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Resumo
Resenha de Mireille Dottin-Orsini, A mulher que eles chamavam de fatal: textos e imagens da misoginia fi n-de- siécle, Rio de Janeiro, Rocco, 1996, 371p.


Autor(es)
Renata Udler Cromberg
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora pelo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora dos cursos de especialização de Psicopatologia e Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e Teoria Psicanalítica da Pontifíca Universidade Católica de São Paulo. Autora dos livros Cena Incestuosa e Paranóia, da coleção Clínica Psicanlítica da Editora Casa do Psicólogo.

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 LEITURA

Misoginia e ginolatria no discurso masculino

Renata Udler Cromberg


Resenha de Mireille Dottin-Orsini, A mulher que eles chamavam de fatal: textos e imagens da misoginia fi n-de- siécle, Rio de Janeiro, Rocco, 1996, 371p.

Margareth Hilferding e Sabina Spielrein foram as duas primeiras e únicas psicanalistas associadas à Sociedade Psicanalítica de Viena a freqüentar suas reuniões em 1911. Seus textos de apresentação, respectivamente As bases do amor materno e A destruição como causa do devir tiveram, na época, uma receptividade no mínimo neutra. Este trabalho pioneiro de médicas mulheres psicanalistas que falava de aspectos do feminino e apresentava uma maternidade desmistifi cada sofreu um soterramento histórico que merece ser entendido em suas múltiplas camadas. Uma delas diz respeito à denegação do feminino na história da psicanálise e sua relação com a construção da centralidade do complexo de castração. O fato de que a mulher é apenas a justifi cação inicial da elaboração do mito do assassinato do pai primitivo e a centralidade que esse mito ocupa no corpo conceitual psicanalítico nos levam a pensar o que era a mulher no fi nal do século XIX e início do xx com todas as ressonâncias fantasmáticas das angústias masculinas, num tempo em que as mulheres apenas começavam a ter um estatuto de humanidade e cidadania para além de seus lugares de esposas, mães e freqüentadoras de igreja. Mireille Dottin-Orsini, especialista em arte e literatura francesa do fi n-de-siècle, em seu livro A mulher que eles chamavam de fatal, colocará em dúvida as afi rmações dessa época de ter-se reconhecido enfi m uma sexualidade da mulher. Qual sexualidade? Há uma confusão entre misoginia e ginolatria num amálgama característico, presente na cultura do fi nal do século XIX.

Os comentaristas que abordam a arte do fi nal do século passado falam de uma panfeminização obsessiva. Dottin-Orsini nos diz que nas representações femininas do século xix o sarcasmo e o horror se equivalem. O corpo da mulher servia para tudo e seu antônimo: Natureza e Cultura, Luxúria e Castidade. Antítese banal: a beleza e a morte. Na medida em que a mulher é um ser à parte, quase divinizado, a carniça feminina é um espetáculo perturbador, objeto de horror e júbilo criado pelo discurso masculino. A mulher-fatalcarniça – sua fi siologia feminina e seu odor de sangue – é também uma alegoria da sífi lis, mal fin-de-siècle por excelência. Outras matérias repulsivas se tornaram metáforas da feminilidade: a lama, o lodo, a imundície. Como prostituta a mulher é bela por fora e suja por dentro.

No entanto, a imagem negativa e atroz do ventre podre supõe um sonho mais ambíguo que o desejo de morte ou o movimento de repulsa mais ou menos higiênico. Lama, sujeira e lixo são – como o feminino – objeto de fascinações regressivas, que ainda no século xix reforçam as antigas teorias científi cas que lhes atribuíam virtudes terapêuticas. Nele se mistura uma reverência inquieta diante do aspecto fecundo da podridão feminina e sua terrível força vital. Para se defender da mulher, nada melhor que proclamar e declinar, em todos os tons e em todas as formas, sua essencial hediondez – e com constância. O fantasma masculino ampliase, girando em torno de um feminino concebido como magia ou trapaça, pressentindo ali uma armadilha para os não-iniciados. A sofi sticação dos apetrechos femininos, por seu duplo aspecto de couraça inexpugnável e de mostruário hipertrofi ado, só faz materializar a ambigüidade da imagem feminina ao olhar masculino. Talvez ela não passe de aparência. Talvez a mulher até mesmo não exista. Nesse caso, os eternos problemas do celibatário, seus sofrimentos, suas adorações também não são nada e ele vacila à beira do abismo do absurdo. Os românticos contemplavam a mulher como um objeto de arte, ou o objeto de arte como uma mulher. Trata-se de espiritualizar o desejo masculino transferido para a obra de arte, e também, no mesmo instante, de erotizar a relação com a tela: o quadro é mulher. A cena em que um celibatário requintado contempla no escuro uma mulher pintada exibe uma terrível solidão masculina.

Salomé, a dançarina que obteve como recompensa a cabeça cortada de São João Batista, é a mulher fatal absoluta com todas as características do feminino perigoso, e Dottin-Orsini talvez seja a maior especialista no estudo da sua presença recorrente nas artes do fi n-de-siècle. A instigadora do crime é a mãe. Esse duo maléfi co – mãe e fi lha – permite lançar o anátema sobre a mulher de todas as idades da vida, as duas fi guras confundidas num mesmo opróbrio. Salomé, que ofereceu à mãe a cabeça do seu inimigo, é uma mulher fatal em botão, o eterno feminino, independente do número de anos. A história sugere uma revanche do corpo contra a palavra, do pecado contra a fé, das pernas contra a cabeça. A cena torna-se o ícone da guerra dos sexos e de sua revoltante conclusão, a mulher corta os Chefes. O prato sugere um canibalismo feminino, uma nutriz às avessas.

Analisando toda a evolução da fi gura de Salomé na pintura, Dottin-Orsini aponta que existe um marco na iconografi a, um momento em que Salomé é reconhecida como imagem do feminino em geral, sem associá-la mais à cabeça cortada de João. “Com essa invenção iconográfi ca (Salomé-sem-cabeça-cortada), começa o mito fin-de-siècle e a era do terror, um sorriso de mulher é sentido espontaneamente como uma sentença de morte para o homem” (p. 132). Aqui é interessante notar como é pela abstração do ato de degolar, substituto da castração, que o sorriso da mulher vira sinal disparador de angústia no homem. Da condução religiosa à ausência de religiosidade, Salomé transforma-se em ícone do feminino como ameaça de morte. Na literatura, o exemplo do católico Charles Buet em sua prosa Salomé (1893) ampliou o problema para saltar da tela para a denúncia do que chamaríamos “a mulher moderna”: “[…] Todas deveriam usar a libré ignominiosa de Salomé, essa cor amarela reservada, na Idade Média, aos judeus, aos carrascos, aos traidores.” (Buet, Charles, La Danceuse, 1870, citado por Dottin-Orsini, p. 123). A cabeça cortada do homem, mesmo subentendida, foi, como a maçã de Eva, a marca do feminino. No campo fechado da guerra dos sexos, Salomé é sempre atual. A exemplar narrativa bíblica sugere que o crime é consubstancial à mulher. Salomé, a mulher, ao mesmo tempo superlativa e sem identidade, que demonstra menos uma vontade pessoal e mais o eterno instinto coletivo da mulher. O retrato de Salomé de cabeça cortada inverte o mito de Salomé.

“A cabeça cortada feminina é um estranho objeto: materializa o conluio entre Salomé e Medusa, faz coincidir o medo do feminino, ferida sangrenta e desejo de punir ou de se defender… A cabeça cortada da mulher é o objeto de horror e fascinação… uma representação pré-freudiana do sexo feminino como imagem da castração temida, a realização de um desejo sarcástico, um desejo de renovar, resumir ou parodiar o mito” (p. 148).

Depois da mulher de cabeça cortada, aparece a mulher de cabeça inútil. O mito de Salomé afi rma que a mulher é um corpo que dança e o homem, uma cabeça, sede do intelecto, do pensamento e do gênio. Essa supremacia do corpo maiúsculo leva ao sonho de belas estátuas truncadas. Vênus decapitadas, como representação da beleza perfeita.

“Nunca uma mulher dirá basta” (p. 160). É esta a visão supliciada da mulher-polvo da literatura fi n-de-siècle. Essa hipersexualização da mulher é uma das afi rmações mais visíveis da bomba que Otto Weiniger publicou em 1903, aos 23 anos, Sexo e caráter; ele suicidou-se pouco depois. Imediatamente a obra foi objeto de controvérsias e ataques, mas seguiu sendo reeditada até 1920 e exerceu efetiva infl uência sobre inúmeros artistas, como Kafka, Kraus, Schönberg, Kokoschka, Strindberg e D. H. Lawrence. O livro reafi rma sistematicamente, apoiando-se na fi losofi a e na ciência, idéias muito antigas, mas amplamente divulgadas durante todo o fi nal do século, o que o faz funcionar como uma lente de aumento dos piores preconceitos da época. Durante muito tempo, para atacá-lo, só se usou o capítulo dedicado aos judeus. Mas o resto da obra, que em princípio trata da diferença sexual, fala do que Weiniger chama de “princípio feminino”, não existente em termos absolutos como tal, mas encontrado em todo ser humano (e, portanto, também no homem) em proporções variáveis, aliado ao masculino: Weiniger erroneamente passa por descobridor da bissexualidade, embora ele esteja envolvido em toda polêmica entre Freud e Fliess sobre essa descoberta. O tratado de Weiniger repousa sobre um horror à carne e uma obsessão do homem como espírito puro, tragicamente dominado pelo desejo sexual. Lutando contra a “feminização” galopante de sua época, o fi nal de Sexo e caráter, profético e suicida, clama pela chegada de um terceiro sexo, “nem homem, nem mulher”, liberado da sexualidade, ignorante da fecundidade, plenamente humano, isto é, para ele, puramente espiritual.

Weiniger aponta ainda o desejo de fusão da mulher com o mundo. Por ser sexual de corpo inteiro, a mulher é constantemente penetrada por tudo. O coito sexual é apenas um particular e mais intenso, já que ela é um ser que pratica o coito o tempo todo com tudo e com todo o seu corpo, podendo ser fecundada de qualquer maneira. Outras fi guras literárias celebram esta bomba sexual permanente. Lilith é apenas uma delas. A gênese simbólica da mulher, interpretada por Remy de Gourmont, concorda exatamente com as conclusões da ciência antropológica, a saber, que a mulher é apenas sexo e inapta para tudo que não seja amor e maternidade. Daí a máxima moral de Émile Zola: “Digam às mães que fi quem com seus fi lhos” (p. 166) – pois, santifi cadas por seu papel, as mães não podem ser confundidas com “as mulheres”.

A hiperestesia sexual atribuída à mulher tem Messalina como arquétipo – a mulher é o ser dos excessos – e, como corolário, as piores desordens: se “ela” não tem homens, há de se tornar histérica; se os tem demais, a mesma coisa; por isso as religiosas enclausuradas e as mulheres da vida, esses dois extremos chamam particularmente a atenção do observador masculino, diz-nos Orsini. Destinada à imensidão de um desejo permanente, mas também à impossibilidade do gozo; uma condenada sexual, uma judia errante do sexo busca, em vão, um prazer que lhe recusaram, e lança-se numa devassidão suicida, sem esperança de encontrá-lo. No entanto, ao mesmo tempo, a mulher fatal é também apresentada como frígida na literatura do fi n-de-siècle. Há a mulher estátua de mármore, insensível, impenetrável e a mulher corpo de gelo, sentimentos de gelo, sendo que tal insensibilidade seria contagiosa, infl igindo ao Homem a humilhação da impotência. Frígida ou ninfômana fi ca-se perdido sobre o prazer da mulher, até se perguntar se ele realmente existe.

Assim, a mulher se torna a amiga dos médicos. Ela é o assunto na cena emblemática, onde um círculo de homens está afastado de mulheres para fumar e falar de mulher, dos órgãos da mulher, das doenças da mulher, com a fi gura do médico em seu centro. O historiador-poeta Michelet dirá que o século xix “será chamado o século das doenças da matriz”. Porém não se tratava apenas de descobri-las, de deplorá-las, de dominá-las: era também um apaixonante assunto que permitia pesquisar as intimidades do feminino e jogar com as ambivalências da repulsa. Orsini dirá que se tem a impressão de que somente o médico podia, além de explicar, falar do corpo da mulher – como se fosse o único mortal a lhe ter acesso. De certa maneira era o único pornógrafo, que podia falar de pederastia e ninfomania. “Trazia para o fantasma masculino um estupendo aval, transformava uma obsessão em verdade científi ca” (p. 222). Os médicos brilhavam nos jantares, mas eram reféns dos homens de letras que torciam seu discurso em proveito próprio. O médico é o exato substituto do padre para a mulher. No tempo que acreditava que tinha uma alma, dependia do padre. Agora que possuía apenas um corpo fremente de nervos ou se imagina ser isso, submete-se ao médico. Padres e médicos pareciam disputar a mulher como se fosse um território: onde um via uma extática, outro via uma histérica.

Doente ou criminosa: parecia só existir escolha entre Michelet e Lombroso, a Salpetrière ou a prisão. “Essa piedade por um ser ontologicamente doente, além de alcançar as delinqüentes e estender-se a todas as mulheres, teve como conseqüência encaminhar para o corpo médico (dotado assim de poder ilimitado), além de subtrair à justiça, um rebanho feminino cuja análise se prometia apaixonante” (p. 227).

Explicar a mulher. É em torno do corpo nu de uma bela mulher que A lição de Anatomia, de Rembrandt, versão 1890, agrupa aqueles senhores em círculo, sérios professores ou jovens neófi tos. Com relação às mulheres vivas tem-se às vezes a impressão de serem consideradas apenas como futuras autopsiadas: poderão assim, devidamente recortadas, confessar seu segredo. “Os escritores chegariam até a inventar a mulher encantada-deser- aberta, aquela que só pedia isso” (p. 229).

Naquilo que afeta diretamente a invenção psicanalítica, encontra-se a grande invenção artística de Charcot, a histeria.

(Ele) Era o homem que sabia o que era o feminino e dividia esse saber, que o clarifi cava, que o codifi - cava para os seus congêneres. A maioria das temíveis características atribuídas à mulher seria contemplada com um termo médico: a insensibilidade tornava-se anestesia, a frigidez, abolição do sentido genérico, a dureza, tetanização, a inconsciência, sonambulismo, a mentira, simulação; a eterna dançarina bíblica seria atacada, pois de Coréia-histérica rítmica ou delírio saltador (p.234).

Tratava-se de buscar o feminino no patológico. Ser mulher era uma doença, uma anomalia, ao passo que o masculino era a norma. Para Charcot, a histeria tem algo de intrinsecamente feminino, pois é uma “Esfi nge”, uma doença invisível, sem lesão exposta; mas também visível demais, espetacular mesmo, já que os talentos teatrais, inerentes à mulher, se exibem com o exagero de sintomas enlouquecidos. A exibição de moças seminuas é sua invenção de glorifi cação ofi cial, pela encenação médica e científi ca do fantasma masculino. Apesar de afirmar a existência da histeria masculina, nunca apresentou um caso a público. Se o objetivo terapêutico dessas práticas continuava incerto, seu interesse estético era realçado; chegavam a propor aos pintores utilizar as doentes como modelos mais baratos e mais dóceis.

Outra figura do imaginário literário do finde- siècle é o universo feminino representado como destinado exclusivamente ao homicídio e extermínio – Salomé destruidora de homens como arquétipo do feminino. “Esse malvado trabalho infl exível, contínuo, profundo”, como diz Gongourt, essas duas forças lentas e dissolventes, o tempo e a mulher. “Cientistas e fi lósofos teorizaram sobre a necessidade feminina de ser espancada, valendo-se de alegações: único meio de domá-la, ‘como às crianças’ anota Lombroso, e, aliás, ela não sofre, tendo-se em vista sua ‘obtusidade sensorial’; Weiniger lembra que é a natureza que destina a ‘mulher’ absoluta a ser brutalizada e estuprada, o que inspirou um alexandrino ao seu tradutor: os seus gritos são falsos gritos, e o furor, fi ngido… No entanto, esse adestramento, insufi - ciente, nem por isso a torna inofensiva” (p. 269).

A vampiresca toma lugar entre as figuras da misoginia e da guerra dos sexos como outra modalidade da mulher fatal. Ambas são carniças vivas a que se atribui uma imortalidade funesta. O vampiro macho continua um vampiro, um ser sobrenatural, um morto-vivo que se alimenta de sangue humano e que apenas uma estaca enterrada no coração pode destruir.

Aplicado à mulher, o termo imediatamente se torna tão amplo como banal; pode designar qualquer mulher real (p. 277)… Há uma lógica exemplar na feminilização do vampiro. O homem se torna vampiro por encontro funesto ou maldição ancestral. Mas a mulher é vampiro, nasce vampiro, justamente porque é mulher: perde sangue, toca no sangue, tem com ele uma familiaridade que só pode repugnar os que só o conhecem por ferimentos, doença ou violência (p. 282).

Para Weiniger, se a mulher é vampiro é porque está inteira na menstruação, isto é, a feminilidade tem raízes no sangue. A mulher das regras é um animal louco e malvado. Vejamos essa preciosidade de Proudhon:

O homem com sua força de vontade, coragem e inteligência […] jamais conseguiria domesticá-la e ser seu dono, se não fosse ajudado pelas doenças e enfermidades que domam essa leoa […] O estado habitualmente enfermiço da mulher […] tem um providencial objetivo: o descanso do homem e a submissão da mulher (p. 286).

E Michelet diz: elas não têm culpa, elas não sabem o que fazem, são apenas o instrumento de uma força maior. Precisamos tratar delas e não julgá-las. Um louvável esforço de compreensão, mas inteiramente baseado na convicção de que a mulher é uma criança irresponsável, um ser humano cujo crescimento foi interrompido, um homem inacabado. Tudo se deve à menstruação, principalmente a explicação da inferioridade feminina, que explica a crueldade inata da mulher.

A última figura da mulher fatal que Dottin- Orsini trabalha é aquela que associa misoginia e anti-semitismo, a mulher e o judeu. Otto Weiniger dirá em Sexo e caráter que “mesmo aos olhos arianos, mulher alguma no mundo representa melhor a idéia da mulher, que a mulher judia”. Mas, em contraponto, Rider dirá: “O mais sólido laço entre o Feminino e o Judeu é o olhar do anti-semita” (p. 305).

Que exista ou não uma ligação signifi cativa entre o ódio à mulher e ao judeu (que reúnem inúmeros teóricos), que tenham como ponto comum o vocabulário do ostracismo (…a misoginia serve para reforçar o desprezo social), ou que o desprezo pelo Outro acarrete automaticamente sua feminilização, pode-se encontrar a maioria das características atribuídas à fi gura feminina negativa no discurso anti-semita e vice-versa […] (p. 307).

As antigas tradições anti-semitas julgavam que os homens judeus sofressem de regras como as mulheres, ou ainda de periódicos sangramentos de nariz. O conluio entre a mulher e o judeu assumia diferentes formas. Uma fi gura tradicional que está sempre do lado da mulher fatal é a do banqueiro judeu, seu amante e protetor, ao mesmo tempo vítima ridícula e poder libidinoso. Dinheiro e sexo se mesclam, vivenciados fantasmaticamente como as duas forças dominantes da época; todos as denunciam, lamentam, mas nelas se comprazem. Um clichê habitual é o do judeu super sexualizado. A mulher judia seria uma espécie de pleonasmo, um superlativo da mulher, e estaria mais próxima daquele princípio feminino F descoberto por Weiniger, a mulher absoluta. Sobretudo as ruivas. Mas a bela judia é, antes de tudo, um estereótipo romântico e positivo. A judia bela, corajosa e trágica é também uma pobre vítima que se transforma numa mulher maléfi ca, uma cortesã devoradora de homens. Para o freguês, a mulher anseia seu ouro como uma seiva e a suposta judeidade age como um catalisador que reforçaria as características da mulher, bem como as da prostituta, e que teria a propriedade de exacerbar a feminilidade, a sexualidade, a venalidade – em suma, o mal. Segundo Maupassant, a judia é o mistério encarnado e toda a mulher misteriosa é judia.

Em Sexo e caráter de Weiniger, há um capítulo que trata do judeu como mulher. Ele começa reafi rmando a inferioridade essencial da mulher, a mais alta representante desse sexo estando ainda longe de se igualar ao mais medíocre dos homens. O verdadeiro masculino é puramente ariano, o judeu é penetrado de feminilidade; daí, diz Orsini, a inserção de um capítulo anti-semita numa obra dedicada ao problema feminino e da diferença de sexos. O princípio judeu engloba tudo o que é oposto às qualidades masculinas. Ele ainda dirá que, como a mulher, o espírito judeu é um fermento de degenerescência, uma subumanidade contagiosa: o “espírito moderno é judeu”, nossa época é a época de dominação dos judeus, a mais judia e feminina de todas as épocas. Para o autor a escolha é clara entre a mulher e o homem, o ariano e o judeu, o não valor e o valor, o nada e a divindade. Dottin-Orsini acha impressionante como, ao se discutirem as teses de Weiniger, este foi poupado e permaneceu considerado; os ataques dos piores adversários são acompanhados de manifestações de respeito, por sua erudição, a precocidade do seu gênio e seu trágico fi m: suicidou-se aos 23 anos.

Dificilmente Freud ou as feministas dos anos 1970 negariam algumas das afi rmações de Weiniger: “O ódio à mulher é apenas o ódio não superado do homem contra sua própria sexualidade” (p. 358). Os únicos momentos em seu livro em que a visão do feminino não é negativa são aqueles que expressam uma condenação da relação sexual e da responsabilidade do homem:

“Se o coito é imoral é porque não existe um homem que no coito não use a mulher como instrumento. […] Nunca ousaram dizer abertamente onde está a servidão da mulher: ora está no poder soberano que o falo exerce sobre ela” (p. 358). Mas Weiniger propõe a “solução da mulher” defi nitiva, acima dos fantasmas de assassinato e da viuvez ardentemente desejados, principalmente pela necrofi lia, uma das manobras de evitamento da mulher e do feminino, que coloca a mulher ideal como a mulher morta: “se qualquer feminilidade é imoralidade, a mulher deve deixar de ser mulher …A mulher não precisa negar sua feminilidade, assim como não precisa afi rmá-la. Tudo quanto tem de fazer é suprimi-la em si mesma… ou seja, a mulher deve desaparecer como mulher” (p. 358). Aqui, diz Orsini, desaparecer como mulher signifi ca renunciar ao coito, ou seja, a si própria e o fi lósofo aparece então como salvador da humanidade feminina que ascende ao estágio de puro Ser humano, mas certamente o horror ao feminino jamais foi expresso tão radicalmente, sem que a maternidade represente um valor absoluto para o teórico.

Assim, a solução do misógino para a “bomba sexual permanente feminina” é a supressão da sexualidade, a supressão do coito para que o verdadeiro macho branco e ariano se realize como pura espiritualidade e abstração metafísica, longe do corpo e da carne, este Outro abjeto.

Orsini aponta, como cume do seu livro, que a confl uência entre anti-semitismo e misoginia por sua fonte comum inconsciente é o medo da castração, observação que Freud não deixa de fazer às teorias de Weiniger no texto sobre o pequeno Hans. E conclui: “No fundo, o que é comum ao judeu e à mulher é o olhar assustado do garotinho que cresceu” (p. 331). Já a mulher, Dottin-Orsini fi naliza com uma imagem do fi n-de-siècle: ela dá uma sonora gargalhada e segue o movimento do seu caminho, montada nua em um esqueleto.

Essas imagens fi nais traduzem, a meu ver, o paradoxo do masculino e do feminino na psicanálise. A partir de Totem e tabu, a formulação genial da centralidade do complexo de castração por Freud dá a resposta sobre como é possível o acesso à ação específi ca de um corpo no mundo. O complexo de castração é uma questão de percepção do mundo, de estabelecimento de um fora e de um dentro, do acesso à ação intencional do corpo no mundo e da percepção do tempo da sua fi nitude. Sem ele, fi camos presos na fantasia labiríntica da imortalidade ilimitada de nossos desejos oniscientes e onipotentes. Mas o que o feminino traz é uma realidade além da castração e que a centralidade e ênfase na falta percebida do pênis na mulher encobre, que é o movimento contínuo do nascer–morrer, a destruição como causa do devir, a transitoriedade como efeito do movimento imanente de transformação perene e afi rmativa da vida.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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