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Resumo
As contribuições de Mara Caffé, Paulina S. Rocha e Mario Eduardo C. Pereira refletem o impacto da comunicação virtual no contato analista-paciente e, ao nosso ver, as suas indagações corajosas acenam para desdobramentos futuros surpreendentes.


Autor(es)
Mara Caffé
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise desse mesmo Instituto, doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, autora dos livros Psicanálise e Direito: a escuta analítica e a função normativa jurídica, e Crítica à normalização da Psicanálise.

Paulina Schmidtbauer Rocha
é psicanalista e linguista, professora e supervisora do CPPL-Recife (www.cppl.com.br) e psicanalista do Círculo Psicanalítico de Pernamco

Mário Eduardo Costa Pereira
é professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatra da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris 7. Diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da FMC-UNICAMP. Professor do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Spapientiae, São Paulo.


Notas

1 Z. Bauman (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

2 J. Derrida (2001) Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará.


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 DEBATE

Psicanálise e internet: uma combinação possível?

Mara Caffé
Paulina Schmidtbauer Rocha
Mário Eduardo Costa Pereira


Em um artigo da Revista Cult de outubro de 2007, ao se propor 141 a analisar o destino do pensamento de esquerda nas sociedades capitalistas contemporâneas, Vladimir Safatle comenta como a atualidade parece demandar uma hegemonia da prática sobre a teoria. Mas, diz o autor citando Deleuze, “se a prática é um conjunto de passagens de um ponto teórico a outro e a teoria uma passagem de uma prática a outra”, as teorias não se desenvolvem se não encontrarem muros e será necessário uma prática para perfurar este muro. O mesmo pode ser dito sobre a prática”.

A relação entre prática clínica e teoria estaria na base de muitas discussões a respeito de mudanças nos saberes da psicanálise diante de transformações tão amplas em todas as esferas da sociedade e da cultura atuais e, por decorrência, nas subjetividades.

Em seu artigo da Folha de S. Paulo de 18 de julho de 2007, Calligaris comenta a preocupação contemporânea com a velocidade da corrosão dos saberes e mostra como em resposta a isso se desenvolve uma demanda de constante atualização desses saberes. Por outro lado, o autor problematiza essa “atualização” para as ciências humanas, apontando as diferenças que estas mantêm frente às ciências exatas. “Na elaboração do saber das humanas, os dados são tão importantes quanto a interpretação que lhes dá uma signifi cação. E, na interpretação, o peso do viés, das esperanças e das apostas subjetivas é grande demais para que as ‘atualizações’ sejam acatadas imediatamente”.

Certamente as relações entre a psicanálise e a comunicação virtual estão longe de obter algum tipo de consenso entre os psicanalistas, e mais longe ainda de um trabalho de elaboração teórica que possa sistematizar as repercussões do uso da informática na prática clínica. Mas, como diz Pereira, se faz necessário um recenseamento das novas modalidades de relações humanas propiciadas pela internet e suas incidências na situação analítica em diferentes planos. Até porque, como afi rma Caffé, os processos contemporâneos de subjetivação, e entre eles as novas doenças da alma, implicam modos virtuais de inscrição, conservação, classifi cação e comunicação das experiências humanas. No entanto, estariam a psicanálise e os psicanalistas dispostos a revolucionar seus conceitos e dispositivos clínicos na abordagem desta realidade? Rocha faz um mea culpa e de forma bastante honesta confessa sua resistência em fazer uma clínica sem seus cânones: setting, transferência, interpretação e presença do analista, muito embora afi rme sua curiosidade frente ao que percebe ser inevitável.

Desde a época em que Freud abandonou a hipnose, a clínica psicanalítica não sofreu mudanças signifi cativas em seu setting.

A invasão da informática fez com que a internet ocupasse cada vez mais espaço nas comunicações em todos os campos das inter-relações humanas e a clínica psicanalítica tem se defrontado com sua presença de várias formas e em diferentes níveis, desde o google, que torna acessível a pacientes e analistas informações antes privadas, conforme observa Pereira, como o extremo da possibilidade, ainda que parcial, de atendimentos clínicos por e-mail ou msn.

Para o debate deste número, suscitado pelos encontros do evento Inquietações da Clínica, organizado pelo Departamento de Psicanálise, convidamos psicanalistas que têm demonstrado preocupação e interesse em pensar as vicissitudes da presença da internet na clínica psicanalítica para responder à seguinte questão: Quais seriam suas refl exões a respeito dos atendimentos clínicos por e-mail ou msn, seja pela sua particularidade, ou ainda pelos limites que impõe? Em que medida a prática analítica perde ou ganha ao abrir seu espaço de atuação na ausência do corpo real? De que forma o contato virtual modifi ca o vínculo analista-paciente?

As contribuições de Mara Caffé, Paulina S. Rocha e Mario Eduardo C. Pereira refletem o impacto da comunicação virtual no contato analista-paciente e, ao nosso ver, as suas indagações corajosas acenam para desdobramentos futuros surpreendentes.


MARA CAFFÉ

Iniciarei a discussão sobre os atendimentos clínicos por e-mail ou msn indagando suas condições ao estabelecimento do método psicanalítico. Nesse novo contexto, os sujeitos se encontram na ausência concreta do corpo do outro e o contato se faz mediado pela tecnologia da comunicação virtual. A cadência temporal da conversa não é a mesma que se produz no contato pessoal direto, e a linguagem oral é agora substituída pela escrita. Desse modo, as sessões por computador ocorrem em ritmo e índices de presença que afrontam as regras básicas do trabalho analítico: o estabelecimento da associação livre, na suspensão relativa do pensamento racional, e a posição de abstinência do analista, que apenas se sustenta sobre um fundo de presença. Afinal, o uso da informática e da escrita convoca, em maior escala, o pensamento racional, bem como a ausência concreta dos corpos cria uma realidade estranha ao ato analítico originário, cujo apoio se faz na experiência imediata da presença do outro. Neste sentido, é fácil imaginar que, para o analista, abster-se em ausência não é o mesmo que abster-se em presença. Aqui, abre-se um abismo entre o computador e a sala de atendimento do psicanalista. Mas, em se tratando da comunicação virtual, o que podem ser os estados de presença e ausência?

O jornal Folha de S. Paulo do dia 24 de agosto deste ano noticiou uma pesquisa realizada em Genebra, em que neurocientistas “conseguiram iludir o cérebro a partir de estímulos visuais e fazer com que a pessoa real pensasse que era a virtual”. A pergunta “você é você ou o seu avatar (representação virtual)?” introduzia a matéria, cujo título chamou minha atenção: Realidade virtual faz pessoa se sentir “fora do corpo”. As aspas no título interpretam os fatos da notícia. Denotam o intervalo, um espaço que se abre sobre outro, em que o fora do corpo torna-se uma experiência (científi ca!) no âmbito do próprio corpo. Os estados de presença e ausência são recriados e subvertidos no plano da realidade virtual, indicativos de uma nova experiência subjetiva do tempo e do espaço. Entramos na era Matrix! Porém, o que quero ilustrar com essa notícia é algo bem mais próximo das nossas experiências cotidianas.

A tecnologia da comunicação virtual integra, certamente, muito do que referimos como contemporaneidade. É o que afi rma, por exemplo, o sociólogo polonês Z. Bauman [1], em suas refl exões sobre o uso do celular e da internet na sociedade ocidental moderna. Dentre outros fatores, a extrema rapidez, superfi cialidade e concomitância dos contatos aí estabelecidos geram uma modalidade de interação social denominada conexão. Segundo o autor, a conexão é uma relação dominantemente narcísica, líquida, escapista, facilmente sujeita à desconexão, diferentemente das relações vinculares, que responderiam por modos de interação mais estáveis, sólidos e alteritários. Nesse sentido, a notícia da Folha atesta, em outros termos, o que já seria uma realidade banal e bem conhecida por nós, as conexões humanas, onde a presença do outro se “desmaterializa” (com aspas) em presença virtual, colocando em crise a experiência social da alteridade. Um sintoma da modernidade seria o estabelecimento hegemônico das conexões em lugar dos vínculos. Trata-se de uma forma de subjetivação dominante que se apresenta também no campo analítico, alterando profundamente suas coordenadas (como fi ca a transferência no domínio das conexões?). Portanto, nesse ponto, a tecnologia da comunicação virtual não está confi nada ao interior do computador: seus efeitos se reproduzem no espaço entre a poltrona e o divã. Aqui, aproximam-se o computador e a sala de atendimento do psicanalista.

Conforme o ângulo de perspectiva, parece possível afastar e aproximar os campos do computador e do consultório, tendo em vista os atendimentos clínicos. Vamos prosseguir neste vai-e-vem. Com respeito às sessões por e-mail ou msn, uma coisa é certa: a questão não é achar, no escopo das comunicações virtuais, a posição “esdrúxula” possível para fazer caber o dispositivo analítico convencional, e sim re-fundar o dispositivo em novas condições. O analista não fala do mesmo modo, no mesmo ritmo, não pensa da mesma forma quando está em presença real ou virtual com o seu paciente. Isso equivale a dizer que, nas sessões por computador, o analista não se reconhece numa identidade segura original, que se mantém imutável apesar das mudanças de paisagem.

Ocorre que o suporte da comunicação em jogo determina, aos sujeitos da análise, outras relações com a palavra e o corpo. Este é o nó da questão. A reportagem da Folha é um bom estímulo para pensarmos sobre o que podem ser as relações virtuais com a palavra e o corpo, experiência humana bem recente. Nessa linha, a regra analítica da associação livre, que supõe certa relação com a palavra, constitui-se no campo da conexão virtual sob que formas? Dado que o corpo real do analista se coloca como um suporte fundamental da transferência, quais os efeitos da sua ausência nas sessões por computador? Fundar uma clínica no suporte da realidade virtual signifi ca, dentre outras coisas, desenvolver metapsicologia a estes novos paradoxos. Aqui, mais uma vez, reconhecemos uma longa distância entre os enquadres clínicos do contato pessoal e virtual.

Por outro lado, e tomando agora a direção oposta, constatar a grande difi culdade de ajustar a prática clínica aos meios da comunicação virtual parece tão verdadeiro quanto considerar que, na contemporaneidade, o dispositivo analítico originário nem mesmo se deixa reproduzir sem problemas no setting habitual do consultório! É claro que isto não nos permite ignorar as enormes diferenças entre ambos os enquadres, tendo em vista a fi nalidade analítica. Porém, retira as sessões por computador da condição de uma inviabilidade absoluta, ao mesmo tempo que as toma como paradigma de uma realidade clínica que nos é mais próxima do que parece. Vejamos.

Habituados à velocidade, aos engates e desengates instantâneos da comunicação virtual, expostos, permanentemente, a um grande volume de informações, os sujeitos modernos não sustentam mais as mesmas condições e demandas à psicanálise. As novas formas de subjetivação respondem e incitam, ao mesmo tempo, à construção compartilhada de uma realidade acelerada, superfi cial e horizontal, tão bem apresentada pela internet. O que pode sair desta caixa de Pandora? De um lado, vemos produzir-se um encolhimento do tempo e espaço necessários ao trabalho simbólico. Afi nal, nesse registro, pensar é deter-se, permanecer, demorar-se no tempo, e também crescer no espaço, ou seja, deixar-se avolumar, habitar, comprometer com a experiência, o que está na contramão do que Bauman nomeia como conexão. Nessa linha, as re-signifi cações simbólicas e a própria transferência requerem desdobramentos do tempo e do espaço subjetivos. Porém, voltando a nossa caixa, também assistimos ao fl orescimento de um enorme laboratório de interatividade social nos sites de relacionamento, orkuts e produções caseiras de vídeos que lançam, na internet, múltiplas marcas de uma interatividade anônima. Teremos, já, distância histórica sufi ciente para aquilatar os processos em curso?

Pois bem. Tanto uma como outra surpresa desta Pandora moderna concorrem para a perda signifi cativa do poder simbólico da clínica psicanalítica no contexto social, uma vez que ela não parece afeita às relações aceleradas, compactas e superfi ciais. Aliás, ela própria assume o lugar que Pierre Fédida conferia à psicoterapia, ou seja, o lugar de uma “psicanálise complicada”. Em resposta aos confl itos e paradoxos contemporâneos, vemos cada vez mais os psicanalistas trabalharem em condições desafi antes. É o caso, por exemplo, dos atendimentos feitos na freqüência de uma sessão por semana e na tomada, pelo analista, de posições muito mais ativas na transferência, a fi m de criar a qualidade de presença que o vínculo analítico requer. Criar corpo pulsional e não virtual para a análise. O curioso é que estas mesmas medidas – maior atividade e menor freqüência do analista – parecem tornar mais possíveis e próximas as sessões por computador!

Nesse raciocínio pendular, trabalhamos duas relações entre o computador e o consultório do analista: a de um estranhamento marcado e a de um esmaecimento de suas fronteiras. Vamos tomá-las desse modo, enquanto relações que co-existem, uma e outra, e que definem, portanto, um paradoxo, um campo de diferenças irredutíveis. Jacques Derrida [2] nos oferece, aqui, alguns nortes. Em seu livro Mal de arquivo, o autor refl ete sobre os diversos modos de inscrição da experiência humana, comentando a importância que a comunicação postal manuscrita teve no surgimento da psicanálise. As correspondências trocadas entre os primeiros psicanalistas informavam sobre suas idéias e práticas clínicas nascentes, sendo que “uma determinada carta escrita à mão leva tantos dias para chegar a uma outra cidade européia e tudo depende desta demora. Tudo fica entregue a esta medida.” (p. 29) E este “tudo” inclui a própria formulação da teoria psicanalítica. Ou seja, as técnicas de suporte da comunicação não são exteriores ao conteúdo mesmo do que se comunica. A metapsicologia freudiana guardaria relações intrínsecas com os modos, apoios e velocidade pelos quais foi inscrita, conservada e… recalcada.

Nessa linha, que efeitos teria sobre a psicanálise o surgimento do correio eletrônico? Para Derrida, o e-mail, como nova forma de escritura e arquivamento, não é apenas

[…] o local de estocagem e de conservação de um conteúdo arquivável passado, que existiria de qualquer jeito e de tal maneira que, sem o arquivo, acreditaríamos ainda que aquilo aconteceu ou teria acontecido. Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. (p. 29) (o grifo é meu).

Assim, por exemplo, a psicanálise digitada para as telas do computador não teria uma relação direta e automática com a psicanálise fundada nos manuscritos de Freud, ainda que fosse pelas re-signifi cações de um passado que se manteria idêntico no decorrer dos anos. Simplesmente, porque não haveria uma psicanálise originária, única e “verdadeira” pronta para ser evocada e continuada, independentemente da forma pela qual se faça. A era da informática promove revoluções no registro passado e futuro da psicanálise. Do mesmo modo, o que o paciente tem a dizer não é o mesmo caso ele esteja em presença ou em comunicação virtual com o analista. E não é o mesmo porque nem a própria história passada, nesse novo suporte de comunicação, é idêntica à que se atualizaria na transferência caso estivessem, analista e paciente, em contato pessoal direto. Simplesmente, porque não haveria uma história única e “verdadeira” esperando para ser revelada na transferência, independentemente da forma pela qual se faça. Ou seja, não há passagem harmônica e continuísmo absoluto entre as diferentes formas de inscrição e arquivamento da experiência humana. Eis uma das faces do mal de arquivo!

Sobre as mudanças promovidas pela tecnologia moderna, Derrida afi rma: “[…] o correio eletrônico está hoje, mais ainda que o fax, em vias de transformar todo o espaço público e privado da humanidade e, portanto, o limite entre o privado, o segredo (privado ou público) e o público ou o fenomenal.” (p. 30). Isso se faz acompanhar por medidas jurídicas e políticas, o que toca “[…] nada menos que o direito de propriedade, o direito de publicar e de reproduzir.” (p. 30). Em outro momento, considerando a teoria psicanalítica, Derrida pergunta: “onde situar o momento da repressão ou do recalcamento nestes novos modelos de registro e de impressão?” (p. 40). Como conceber, aí, a tópica psíquica e o processo do recalcamento? O que mudaria na metapsicologia se, em vez do bloco mágico freudiano, o modelo de apoio do psíquico fosse o computador? E, no entanto, já mudou! Podemos concluir que a revolução trazida pelas técnicas de comunicação virtual é uma questão para a clínica psicanalítica, onde quer que ela aconteça. Em certo sentido, interagimos ao modo dos e-mails e msn mesmo quando no consultório do analista. Os processos contemporâneos de subjetivação, e entre eles as novas doenças da alma, implicam modos virtuais de inscrição, conservação, classifi cação e comunicação das experiências humanas. Cabe à psicanálise revolucionar seus conceitos e dispositivos clínicos na abordagem desta realidade que está muito aquém e além da situação particular das sessões por computador.

Propus, neste debate, afastar e aproximar o computador e a sala de atendimento do analista como uma estratégia de pensamento. A sua vantagem não reside, certamente, no desenho de posições mais defi nidas acerca das sessões psicanalíticas por e-mail ou msn, mas sim na constituição de um campo de complexidade onde pensá-las. De qualquer modo, com respeito às posições mais defi nidas, penso que elas apenas são possíveis na consideração singular de cada caso clínico, conforme a questão se coloque. Pois é com a transferência e na transferência que avaliamos a possibilidade e os sentidos particulares de um novo transporte para o trabalho. E como isso ainda não é sufi ciente para garantir as decisões acertadas, no mais, toda história clínica depende de uma aposta.


PAULINA S. ROCHA

A informática entrou na minha vida nos anos 1960 quando eu era ainda uma jovem estudante de lingüística em Zagreb, e a internet tem feito parte do meu cotidiano privado e profi ssional de várias formas nesses últimos vinte anos. Talvez por ter me aventurado a esse tipo de comunicação quando ainda era privilégio dos universitários, sou afeiçoada a tudo o que a informática e mais especifi camente a internet me proporciona, a começar pelo fato de que sua entrada na esfera da comunicação possibilitava uma democratização da informação, colocando-a ao alcance de todos. De fato, nesses vinte anos avançamos bastante a ponto de ser possível trabalhar junto a outras pessoas que estejam em diferentes lugares do mundo, bastando estarmos conectados simultaneamente. Ou seja, tanto faz o lugar em que se está neste globo terrestre, pois desde que se tenha disposição e acesso a internet, é possível se estabelecer as conexões que nos interessam e estar com as pessoas que queiramos. Juntos, mesmo estando cada um no seu continente, pode-se trabalhar, trocar idéias, escrever textos, criar programas, controlar contas bancárias e até se divertir.

Entretanto, apesar desta familiaridade com internet, nunca pensei em utilizá-la para realizar sessões de psicanálise. Como seria uma sessão “ponto-com”? Na hora marcada sentaria na frente do monitor, entraria no Skype, esperaria a chamada do meu cliente? Responderia quando ele chamasse…?

Imediatamente me sinto deslocada, porque percebo que para acolher as pessoas utilizo um arsenal constituído pela experiência de vida e pela prática clínica que me possibilita estar na escuta psicanalítica desde o início da sessão. A clínica me exige uma escuta para além das palavras, com os olhos, com todo o meu sistema proprioceptivo. Uma escuta do que o corpo do outro diz na hora do aperto de mão. Além disso, pressuponho que o outro ali envolvido também escute com todos os seus sistemas e não só por minha intervenção verbal. Este é um princípio que norteou e norteia a maior parte da minha prática clínica, embora pense que a maioria dos psicanalistas saiba disso e leve isso em consideração.

Por essas razões, é difícil pensar em me transpor para outro modo de comunicação, em um outro sistema de interação no exercício do meu ofício de psicanalista. Isso não me impede de acreditar e ter curiosidade em relação aos modos pelos quais esta nova geração nascida e criada nesta nova cultura de comunicação, neste novo sistema de interação, irá realizar o ofício de psicanalista. Quais serão seus novos referenciais? Que formas de escuta e fala serão construídos no sentido de dar continuidade a essa troca particular que uma psicanálise pressupõe?

Por outro lado, ainda que me pareça interessante considerar a questão da virtualidade como mais uma contingência na vida das pessoas e que portanto deve ser levada em consideração, está fora de questão discutir se a psicanálise é ou não possível no espaço virtual. Mais, ainda, porque o verbete virtual me parece dizer pouco da experiência desse novo sistema de interação social.

MÁRIO EDUARDO COSTA PEREIRA Provavelmente nenhum analista contemporâneo está em posição de dizer: “a internet jamais participou diretamente de minha clínica”. Desde os anos 1990, a web faz parte da vida cotidiana de fatias cada vez mais amplas da sociedade, incidindo a diversos títulos sobre a prática psicanalítica da atualidade. É corriqueiro, por exemplo, que, em algum momento do tratamento, uma eventual troca de e-mails entre analista e analisando se dê em diferentes contextos: marcação e modifi cação de horários das sessões; breves comunicações de acontecimentos da vida; associações diretamente ligadas à situação analítica; demandas de caráter sintomático travestidas de mensagens banais etc. A própria disponibilidade quase universal da internet introduz modifi cações estruturais na relação transferencial. Os sistemas de busca tornaram acessíveis a pacientes – e a analistas – o acesso a informações outrora relativamente privadas dos participantes da relação analítica: quantos pacientes não relatam terem “dado um google” no nome do analista antes de o terem procurado pela primeira vez? O próprio analista pode fazê-lo sigilosamente em relação a seus pacientes, sendo que os pacientes sabem dessa possibilidade. Os blogs, o Orkut, os currículos Lattes tornam disponíveis publicamente não apenas “informações” sobre os protagonistas, mas constituem verdadeiras expressões signifi cantes de suas personalidades: fotos pessoais, publicações (por vezes de casos clínicos relatados pelo analista), participações em eventos científi cos e atividades sociais; comentários de amigos e de colegas sobre a vida pessoal, sobre o posicionamento político etc. Ou ainda, por vezes, o analista descobre ter sido incluído na mala-direta eletrônica de seu paciente. Assim, a multiplicidade de possibilidades de trocas através desse meio não cessa de se expandir, em uma velocidade que ultrapassa em muito a capacidade da psicanálise de elaborar teoricamente as repercussões sobre sua prática clínica.

O extremo dessa disponibilidade de recursos tecnológicos, que inclui até mesmo a comunicação com troca de mensagens de voz e visuais, torna pensável a possibilidade da realização, pelo menos parcial, de uma análise com o suporte da internet. Além disso, a crescente globalização, que torna freqüente – e por vezes necessária – a mudança de cidade e de país, faz com que muitos analisantes (e mesmo analistas) coloquem-se a questão de dar continuidade, pela via virtual e ainda que temporariamente, ao trabalho analítico com o psicanalista com o qual já haviam estabelecido uma relação transferencial efetiva. Na verdade, muitas experiências desse tipo já têm sido relatadas. Portanto, o que aqui está em jogo não são apenas elementos de ordem abstrata beirando a fi cção científi ca, mas dimensões de uma realidade efetiva (a Wirklichkeit, de que falava Freud) com impactos simbólicos, imaginários e reais concretos sobre a situação transferencial e sobre o próprio dispositivo psicanalítico.

Esse recenseamento preliminar das novas modalidades de relações humanas propiciadas pela Internet solicita uma refl exão serena sobre suas incidências na situação analítica que operam em diferentes planos. Do ponto de vista concreto, sua presença já se faz notar na prática quotidiana e chama a atenção o fato de que tão pouco tenha sido escrito até agora pelos psicanalistas no sentido de refl etirem sobre os efeitos dessa nova tecnologia sobre sua prática. Evidentemente, a internet não é o primeiro avanço tecnológico que produz repercussões diretas sobre a prática da psicanálise: o telefone, o fax, os “torpedos” de celulares, a facilidade de transportes – inclusive intercontinentais, entre outros elementos desse nosso admirável mundo novo – dão testemunho disso. Torna-se, portanto, necessária e urgente uma nova linha de pesquisa psicanalítica que refl ita em termos propriamente metapsicológicos as incidências efetivas dessas novas tecnologias sobre a prática psicanalítica na atualidade.

Um tópico particularmente sensível nesse debate é a questão, acima levantada, sobre as condições de possibilidade de instalação e de realização de pelo menos parte do trabalho analítico com suporte virtual através da internet. Um amplo leque de interrogações abre-se imediatamente, recomendando aos psicanalistas prudência em suas respostas, em respeito à complexidade do campo. Sem a pretensão de antecipar aqui uma elaboração teórica que só poderá ser produzida ao longo de muito trabalho metapsicológico e de muitos debates entre os psicanalistas, serão listadas a seguir algumas questões preliminares – desde os pontos de vista factuais, teóricos e clínicos – para a abordagem psicanalítica da incidência dos meios tecnológicos virtuais sobre sua prática. O aprofundamento dessas discussões passa necessariamente pelo refi namento teórico dos temas fundamentais – e já tradicionais – relativos à sustentação metapsicológica do dispositivo psicanalítico, tais como o estudo dos fatores relativos à instalação da situação analítica, desde os pontos de vista da demanda; do sofrimento/impasse existencial eventualmente à base da busca de ajuda; da suposição de um saber inconsciente à base do sintoma; da instalação da transferência própria ao trabalho psicanalítico; da implicação/responsabilização do sujeito com o próprio tratamento. Por outro lado, temáticas aparentemente superadas na discussão do dispositivo analítico retornam vigorosamente à pauta teórica, tais como aquelas relativas ao setting e ao estabelecimento do contrato analítico. Por fi m, uma discussão atualizada sobre os temas da presença, do corpo, do olhar e da voz no interior da situação psicanalítica impõem-se como preliminares a todo debate possível sobre as novas condições técnicas sugeridas – e quem sabe impostas – pelo progresso da internet e da realidade virtual. Esta deverá ser redescrita em suas relações com o imaginário, bem como face à palavra, à fantasia e ao mundo pulsional, sobre os quais se ancora a subjetividade.

1984 e 2001 fi caram para trás. O admirável mundo novo é hoje e cabe à psicanálise o desafi o de nele se inscrever sem perder sua própria alma.
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