realiza junto ao leitor e que, portanto, é do leitor que a obra depende para se fazer pensar, para se consagrar como obra de pensamento propriamente dita. A posição do leitor em relação à obra que ele deseja ler é, portanto, decisiva.

Entretanto, o que faz uma obra ser obra de pensamento? Segundo Lefort [16], é a força para romper o círculo do mesmo e suscitar a diferença. A questão da obra de pensamento reside no trabalho que ela própria realiza para suscitar discursos, isto é, em possuir uma data, e, no entanto, transcendê-la, em existir no seu próprio texto e também no de seus leitores. Assim, a obra de pensamento é aquela que funda um campo discursivo que se explicita nela e graças a ela. Esse campo é simbólico e essencialmente indeterminado, sendo a indeterminação o que garante a gênese de sua posteridade. Uma vez que a obra de pensamento é aquela que, ao pensar, dá a pensar, há nela um excesso de pensamento em relação ao que está explicitamente pensado. É esse excesso que faz com que a obra suscite novos discursos. Ou seja, a indeterminação essencial da obra de pensamento (aspecto que a distingue de todo outro tipo de obra) e a imanência dos novos discursos a ela revelam que ler não é outra coisa senão interrogar. E o que seria interrogar?

Dentro dessa mesma linha de refl exão, interrogar é descobrir que a obra contém a potência de fazer falar, é acompanhar os caminhos que ela própria abriu, é encontrar de novo sua fundação. Em suma, interrogar é tomar a obra de outrem como matéria-prima para nossa própria reflexão [17]. É, portanto, garantir a transcendência da obra com o trabalho da leitura entendida como interrogação.

Assim, completa Marilena Chauí, “se a obra de pensamento ou de arte é geradora de sua posteridade e se pode haver reativação do sentido sedimentado, é porque a obra se transcende, antecipando as vindouras, e nós a transcendemos reabrindo seu sentido, liberando o que ali estava cativo” [18]. Há, portanto, uma dupla transcendência, que articula leitura e escrita, leitor e autor, que revela sua assimetria e seu parentesco, ensinando- nos que a positividade irrecusável da obra dissimula o que a conserva viva para os outros. “No caso da obra de pensamento”, observa Marilena, “essa dupla transcendência dissimula o impensado que sustém o seu e o nosso pensar” [19]. O impensado não é, portanto, aquilo que não foi pensado pelo autor da obra, mas aquilo que a obra, ao pensar, dá a pensar. Não é, portanto, o menos; ao contrário, “é o excesso do que se quer dizer e pensar sobre o que se diz e pensa” [20]. É o que, no pensamento, faz pensar; é o campo que justamente permite diferenciar leitura e escrita.

A esse respeito, fi nalmente, é preciso retomar o sempre bom e velho Merleau-Ponty, para quem a noção de impensado se inscreve numa trama semântica múltipla e simultânea. Com ela são interrogadas as relações entre fato e idéia, obra e pensamento, criação sócio-histórica e tradição cultural, o mesmo e o outro. E, segundo Marilena Chauí, essa noção permite perceber como se apresenta a questão do instituinte e do instituído para uma filosofia que renunciou à pretensão da autofundação [21]. Diz Merleau-Ponty: “Se há uma idealidade, um pensamento que tem em mim um porvir, que até mesmo perfura meu espaço de consciência e tem um futuro para os outros e que, enfi m, transformada em escrita tem um porvir em todo leitor possível, só pode ser porque esse pensamento que não me sacia e que também os deixa famintos, que indica uma deformação de minha paisagem e abre para o universal, é antes e, sobretudo, um impensado. As idéias muito possuídas já não são idéias, já nada penso quando as falo…” [22].

Merleau-Ponty foi leitor de muitas obras de pensamento. E no trabalho que dedicou a Husserl, a certa altura, diz: “quando Husserl termina sua vida, há um impensado de Husserl, que é muito seu e que, no entanto, abre para uma outra coisa. Pensar não é possuir objetos de pensamentos; é circunscrever, graças a eles, um domínio para pensar que, portanto, ainda não foi pensado” [23]. E compara o campo do pensamento ao da percepção, pois assim como o mundo percebido mantém-se graças a esses incorporais que são os refl exos, as sombras, os horizontes e os espaços entre as coisas que não são propriamente coisas, mas também não são nada, delimitando os campos de variação possível no mesmo mundo, “assim também a obra e o pensamento de um fi lósofo são feitos de certas articulações entre as coisas ditas, frente às quais não há dilema entre a interpretação objetiva e a arbitrária, visto que ali não estão objetos de pensamento, pois, como a sombra e o refl exo, também eles seriam destruídos se submetidos à observação analítica ou ao pensamento isolante. E se quisermos ser fi éis a eles, só nos resta um caminho: pensar de novo” [24].

Toda e qualquer obra, conclui Marilena Chauí, todo e qualquer pensamento, em suma, toda e qualquer fi losofi a se ilude quando crê ser auto-fundada e se perde quando, dentro ou fora da academia, é possuída na dinâmica dos grandes sistemas, no catálogo dos museus e no arquivo das bibliotecas [25].

Nesse sentido, penso que a hipótese-tese que norteou a leitura de Leda Herrmann – a idéia de dupla face: método-absurdo – é muito fecunda não porque é clara e distinta, mas por ser enigmática. Ou seja, uma vez que articula paradoxalmente a ordem (método) e a contradição (absurdo), tal idéia suscita mais trabalho de leitura, sobretudo para além do perímetro da obra de Fabio Herrmann. Quando a autora escreveu trezentas páginas secundadas por outras tantas não incluídas no volume que apresentou à academia, um longo projeto afetivo e intelectual se perfez. A partir dele, é a exigência de continuidade que se instala, em particular no tocante à passagem da endopoiesis para a exopoiesis, abertura necessária para garantir a transcendência da obra de Fabio como sólida obra de pensamento. É na exposição à alteridade, à diferença, ao debate público, que uma obra, qualquer obra, revela sua particularidade, condição necessária para vir a se tornar universal, pois é a particularidade de uma obra que a torna irrepetível, capaz de ultrapassar o momento histórico em que se deu sua produção. Com aquela passagem, portanto, será dado um passo no sentido da ruptura do campo instituído e delimitado pela obra, abrindo-se para esta um lugar contemporâneo na cultura contemporânea.

Com efeito, é essa possibilidade que a leitura de Leda Herrmann inaugura. Por ser a primeira leitura que vem a público do conjunto da obra do autor, ela tem o mérito de instaurar a fortuna crítica dessa obra. Ao fazer a análise a partir da idéia de dupla face, reativa um sentido que estava sedimentado na obra, permitindo aos pósteros fazer contato com a Teoria dos Campos segundo uma nova chave, aceitando-a ou não. Com ela, é o campo da pré-formação do pensamento de Fabio Herrmann que se abre à interrogação. Afi nal, com a idéia de dupla face método-absurdo, idéia que enigmaticamente “já nasceu formada” [26], a autora deixa surgir um campo indeterminado a ser tomado em consideração por outros leitores cujos trabalhos, cada um a seu modo, farão a obra dialogar com outros autores, emergentes da fi losofi a, da psicanálise e da cultura num sentido amplo. Assim, é possível dizer que esse trabalho inaugural de leitura tem o grande mérito de alavancar a posteridade da obra lida, abrindo caminho para que esta se torne universal. Este é o seu impensado. Ser levada a pensar aquilo que a obra de Fabio dá a pensar levou Leda a fazer surgir a necessidade de a obra ser considerada comparativamente, de sorte que, relembrando Roland Barthes, podese dizer que a eternidade de um autor não se deve apenas a ele mesmo, mas, em grande parte, ao trabalho diferencial de seus possíveis leitores. Instigados pela obra lida, são eles que proporão a ela perguntas diferentes às quais a obra responderá também diferenciadamente. A elaboração desse processo, que caracteriza o campo da recepção cultural de uma obra, surgirá mais ou menos densa de sentidos, dependendo, por um lado, da disposição dos leitores para o trabalho da interrogação e, por outro, da potencialidade da própria obra de fazê-los pensar. É nessa direção que a obra realizará seu mais profundo desígnio: fundar um campo discursivo em contato com o qual alguns leitores poderão se tornar novos autores.

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