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Resumo
Neste texto, o autor comenta seu livro A infância de Adão. As ficções nele reunidas apontam para questões centrais tanto na vida psíquica quanto na prática do analista, que Herrmann discute com base em sua Teoria dos Campos.


Palavras-chave
inconsciente; interpretação; realidade psíquica; sujeito; ficção psicanalítica.


Autor(es)
Fabio Herrmann
(1944-2006) foi psicanalista, criador da Teoria dos Campos, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (1985-1986) e da FEPAL (1986-1988), fundador do Centro de Estudos da Teoria dos Campos (CETEC) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC/SP, no qual lecionou de 1984 até seu falecimento. Publicou 105 artigos científicos e 30 capítulos de livros, além de vários livros, entre os quais os três volumes de "Andaimes do real", "Clínica psicanalítica: A arte da interpretação" (traduzido na Argentina), "O que é Psicanálise – para iniciantes ou não...", "A psique e o eu", "Introdução à Teoria dos Campos", "O divã a passeio: À procura da psicanálise onde não parece estar", "A infância de Adão" e outras ficções psicanalíticas.


Notas

* Este texto foi, originalmente, uma aula no seminário “Da clínica extensa à alta teoria”, SBPSP, dezembro de 2004.

1 G. Bachelard, Ensaio sobre o conhecimento aproximado, p. 297.

2 J. Lacan, Fonction et champ de la parole et du langage em psychanalyse.

3 F. Châtelet, Hegel.

4 C. Guinzburg, Mitos, emblemas, sinais, p. 143 ss.

5 Nossa clínica caracteriza-se por permitir que alguém discorde de si mesmo, tendo pois razão apenas aquele que a ela renunciou. Ou, como melhor expressa o escritor: “porque, quando um indivíduo chegou à capciosa etapa de ‘ter razão’, acontece a trágica metamorfose… simplesmente porque o homem que trata de convencer o outro quase nunca se convenceu…” J. Filloy, Caterva.



Referências bibliográficas

Bachelard G. (2004). Ensaio sobre o conhecimento aproximado. São Paulo: Contraponto.

F. (1995). Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Guinzburg C. (1989). Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras.

Filloy J. (1937/2003). Caterva. Madri

Siruela Lacan J. (1966). Fonction et champ de la parole et du langage em psychanalyse. Écrits. Paris: Éditions du Seuil.





Abstract
In this review of his own book The childhood of Adam, Fabio Herrmann shows how the stories point to questions relevant both for the inner life of human beings and for the psychoanalytic work. Issues such as the nature of the unconscious, interpretation and psychic reality are discussed from the point of view of his Theory of the Fields.


Keywords
unconscious; interpretation; psychic reality; psychoanalytic ficcion.

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 TEXTO

Sobre "A infância de Adão" *

About "The childhood of Adam"
Fabio Herrmann


“O Bem e o Mal são preconceitos de Deus” – disse a Serpente.
[F. Nietzsche]

I. Chorar de rir

O escritor sério agonia-se para entreter seu leitor. Os grandes livros são escritos com sangue e lágrimas, com lágrimas de sangue pelo que se ouve. A infância de Adão e outras fi cções freudianas, publicado pela editora Casa do Psicólogo (São Paulo, 2002), não foi escrito com líquidos tão nobres nem seu autor, confessadamente, alberga no íntimo pretensão alguma a ser um sério escritor de fi cção. Na verdade, a escrita de alguns dos contos que compõem o livro por vezes representou certo empecilho emocional: era difícil parar de rir e voltar a escrever. Assim sendo, lê-lo descomprometidamente dentro do espírito de aquilo que sempre quis saber, mas não encontrava a quem perguntar e divertir-se resolvendo alguns enigmas não constitui pecado algum nem ofende obra e autor. A maior parte dos amigos que o leram leram-no assim, achando graça, e não tiveram vergonha de o confessar. Ao contrário, histórias de humor são para rir; charadas, para divertir; contos psicanalíticos, desafi os à razão emocional.

Todavia, no fundo dos enigmas costumam esconder-se os mistérios. Os primeiros a gente soluciona e estão liquidados, mas os últimos recusam-se a morrer, pois não têm solução. Há também em A infância de Adão uma camada misteriosa, diga mos, que refl ete os problemas práticos da clínica psicanalítica e talvez antecipe fi ccionalmente alguns possíveis desenvolvimentos teóricos.

A certa altura do seminário Da clínica extensa à alta teoria, participantes argutos pediram explicações a respeito da função crítica desempenhada por essas fi cções na situação presente da Psicanálise, desconfi ando, com inteira razão, de que nelas se ocultam chaves importantes de nossa posição. O resultado foi o texto que segue, uma espécie de auto-resenha, precedida de certas considerações não de todo otimistas sobre a atualidade psicanalítica. Nem pessimistas, desafi adoras. Trazermos à tona alguns fragmentos do leito clínico, teórico e metodológico em que corre o rio dessas histórias não parece traição a seu estilo líquido, assim como não parece traição ao espírito do riso que as anima extrair de seu corpo uma gota de sangue ou uma lágrima, como amostra para o exame laboratorial dos males que afl igem nosso tempo. Não se diz: chorar de rir?

II. A situação

Das coisas que dizemos nós, os analistas, daquelas que escrevemos e em que acreditamos, há algumas que devem ser verdadeiras, outras que são hipóteses a demonstrar e há outras ainda que parecem pura e simplesmente erradas. Estas últimas, as erradas, não o são em geral por falha de observação ou por engano na interpretação dos fatos, coisa tão comum noutras ciências. Não são erros por falta, por falta de atenção ou por falta de teoria, em geral são erros por excesso, ou seja, por afi rmação improcedente.

Por exemplo, é óbvia para nós a existência de sentidos inconscientes nas coisas, nos atos, nas palavras, porém não se segue daí que exista um inconsciente; assim como a existência das sombras não prova a existência de um grande reservatório sombrio de onde procedem todas elas; nem que cada qual arquitete um plano de fuga, hipótese que apenas ocorreria a Peter Pan (quem sabe também a Oscar Wilde), nem que as ditas sombras queiram desafi ar ao duelo seus corpos de origem ou vice-versa, incidente registrado tão-só por Lucky Luke, o caubói que atira mais rápido que a própria sombra. O Grande Reservatório Sombrio, escrito assim, com impressionantes maiúsculas, haveria de ser a noite, ou, melhor dizendo e ainda melhor grafando, a Noite – Nyx, como diziam os gregos, mãe de Lyssa, a loucura. O que contradiz em parte nossa experiência, visto que o melhor momento para se observar a sombra é mesmo de dia e à luz do sol. Assim também os sentidos inconscientes não se apreciam melhor no Inconsciente, pai duplamente presuntivo da mesma loucura – em primeiro lugar, porque a paternidade só se presume; em segundo, porque sua existência mesma, a de um Inconsciente, é pura presunção. Quer lhe chamemos Lyssa, quer psicopatologia, a loucura humana luz ao sol do quotidiano, não pede que se desça pelas mofadas escadarias que levam ao almoxarifado do inconsciente. A afi rmação de que existe um aparelho psíquico inconsciente, outra versão do grande reservatório sombrio, não decorre por necessidade da admissão de haver sentidos inconscientes, longe disso, sendo antes uma hipótese a mais, até certo ponto independente das descobertas de tais sentidos; hipótese essa que urge demonstrar quem nela ponha fé, caso contrário a ser descartada, ainda que provisoriamente, por excedente ou supranumerária. Causas não se multiplicam sem necessidade, já afi rmara Ockham, embora o dissesse em latim, que soa melhor e mais convence. No caso, diferentes tipos de efeitos inconscientes são notórios no coração da fala, mas sobre a respectiva causa, quanto à natureza de um hipotético aparelho psicológico gerador, quase nada de positivo permite a clínica afi rmar – só entrando em conjecturas, que, como se sabe, nunca é recomendável misturar com interpretações, que invariavelmente as provariam. Muito mais em nosso caso que no da física, “o fenômeno é absolutamente inseparável das condições de sua detecção, é pela detecção que ele deve ser caracterizado”, como lembra Bachelard [1]. E se a detecção dos sentidos inconscientes só pode ser clínica e interpretativa, o mesmo não se pode dizer do aparelho inconsciente: que sessão o revela? Numa palavra, acreditar na unidade substancial do inconsciente torna as coisas mais fáceis para ensinar-se a clínica ou praticá-la sem maior esforço crítico, mas dela com certeza não procede. Ou, em meia palavra: o inconsciente é o ato de descoberta do inconsciente, enquanto a teoria do inconsciente é a ata desse descobrimento.

Aquele que age sabe via de regra de seus motivos e dos fins perseguidos pela ação, ignorando apenas a lógica de sua produção e as harmonias e contrapontos que sustentam sua melodia. Cada vez que um grupo de jovens passa à ação rebelde, por exemplo, naquilo que caracteriza a militância política ou o simples inconformismo, jamais falta a voz contemporizadora de algum analista a garantir que seu objetivo é equívoco – o que é fato, porque todos os objetivos inevitavelmente o são –, para a seguir relevar- nos o objetivo verdadeiro: alguma sorte de variação sobre o tema edipiano, temperado, por tratar-se de evento coletivo, com uma pitada de horda primitiva, rivalidade com o pai ou com os irmãos, posse das mulheres, ou, por fi m, revolta contra o estabelecido, que aliás é o que já sabíamos desde o início, não carecendo da ingrata labuta do intérprete, pois de revolta se tratava. O que era claro – eles revoltam-se por estarem revoltados – fi ca pois obscuro. E não obscurecido por uma sombra informe qualquer, mas por uma das formas platônicas da psicanálise corrente – seria mais exato dizer plutônicas, como as rochas que emergem da litosfera, forma essa retirada no caso das profundezas tectônicas do Grande Reservatório Sombrio em que o deus Plutão converteu o inconsciente. Quase nunca a gente se dá ao trabalho de interpretar o evento seguindo uma análise ordenada pelo método; máxime porque, em tal circunstância, seria quase certo resultar disso um inconsciente peculiar, exemplar único, quiçá irrepetível, inapropriado a incluir-se em qualquer uma das nossas mais prezadas teorias.

Cada uma das psicanálises clínicas ou teóricas de Freud, como cada uma daquelas que conduzimos nós, seus pósteros e seguidores, cria e descobre inconscientes que não podem ser reduzidos a um só conjunto, sem que se perpetre alguma violência epistemológica. A resistência a aceitar essa elementar verdade por parte de certos analistas refugia-se em sofi smas, dos quais o mais encontradiço nas discussões psicanalíticas e acadêmicas não honra o douto título de quem o enuncia, seja professor, seja analista; a saber, que constituindo tal ou qual análise um novo inconsciente, este ultrapassa o acervo freudiano – por nele ainda não estar incluído, o que é óbvio –, signifi cando isso, nem mais, nem menos, que o autor em causa considera Freud ultrapassado. Ora, a diferença entre ultrapassar e estar ultrapassado é bastante nítida, e sua confusão decorre de um uso lingüístico popular, elevado a argumento refutatório: fulano está ultrapassado, como a dizer que ele já não serve para nada, que já não é mister prestar-lhe ouvidos, que já era. Uma ambigüidade verbal apenas e das mais vulgares, sem grandes repercussões judicativas, uma vez que tendo sido nosso carro ultrapassado numa estrada, nem por isso o julgamos ultrapassado a ponto de correr à loja para trocá-lo por um novo. Mas é preciso saber conformar-se com tais conclusões inopinadas e estólidas, mesmo nas discussões que se pretendem muito responsáveis, pois a paixão científi ca, aceitemos a predicação de aparência contraditória, não é menos apaixonada que a política e a amorosa, valendo-se como estas de argumentos extremos, quando não de clamorosas falácias ou de reles xingação.

Esse gênero de equívoco por afirmação excessiva – os sentidos inconscientes têm por causa uma espécie de consciência inconsciente – não constitui exceção, sendo antes de regra entre nós psicanalistas. O emprego que fazemos de cada uma de nossas teorias ou de seus conceitos quase sempre esconde no fundo alguma descoberta muito legítima, desenterrada a custo da vala comum das idéias ditas, por isso mesmo, de senso comum, só para ser outra vez coberta de terra conceitual, que é como quem diz de inaceitáveis reifi cações, de generalizações injustificadas, de apoio em imagens e metáforas primárias para facilitar a intuição. Isso faz com que nos debates epistemológicos dos analistas um terço do que se diz não se alcance compreender em absoluto, que outro terço o compreenda cada qual à sua maneira e o terço fi nal, que este sim se compreende e se partilha, esteja simplesmente errado. O problema maior da mixórdia teórico-epistemológica que se instalou não é contudo haver reduzido os conceitos a seus nomes de batismo – inconsciente, Eros e Tânatos, identifi cação projetiva, repressão etc. –, desvinculando-os do contexto de sua invenção, descoberta ou detecção, com grave prejuízo do corpo teórico; um pouco, digamos, como o nome que se grava na campa onde repousa em santa paz o corpo do falecido – ainda que a imagem possa repugnar os partidários de ingleses e franceses, seguros que estão de que tais procedimentos escusos concernem exclusivamente à escola vizinha. O problema, dizíamos, não é a reifi cação em si, mas o fato de ela oferecer ao espírito algumas certezas fáceis, saciando-lhe o apetite e desviando-o de novos empreendimentos e investigações. Seja por inabalável certeza, nos grupos escolásticos, seja pelo enfado terminal com respeito às teorias existentes entre os clínicos, que bem sintetiza a conhecida declaração: eu sou clínico, teoria não me interessa. Ao que retrucarão anglófi los e francófilos que o terminal enfado é de nossa culpa, culpa de nossa ignorância e mau entendimento da real profundidade de seus respectivos pensamentos, razão última de havermos pretendido lançar ao mar a nave da psicanálise brasileira, contra todas as adversidades, intempéries e monstros lendários, e que só por maldade enfi m transpusemos o estreito de Messina, lar dos homéricos monstros Cila e Caribdes, ao hoje pacato canal da Mancha, escolhendo entre as escolas oponentes o caminho mais difícil para a psicanálise pátria – na melhor das hipóteses terceira margem, coisa de nossas letras, de valor suspeito por conseguinte.

No entanto, falando francamente, não há meio seguro de fazer crer nas teorias um pensador teórico. Isso porque ele próprio também as cria de quando em vez e conhece, por conseguinte, quão raso as teorias costumam deitar suas raízes. Quem não cria crê, é fato assaz comprovado pela experiência, e assim se espera que continue a ser, alguém sempre deixando de criar para poder acreditar. Se pessoa alguma cresse na teoria, aonde iríamos parar? Por sorte, não são muitos os teóricos de raiz, na Psicanálise, de longe ultrapassados, nos dois sentidos do termo e da estrada, pelos teóricos de ramo, comentadores eruditos ou simples práticos. Tratando-se de uma ciência nova, nem sequer ciência ainda, mas ciência em construção, podemos em sã consciência restringir a aplicação do nome de pensador àqueles que desceram às origens da idéia psicanalítica, que questionaram a natureza desse conhecimento, escavando sua pedra fundamental, e, por meio da crítica mais importuna e execrável, dela conseguiram tirar leite de pedra, como reza o dito. Vale traduzir, antes que se pense estarmos desdenhando o valor da obra edifi cada, que esses poucos souberam ordenhar a pedra fundamental dos alicerces, pedra metodológica é escusado acrescentar, de forma a fazer brotar das pétreas raízes do edifício teórico algum suco nutritivo; se leite, nada garante que se afi rme, sendo somente força de expressão. Leite, linfa, episteme, método ou outro qualquer nutriente, que a seu tempo os demais se encarregarão de pasteurizar, segundo a praxe consensual estabelecida. Por felicidade, como dizíamos, não são tantos os autores de raiz capazes de abalar a fé dos práticos, um punhado no máximo, nem sua obra consegue contagiar por muito tempo.

Quando um daqueles poucos afi rma, por exemplo, que os princípios de Freud se encaixam na dialética da consciência de si, tal como se realiza de Sócrates a Hegel [2]– pensamento profundo, mas notório exagero quanto à intenção de nosso fundador, que seria o primeiro a desaboná- lo –, não pretendia decerto fazer crer que os encontrou no texto, palavra por palavra, mas sim que os ordenhou das fundações metodológicas, usando suas próprias mãos, ou pelo menos os apêndices críticos que fazem as vezes de mão no trabalho intelectual de ordenha. E, se não é para pôr a perder a fé alheia, em Freud e em si mesmo, uma vez que os ditos princípios de qualquer modo não estão visíveis, por que razão assim se comporta o autor? Concebivelmente, já que não lhe podemos ir perguntar, para dar novo começo à conhecida história de nossa disciplina, a qual já vinha desembocando àquela altura em doutrina teórica e repetição clínica – concebivelmente, repitamos, não por maligno espírito de contradição é que o faz, muito menos por desdém ou menoscabo da história, mas por respeito à sua potencialidade heurística. Numa palavra, ele soube ir ao fundo com um sorriso nos lábios, mesmo que não tão ao fundo nem com sufi ciente ironia que o protegessem de ofi ciar o consórcio putativo entre Freud e Hegel, daqueles em que não se pergunta como nos demais casamentos se alguém se opõe ou que para sempre se cale, por temor ao escândalo provável – além de esponsais mais efêmeros com a lingüística, fenomenologia, estruturalismo, topologia etc. Num Freud de índole hegeliana, a metapsicologia seria ainda metafísica, mesmo que em consumação dialética, tal como no assassino respeitoso da filosofia (a elegante expressão é de Châtelet [3]), e, não sejamos ingênuos, dentro dos departamentos de fi losofi a não chegaria a produzir uma subversão do sujeito, quando muito uma trepidação do objeto. Enquanto que a título de fantasia científi ca declarada, a metapsicologia freudiana desfere um machadiano piparote no nariz da Ciência, consistente em converter método em ruptura e conceito em vórtice. Quanto à fi losofi a, reafi rma então a opinião da Gaia Ciência: um mal-entendido do corpo, precisamente por não considerar que só se instaura o humano na transcendência da natureza, mas em seu miolo contraditório. O fato é que se fôssemos dirigir alguma crítica ao mestre Lacan, não lhe censuraríamos haver pretendido transformar Freud em fi lósofo da existência, como Kojève o fi zera com Hegel, mas se haver contentado em ser o Kojève de Freud, quando estava mais para seu Marx. Ainda assim, há que convir, essa manobra representou um ganho concreto com respeito ao romantismo da ideologia psicanalítica então vigente, à sua lei do coração – para não sairmos da referência – que proclamava: o mundo é mau porque nele não me sinto bem, adaptemo-lo.

Depois, claro está, as coisas voltam a seu eixo. Aqueles práticos que não tiveram perturbada sua doutrina ignoram a perturbação causada por Lacan e seguem repetindo a sério as interpretações de ofício; enquanto a legião dos que se deixaram perturbar transforma em doutrina a perturbação e repete o modelo novo, com invejável pertinácia. E sempre haverá a decúria dos teóricos de ramo ou a centúria dos comentadores – dois contingentes a que falta o invejável dom da amaurose teórica do prático –, para moderar o teórico de raiz, é duro reconhecer, aparando arestas, ou, como seria mais apropriado ao caso, podando as raízes, até conseguir misturar seus linfáticos sucos epistemológicos, enxertar os troncos, trançar os galhos, terminando por transformar num só bonsai, mimoso mas doméstico, as árvores copadas de nosso bosque. Um inconsciente miniaturizado, cujas formações são até conhecidas – quem diria? –, em vez da selva de nossos inconscientes relativos, é o que sobra do esforço de confl uência e consenso da comunidade científi ca posto em marcha nos últimos anos no âmbito da IPA.

III. A questão

Entre todas as perguntas que fi cam sepultadas pela camada de rocha sedimentar da teoria do aparelho psíquico, já que nos acomodamos na geologia metafórica com a menção às rochas plutônicas, há uma pelo menos que é puro escândalo. É a pergunta – quem? A pergunta de Freud. Por exemplo: quem fez o que foi feito? Se já temos a resposta na ponta da língua, não sendo o eu consciente, o culpado foi o inconsciente; então, como fi cou dito acima, a certeza fácil sacia e não há mais por que perguntar – quem? Notese que tivemos de desperdiçar algumas páginas preciosas, contra todas as regras do ofício teórico que mandam ir direto ao ponto, só para preparar o clima deste modesto, talvez mesquinho, clímax interrogativo: a pergunta – quem? Do contrário não se entenderia nada. Por que perguntar quando já se conhece a resposta? Alguma teoria do sujeito, a primeira ou a segunda tópica, o sujeito barrado lacaniano, os objetos internos dos kleinianos, o espaço transicional subjetivante de Winnicott? Todos e nenhum deles será a resposta, evidentemente, pois em A infância de Adão a pergunta está sendo feita de novo. É só isso.

Quem mesmo? Nem você, nem ele, nem eu, ilusões individuais, nem muito menos nós, ilusão grupal. O sujeito em questão, título celebérrimo que mal alcançamos compreender, é aqui só o do autor de uma ação. Acontece, porém, que os sujeitos em questão, nos contos desse livrinho, constituem de fato uma questão, vejam só. E mais. Uma questão irrespondível, como toda questão que se preza.

Pondo de parte a forma de uso entre fi lósofos e psicanalistas, que consiste em responder primeiro, para só depois exemplifi car a resposta teórica com alguma situação da vida concreta (procedimento que na Límbia se considera de mau gosto, além de impraticável), estamos condenados a ler cada história de fi cção como se fosse um acontecimento regido por sua própria lógica de concepção e, pior, psicanaliticamente concebido, ao pé da letra. Como casos clínicos.

O que se poderia justifi car, mas sem grande convicção, argumentando que a Psicanálise distingue-se da maioria das ciências pelo uso desabusado da ficção, uso que raramente se confessa, além do mais. Novamente teríamos de nos deparar com o mesmo gênero de objeção que se faz acima ao autor que decide ver em Freud um fi lósofo dialético, quando decidimos, nós mesmos, a nele ver um fi ccionista, tanto nos casos, quanto nas teorias. Vale repetir a objeção: será verdade? Não, não é verdade, lá como cá; bastaria perguntar ao interessado, a Freud, caso tivéssemos valor para tanto e, no mínimo, igual desapego à vida. Isso não se diz só por ser preciso descer aos infernos ou subir aos céus para formular- lhe a questão, mas, muito pior, pelo risco de ouvir a resposta, acompanhada de pronta defenestração. Que a Psicanálise seja uma fi cção, aí está uma fi cção de verdade, das de arrepiar. Dá outro começo à conhecida história da disciplina e oferece-lhe novo seguimento, mas não com o fi to de abalar a fé alheia, nem por amor à contradição. Nem tampouco para calar qualquer teórico, os dos ramos, que os de raiz não se deixariam calar e, acima de tudo, sendo estes tão raros, nem por sonhos nós os desejaríamos ver calados. Por isso, melhor restringirmos a justifi cativa a um mínimo e seu lugar a uma utopia: em Límbia, na cercania anular da realidade consensual, dizemos que a Psicanálise é ficção.

Das histórias de A infância de Adão, creio que uma das poucas coisas que se pode afi rmar com segurança é que o sujeito não está propriamente em questão, mas, ao contrário, a questão é o autêntico sujeito da ação. Algo se faz; não há por que duvidar das narrativas, mas sim dos sujeitos envolvidos, suspeitíssimos todos eles, quem sabe só aparentes, aparentes como a própria realidade. Compreende-se facilmente que a realidade seja aparência, quando o é para um sujeito psicológico, um percebedor incerto e inseguro, falível como todos enfi m. Realidade subjetiva chamamos a isso, em condições normais, com seu correlato: cada cabeça, uma sentença – limpa expressão de nossa língua, deturpada lamentavelmente pela guilhotina da Revolução Francesa. Contudo, se falta a interpretação subjetiva de um sujeito concreto, ainda que errático, a realidade tornase subjetiva num sentido menos normal, que já não se compreende com a mesma facilidade. Ela, a realidade, subjetiva-se por si mesma, as coisas adoecem de humanidade, que é uma grave doença, e as gentes que comparecem nos contos são também realidades do mesmo gênero, sem tirar nem pôr: coisas e pessoas, nessas histórias, são quase intercambiáveis, um peão de xadrez pode ser tão cúmplice de um atentado como a esposa do enxadrista, e esta última não será mais gente que a dama que se perdeu no tabuleiro. Tão difícil de compreender é tal situação que tivemos de lançar mão de histórias inventadas, para não deixar dúvidas de que acreditamos de fato que a realidade seja assim, exatamente assim, intencional e deveras mal intencionada. Sempre se pode acusar o autor de haver inventado os contos com o propósito de confundir, ou de haver perdido a mão literária, esquecendo um detalhe, omitindo um fato, trocando inadvertidamente o nome de alguma personagem, escrevendo mal, em suma. Pensando assim, pondo nele a responsabilidade, talvez se consiga ler as histórias até o fi m, com a consciência limpa de quem sabe ser alheio o pecado de complicar o que é fácil. A alternativa seria pior: admitir que esse regime, em que a questão é o verdadeiro sujeito, constitui a própria clínica psicanalítica, e que o livro constitui um manual de clínica, ainda que de mentira. Mentira produtiva que, através de nossa clínica, revela a realidade do mundo que deu à luz a Psicanálise, o nosso, em que a realidade já declarou ser fantástica.

IV. A ficção

A última história do livro, A recompensa merecida, esclarece o mistério, se mistério havia. A infância de Adão é fruto da colaboração bastante improvável de um escritor com seu crítico e perseguidor. Sozinho, contudo, nenhum dos dois a poderia ter escrito, e os dois jamais a escreveriam a quatro mãos. Tampouco o conto mencionado em sua correspondência parece ser A infância de Adão que figura no livro, cem páginas antes. Para o leitor – e isto declaro como leitor, até quem sabe como crítico, nunca como autor –, o desfecho da correspondência não é apenas surpreendente, como deve ser a de um conto de mistério, mas paradoxal ou, para tudo resumir numa palavra simples, impossível.

Voltemos, porém, ao conto. Carla, mestranda em literatura, escolhe estudar em sua dissertação certo crítico recém-falecido, de nome Cândido Abelardo, um tipo esforçado, assíduo nas letras, mas nada criativo e ainda menos interessante. Um chato, ao que parece. Sobrando-lhe tempo ao fi m da redação, põe-se a remexer um pouco mais e descobre a complicada relação que tinha ele com o autor mais criativo de seu tempo e país, um certo Caetano. Abelardo parece ser a contraparte acadêmica de Caetano, ligado a títulos e a prêmios, trabalhando ademais para que este último não os consiga, a fim de manter acesa a chama do gênio. O leitor hesita diante de sua intuição generosa. Seria um mártir dedicado à causa da invenção literária, que sacrifi cara a própria existência para fazer o outro criar, desviando-o das ambições de sucesso e reconhecimento? A última carta suspende a crença em resposta tão romântica: exatamente como na vida, não somos capazes de decidir quem é um e quem é o outro. Mesmo a blasfema epígrafe que, juntando criacionismo e evolução darwiniana, conclui sensatamente ser o Criador aparentado aos primatas – E o Senhor fez o homem à imagem e semelhança dos macacos, os quais, em vista disso, só se podiam parecer com Ele – só alimenta dúvidas no espírito do leitor e fá-lo retroceder na leitura, não só para o conto anterior chamado A infância de Adão, teológico ao extremo, como também a um outro intitulado O escorpião e a tartaruga, que tampouco deixa de ter seu ranço a teologia – restando ver qual dos dois, Abelardo ou Caetano, seria o escorpião, qual a tartaruga, e onde fica a divindade. Pois a parceria Abelardo e Caetano, remetendo embora a Caim e Abel, também constitui típico exemplo de um escorpião nas costas largas da tartaruga.

Na venenosa história precedente, três cientistas descobrem o impossível, cada qual em seu próprio campo de estudo. Uma forma de propulsão relativística absurda, dita Propulsão Referencial, pois depende quase só da posição do observador, o segredo da imortalidade, o P78, ou quase isto, e a única fi losofi a merecedora do nome, a cura da acomodação humana às próprias idéias, o Paradoxo Invertido. Não obstante, quem foi mesmo que criou esse despautério todo? A suspeita recai sobre o diretor do projeto P. – que, ao contrário do que parece, não é P. de Projeto, mas de Piltdown, por ser o Prof. Nigrius afi cionado àquela impostura inglesa, disfarçada uns vinte anos pelo British Museum –, um especialista em fazer com que a mentira produza verdades, que também parece ter alguma afi nidade com o deus criador. Se parente ou contraparente, da família do Altíssimo ou da do Lá-de-baixo, é o que resta ver. Ele fornece pistas falsas de caminhos promissores, joga com a motivação emocional dos três jovens pesquisadores, ódio e amor, inveja e curiosidade, espicaça-os quase até a loucura. Até ao menos conseguir o que quer, o impossível. Contudo, quando os três projetos chegam a bom termo, descobre-se que tendem a um só propósito, que cada um vale pelos outros dois, servindo o conjunto a libertar a humanidade de sua suicida condição num planeta superlotado. Deus ou diabo? O fato é que aquela velha história do escorpião suicida, que ferroa o sapo por natureza, encontra seu erro necessário na grossa carapaça de uma tartaruga, lá fi cando humilhantemente presa a peçonhenta criatura. Quem manda repetir o dito clássico com o bicho errado? Mil perdões, madame…

Até aqui, como se constata, estamos diante de procedimentos analíticos bem característicos. A mentira partejando a verdade, propriedade de qualquer interpretação psicanalítica, o estímulo transferencial a realizar o impossível, o mergulho na consciência pelo avesso, a indecidibilidade prática do sujeito psíquico, as relações humanas mais embrulhadas que profundas, selo de legitimidade do sujeito psicanalítico, constituído por posições, não um pote de afetos, como julgam os espíritos simples, o duplo em ação sub-reptícia de desdobramento do eu etc. Um escorpião ferrando a dura carapaça da tartaruga, sem a matar, mas sem poder soltar-se, recorda ademais a máxima nietzscheana sobre aquilo que, não matando, fortalece. A criação, numa história como na outra, vem de um inconsciente recíproco, outro nome do destino quando visto à luz da Psicanálise, que a gente tem o costume de personifi car em deus.

Os temas psicanalíticos dessas duas histórias comparecem igualmente noutras, acrescentandose, multiplicando-se. O paradoxo da realidade psíquica, reverso da questão do sujeito, é assunto de Zêuxis, assim como de A realidade indistinguível. Na primeira história, revisitamos psicanaliticamente o conhecido episódio em que o pintor grego, Zêuxis, conquanto houvesse tão bem retratado a cesta de uvas carregada por um menino ao ponto de as aves do céu tentarem bicá-las, não venceu o concurso de realismo pictórico: argüiram-lhe que se a pintura fosse de fato tão real, os pássaros não desceriam por temor ao menino… Assim também a representação na clínica psicanalítica: quando perfeita, vira a coisa representada e pede nova representação. A própria clínica de Freud escorrega na casca de banana do paradoxo de Zêuxis, como ele mesmo não deixa de intuir: nunca estamos em condições de decidir se o desejo furta-se à representação por desinteresse ou por temor.

Quem é quem? Em A realidade indistinguível, um pintor tenta superar o paradoxo acima, com um auto-retrato absolutamente realista, o mais realista que se possa imaginar, que de longe porá no chinelo o pobre Zêuxis. Tão perfeito que o exclui do quadro – quem cabe por inteiro no próprio campo visual? –, a menos que fôssemos dar ouvidos a certos boatos fantasiosos que sustentam estar ainda hoje o pintor, Lukas van de Velde, procurando repintar-se de dentro para fora, para escapar de sua própria obra. Hipótese pouco plausível no mundo das artes, convenhamos, que só se verifi ca mesmo na situação analítica, lugar onde, perdidos na representação transferencial de um campo, tentamos recuperar-nos de dentro para fora, rompendo-o e irrompendo.

De uma forma ou de outra, todas as histórias deste livro tratam de saber quem fez o que foi feito. Exemplar, sobre esse aspecto, é Morphée garde mes rêves, um conto policial escrito segundo as convenções do gênero – que o autor infelizmente domina mal – e dentro do estilo é bom demais para ser verdade. Uma aula prática de criminalística, ilustrada por um crime perfeito, ao que parece. E, como se não bastasse o esforço didático do Diretor Geral de Polícia em educar sua dedicada discípula, o investigador encarregado é um jovem genial (também ao que parece), percorrendo o labirinto problemático do inconsciente criminal. Existirá afi nal o inconsciente delituoso ou será, como tantas vezes se verifi ca com aquele vulgar do cidadão honesto, um artefato de técnica? Não antecipamos a resposta, porque ao fi m e ao cabo estamos falando de uma história de mistério, cujo suspense não se deve desmanchar prematuramente. Só que o culpado acaba por denunciar-se por sua própria esperteza, tal como se dá nas novelas policiais, mesmo que, como na vida real, isso não faça grande diferença no curso dos acontecimentos. Freud, a propósito, inventou a análise inspirado também na investigação detetivesca. O método indiciário, como mostra Guinzburg [4], reúne Freud, Conan Doyle e outros médicos no mesmo rol dos farejadores, peculiaridade que haveria de ser esquecida pelo sentimentalismo da massa dos analistas, dedicados a transmitir tolerância, espontaneidade, amor e sucesso social, coisas raras de encontrar-se numa investigação policial.

Quem pergunta por quem fez jamais pode estar alheio ao problema do modo de produção daquilo que foi feito. Os Três esboços para inventar a realidade agregam, à questão do sujeito que faz, a do processo de o fazer. Como se cria uma personagem, como se escreve um livro de sucesso – se o soubéssemos nós, teríamos escrito um best-seller, em vez deste livrinho que ninguém lê nem muito menos confessa que leu –, por fi m, como se cria uma obra de arte plástica? A triste história de um colunista de xadrez que inventa uma partida, tendo de jogá-la depois contra o primeiro campeão mundial – mas com as cores invertidas. A tradução da tradução da tradução de um livro jamais escrito, receita de sucesso. Um objeto pendurado num museu, a respeito do qual se pergunta quem foi o artista: a involuntária criadora, o grande pintor, Duchamp, vítima da treta, o inescrupuloso marchand, ou simplesmente o sujeito que o pendurou.

Duas ficções discutem o problema dos sentimentos e de como escapar à convenção psicanalítica que se limita a dizer mal dos homens, sempre oscilando entre o mal e o pior, entre ciúme e inveja, entre depressão e melancolia, entre desrazão e paranóia. Bondade e Inveja envergonhada abordam o outro lado, não o sombrio, mas o radioso, a bondade dos fortes, como a da prática senhora que, tendo adotado a fi lha, vê que é mais simples adotar também a neta, e a opinião de Nietzsche sobre a positividade franca da inveja helênica. Outras ainda discutem a história da Psicanálise – nossa história, sim, mas do ângulo correto, ousaria dizer sem o menor laivo de modéstia. E qual ângulo é esse? Se a psicanálise que existe é tão-somente o protótipo das psicanálises possíveis, como quer a Teoria dos Campos, então é ao ponto de vista do futuro que devemos recorrer a fi m de pôr nosso presente em perspectiva, coisa que se faz nos dois pequenos ensaios batizados: De nossos predecessores. Também aqui, como sempre, está em questão o sujeito. Praticado o contorno do tempo, podemos entender quem fez o malfeito que hoje experimentamos. Nenhum malfeitor senão nós mesmos, é claro.

Por último, nesta resenha imprecisa, tanto o lugar efetivo da ficção em Freud, A ficção freudiana, quanto o lugar utópico onde habita a Psicanálise desde Freud, Notícia de Límbia, os dois primeiros capítulos do livro de natureza crítica, realizam-se no conto central, A infância de Adão. A infância de Adão passa-se em Límbia, como tudo o mais. E é uma ficção freudiana. Deus fala a Adão, o que haverá de mais ortodoxo? Aí porém surgem os problemas, e não são poucos. Em que língua? Como nos mostram a poesia ou a prosa em obras tais que a de J. Joyce e G. Rosa, para não falar da psicanálise clínica, a língua recria-se de ocasião, mesmo que sob alto preço. Numa ocasião ímpar, ou mesmo inaugural, como essa, em pleno zôo original, a língua adâmica que está ainda a ser criada tropeça a cada instante em sua origem etimológica arcaica, equivoca-se de idioma, não se consegue fi xar na denotação dicionarizada, escorregando em paronomásias, aliterações, neologismos bárbaros, e mais toda sorte de agônicas figuras de linguagem, atos falhos, citações obscuras ou equivocadas, plágios ignóbeis cometidos por antecipação ou anacronismo. Em qual tempo, em qual lugar? Lá, no jardim do Éden, mas também aqui, num zoológico (inspirado vagamente pelo zôo de Berlim), no futuro e na eternidade, que é, como sabemos, uma doença do tempo. E quem? Deus é deus, o deus da palavra, aquele que cria ao pronunciar, dictum factum, como se dirá nalguma daquelas línguas futuras que lhe serão consagradas, cria a luz no primeiro dia, pelo visto bem escuro e pouco dia até então, e jamais pode voltar atrás no dito e feito: está condenado a ter razão.

Não o escutamos – como poderíamos, sem saber se o homem já O criou? –, mas inteiramo- nos de sua palavra pelas respostas de Adão. Assim, descobrimos que ele se pretende pai do homem, sendo Adão um qualquer e todos ao mesmo tempo; que se quer personagem principal da história, dita por isto sagrada, e que procura trazer sua criatura ao bom senso, desiludindo- o de lembrar uma infância que não houve, tendo sido criado adulto. Adão resiste, como numa análise faria o paciente que suspeita haver criado transferencialmente seu próprio analista, bem como sua infância inconsciente, pelo mesmo processo dialético que carece de síntese outra que a cura. Como o inconsciente, a infância de Adão há por não existir. Deus quer curar Adão de suas lembranças encobridoras, Adão quer curar deus de sua paranóia interpretativa; quem vencerá a contenda? O duelo é áspero e cortantes, os argumentos, reproduzindo uma psicanálise em que só alcança a vitória racional o primeiro que renuncia a ter razão [5]. Progressões e regressões sucedem-se ao sabor das rupturas de campo, até o fi m, até a alta, que consiste psiquiatricamente em trancar a porta do hospício pelo lado de fora.

Porém, como no coroamento de cada análise freudiana, sobram restos, as prototeorias a que ele viria a chamar de construções, ao fim de sua obra. Em A infância de Adão, tais teorias provisórias figuram como interpolações, como pausas para a representação, que só fazem sentido quando incidem sobre a análise em curso, teorias interpretantes. Reunidas num tomo a parte a história da torre de Babel, do Único e verdadeiro Deus, do feminismo, dos hieróglifos etc., perdendo seu caráter essencialmente crítico, irônico, heurístico, o leitor logo desconfi a que não seriam mais do que a própria doutrina canônica contra a qual foram disparadas. Assim como a teoria freudiana, quando unifi cada na abstração dos comentaristas sérios, converte-se na doutrina que deveria alvejar e fica sem seus erros necessários, não pode mais ser resgatada pela ironia, vê sua metapsicologia convertida num avatar extemporâneo do sistema metafísico, perde sua ironia e perde seus ironistas socráticos. A análise do homem, empreendida em A infância de Adão, não é em suma uma análise existencial, não é um empreendimento filosófico, não é literatura experimental, nem sequer é uma súmula da Psicanálise, mesmo quando reúna seus principais conceitos. É só uma psicanálise, o retrato falado do que imaginamos ser uma psicanálise vista de dentro por seu dâimon, o riso humano de um deus agnóstico, descrente de si, mas fi el à ironia curativa.

A infância de Adão pode ser lido por prazer como qualquer série de contos, é o que se espera. Mas sua dimensão refl exiva mais profunda já não é tão fácil de assimilar, pois sua existência deve primeiro ser aceita. Se, como pensamos, é de longe preferível reinventar constantemente a Psicanálise a inventar um Freud que sempre venha a ter razão, este pequeno livro é um projeto antecipatório, cujo tempo pode ou não chegar algum dia. Este, claro, não é ainda seu tempo; mas talvez, apesar de tudo, a Psicanálise chegue a sintetizar ciência e fi cção. Diferentemente da paixão programática do jovem Abelardo – ou teria sido Caetano? –, realizando este pequeno livro um programa intelectual em vez de propô-lo, como compete à fi cção, pode ser lido mesmo hoje como uma coleção de teorias levadas ao absurdo, ou como sugestão teórica daquilo que no futuro há de resultar da crítica às psicanálises contemporâneas. No primeiro caso, com a torturada suspeita do fi el, obcecado em decifrar onde se esconde a ameaça à sua fé; no segundo, com a bonomia da descrença, que espera o dia longínquo em que, rindo por último, há de rir melhor.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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