EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Resenha de Nélson da Silva Junior, Linguagens e pensamento, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2007, 142 p.


Autor(es)
Maíra Firer Tanis
é psicóloga e pós-graduanda em Psicologia na Universidade Federal de São Paulo.


Notas
1 P. Roth, Pastoral Americana, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 284.

voltar à primeira página
 LEITURA

Pensamentos sobre as linguagens

[Linguagens e pensamento]


Thoughts on languages
Maíra Firer Tanis

Comprei o livro de Nélson da Silva numa noite, por ocasião de seu lançamento. Dois dias depois já o tinha lido. A primeira leitura foi rápida, curiosa, instigante. Quando resolvi sentar para escrever esta resenha, percebi que a segunda leitura não seria assim tão rápida. É uma obra muito condensada, cada capítulo mereceria em si um novo livro. A curiosidade manteve -se. Comecei a ler as referências citadas, especialmente as mais diferentes e desconhecidas para mim, e depois de dois meses posso dizer que comecei a digerir melhor a leitura. Como um prato apetitoso e muito elaborado, é um pequeno livro que, mesmo muito saboroso, exige esforço para identifi car seus múltiplos ingredientes.

O título Linguagens e pensamento já sugere uma questão interessante: há mais de uma linguagem? Nélson vai respondendo a essa interrogação ao longo de todo o livro, enfocando -a de variadas perspectivas. A linguagem lógica estruturante do psiquismo humano estudada por Piaget vai aos poucos dialogando, no próprio texto e com o leitor, com a linguagem natural, da qual a lógica formal não dá conta. O livro se propõe a explicitar as relações lógicas inconscientes presentes no psiquismo humano, assim como na psicopatologia, como seu fator estruturante. Recorre a Piaget e a seu conceito de implicação signifi cante que, ao lado das operações básicas de seriação e classifi cação, compõe as bases estruturadoras de toda e qualquer percepção humana, por mais precoce que seja.

Nélson, contribuindo com o caminho indicado por Lacan, Bion e outros pensadores, deixa bem claro que sua noção de estrutura lógica não se refere à lógica semântica, e que pressupõe uma independência entre os processos lógicos e os conscientes. Assinala, apoiado em Jakobson, a independência entre sintaxe e semântica. Em estados patológicos seria possível identifi car com clareza dois procedimentos, o metonímico e o metafórico, que na linguagem corriqueira são praticamente indistinguíveis. Essa competição entre os dois modos de organização linguística aparece na clínica cotidiana, sendo que as associações por contiguidade ou “transferência metonímica” e as associações por similaridade (metafóricas por excelência) não recebem a devida atenção dos linguistas, nem de muitos psicanalistas. As palavras de Jakobson, citadas por Silva – “a estrutura bipolar da linguagem efetiva foi substituída artifi cialmente, por um esquema unipolar amputado, que, de maneira evidente, coincide com uma das formas de afasia, mais precisamente, o distúrbio de continuidade” (p. 80) – descrevem com nitidez um processo comum a alguns textos psicanalíticos, que costumam referir -se aos processos metafóricos e ignorar a sintaxe subjacente ao discurso.

Para dar conta de refl etir sobre essa sintaxe, sobre o substrato lógico da articulação linguística, o autor vai tecendo seu texto (ou cozinhando seu prato, para fi carmos nas metáforas gastronômicas) recorrendo a argumentações sustentadas por outros campos do conhecimento como a neurologia, a fi losofi a, a linguística, e especialmente os estudos de Piaget.

Com o objetivo de trazer à tona a lógica subjacente ao pensamento e à linguagem nas diversas psicopatologias, Nélson precisou recorrer a uma ampla bibliografi a; são oito páginas de referências bibliográfi cas das mais diversas, que vão guiando o leitor para a refl exão pretendida: em busca do que podemos chamar de linguagem perdida. Mas essas referências estão em permanente diálogo com a voz e o pensamento de Silva, que constrói em seu texto uma teoria própria, ou uma maneira singular de tratar desse tema. Mais de uma vez tive a impressão de estar fazendo uma visita guiada por alguma cidade ao mesmo tempo muito familiar e desconhecida.

Lembrei -me de muitas situações clínicas e literárias, onde o instrumental da linguagem sintática se faz necessário. Assim como Grize encontrou em Jean Jacques Rousseau um paradigma para o discurso lógico delirante, deparei com um romance onde uma das personagens apresenta essa mesma exacerbação da lógica melancólica.

A inteligência era aquilo que o Sueco estava ouvindo, a cabeça rápida, aguçada estudiosa de Merry, a mente lógica que ela tivera desde a mais recuada infância. E ouvir isto fez eclodir nele uma dor tal como nunca antes imaginara. A inteligência se achava intacta e no entanto Merry estava louca, sua lógica era uma variedade da lógica totalmente destituída do poder de raciocinar, com a qual ela já se havia cingido quando tinha dez anos de idade. [1]

Entender a argumentação “louca” de uma fi lha louca, embora lógica, com semântica e sintaxe preservadas, mas, mesmo assim, “louca”, como o livro de Philip Roth descreve, é tarefa que leva mais de quatrocentas páginas de bela prosa. Penso que nossa tarefa na clínica psicanalítica seja bem similar à deste pai. Há algo que pode parecer destoante, como nota atonal no discurso de nossos pacientes, embora ele normalmente seja um discurso lógico. O assim chamado excesso de lógica é loucura, como bem descrito por Roth. Muitas vezes ouvimos de nossos pacientes discursos aparentemente impecáveis do ponto de vista da lógica formal e, no entanto, “ilógicos” se tomados sob a perspectiva da lógica natural, como foi esplendidamente colocado pelo autor. Enunciados tais como: “Se eu quero muito alguma coisa, então ela não acontece”, são exemplos desse tipo de discurso cuja lógica é ao mesmo tempo cristalina, mas que parte de premissas falsas, quando o conteúdo é levado em consideração. Ocorre o que Nélson da Silva descreve como uma formação discursiva de funcionamento análogo ao de uma teoria axiomatizada, cujas premissas não são questionadas e dão lugar a deduções e induções falsas quanto a seu valor real verifi cável, mas que operam na formação e manutenção dos sintomas. Se só podemos pensar e organizar mentalmente as experiências vividas de um modo determinado, assistimos a uma cristalização perceptiva e a difi culdades de acomodação, levando à repetição neurótica que seria sobredeterminada pela estrutura mental que a ordena.

Piaget dá conta da constituição da lógica e, portanto, do pensamento a partir de três operadores: classifi cação, seriação e implicação signifi cante, que seriam responsáveis pelos processos precoces de associações “se… então”. Embora logicamente impecáveis, as implicações signifi cantes nem sempre dão conta de um real complexo, portanto há falhas na lógica natural, especialmente naquelas percepções precoces, chamadas de estruturas protomentais por Imbasciatti. São exatamente essas protoestruturas que servirão de alicerce para novas estruturas, que por sua vez serão estruturadoras de novas e novas percepções e, segundo o modelo de Piaget, suscitarão em algum momento de crise uma assimilação do novo como novo, levando a uma acomodação necessária, criando uma nova estrutura para um novo conteúdo.

Assim parece ser o processo de leitura deste livro. À medida que a leitura avança, a cada página deparamos com alguma frase, alguma afi rmação que nos obriga a rever o parágrafo anterior, porque aparentemente houve um salto, uma quebra na lógica que seguíamos até então. Para compreendê -lo com toda a inovação que ele traz, é preciso criar novas estruturas; não nos bastam as antigas.

Penso que Linguagens e pensamento trata justamente desse processo perceptivo e de aquisição de conhecimento por meio da operação lógica com o ambiente, no caso com as palavras do texto, que estrutura não apenas a noção do mundo natural e social, como a noção de si mesmo e de sua relação com os objetos.

Ao tratar da linguagem metonímica e não apenas da metafórica, ou seja, respeitando a estrutura bipolar da linguagem efetiva, segundo Jakobson, Silva resgata um importante aspecto aparentemente negligenciado por muitos autores, ou seja, a relevância do caráter das relações sintáticas e suas falhas na constituição do psiquismo, não apenas estruturado pela linguagem semântica e metafórica.

Seguir o caminho da argumentação de Nélson nem sempre é uma tarefa simples ou linear – mais parece um passeio por Roma – onde as ruas tortuosas acabam levando sempre a surpresas emocionantes, como ruínas de vários momentos da civilização.

O tema desenvolvido neste livro parece -me mais um estudo da Química do que de Arqueologia, como costumam ser os trabalhos psicanalíticos. Nélson procura chegar ao tecido que é ao mesmo tempo suporte e “tecedor” do psiquismo. Ao assimilar o mundo através de operações mentais tais como seriação, classifi cação e implicação signifi cante, mesmo antes da aquisição da linguagem oral tal como a concebemos, a criança vai tecendo uma rede de captação da realidade (seja interna ou externa) que obedece a princípios lógicos determinados e universais. Esta rede vai estruturar as possibilidades futuras de estabelecer novos signifi cados. Voltando às frases citadas no livro, “se eu sou o centro do universo, se tudo que existe se refere a mim, se desejei muito e não aconteceu, então a conclusão lógica é que o que desejava não aconteceu porque eu assim o desejei”. A partir de uma premissa autorreferente, própria do período sensório -motor descrito por Piaget, pode -se chegar a esta conclusão considerada lógica, dado que respeita princípios lógicos de formulação, entretanto, é na axiomatização das premissas que repousa a distorção perceptiva que levará cada nova experiência a afi rmar tal enunciado. Se não houver possibilidade de questionamento das premissas, haverá o que Jean -Blaise Grize descreve ocorrer com o discurso de Rousseau, um excesso de lógica, como se a natureza dos objetos não importasse.

Este livro abre muitas perspectivas para refl exão e, principalmente, nos faz questionar procedimento clínicos, como se acendesse uma lanterna para iluminar aquilo que sempre soubemos estar presente, mas que raramente é bem iluminado. Se não fosse por outros e muitos méritos, só por essa luz, lê -lo já seria um ótimo investimento.


topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados