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Resumo
O texto parte de uma exposição da fotógrafa americana Nan Goldin – “Eu serei seu espelho” – apresentada no Whitney Museu de Arte Americana (Nova York) em 1996. Nele são abordadas questões sobre a fotografi a, a sua relação com a morte, a beleza e o efêmero. São levantadas hipóteses da fotografi a como alegoria, fetiche e relíquia.


Palavras-chave
fotografia; beleza; morte; relíquia.


Autor(es)
Paula Patrícia S. N. Francisquetti
é psicanalista e psiquiatra, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Participa do Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise. Atua na Cia Teatral Ueinzz e é mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades de Estética e História da Arte da USP.


Notas

1 A. Breton apud E. Sousa, “Vasos comunicantes: sintonia e dissonâncias entre arte e psicanálise”, p. 157.

2 M. Foucault, “A linguagem ao infi nito”, p. 47.

3 N. Goldin; E. Sussman, Nan Goldin: I’ll be your mirror, p. 448.

4 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. 454.

5 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. 25.

6 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. 25.

7 M. Foucault, “A linguagem ao infi nito”, op. cit., p. 48.

8 A. Manguel, Lendo imagens – uma história de amor e ódio, p. 177.

9 Alusão à famosa frase de Rimbaud que Lacan comenta em seu seminário. Ver J. Lacan, O Seminário, livro 2, “O eu na teoria de Freud e na psicanálise”, p. 14.

10 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. .448.

11 M. Foucault, “Prefácio à Transgressão (1963)”, p. 28.

12 Idem, p. 44-5

13 Para Birman, a sublimação seria defi nida pela noção de sublime e não de pela de belo. Sublimar implicaria “encontrar um novo objeto para a pulsão, pelo qual a erogeneidade se realizaria fora do registro do belo, no qual o falo seria rompido tanto nas suas fronteiras quanto na sua exaltação pela sublimação, de acordo com a noção kantiana de ação sublime como ultrapassagem dos limites”. Idem, p. 44-5.

14 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. 135.

15 fotosite.com.br

16 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. 454.

17 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. 454

18 M. Foucault, “Um nadador entre duas palavras”, p. 245.

19 S. Sontag, “O mundo-imagem”, p. 178.

20 S. Sontag, op. cit.

21 J. Birman, Cartografi as do feminino, p. 144.

22 R. Barthes, A câmara clara, p. 54

23 S. Sontag, “Objetos de melancolia”, p. 85.

24 L. Santaella, L.; W. Noth, “A fotografi a entre a morte e a eternidade”, p. 133.

25 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. 451.

26 E. Sousa, “Vasos comunicantes: sintonia e dissonâncias entre arte e psicanálise”, p. 157.

27 J. Lacan, O seminário, livro 7, “A ética da psicanálise”, p. 354.

28 J. Lacan, op. cit., p. 357.

29 Sobre a alegoria: Kristeva comenta que, segundo Walter Benjamin, a alegoria teria sido muito utilizada “pelo barroco e em particular pelo Trauerspiel (literalmente: jogo de luto, jogo com o luto; comumente: drama trágico do barroco alemão), que realiza ao máximo a tensão melancólica”. Ver J. Birman, Gramáticas do erotismo: a feminilidade e as suas formas de subjetivação em psicanálise, p. 240 e 241.

30 J. Birman, op. cit., p. 97.

31 J. Birman, op. cit., p. 98-9.

32 P. Fédida, “A relíquia e o trabalho do luto”, p. 53.

33 E. Sousa, op. cit., p. 157.

34 N. Goldin; E. Sussman, op. cit., p. 366.



Referências bibliográficas

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_____ (2001) Um nadador entre duas palavras. In: Ditos e Escritos III Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Goldin, N. e Sussman, E. (1997) Nan Goldin: I’ll be your mirror. [Publicado por ocasião da exposição de mesmo nome, realizada em out. 1996–jan. 1997.] Germany: Scalo, 1996.

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_____ (1997) O Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Manguel A. (2001) Lendo imagens – uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras.

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Sontag S. (2004) O mundo-imagem. In: Sobre a fotografi a. São Paulo: Companhia das Letras.

_____ (2004) Objetos de melancolia. In: Sobre a fotografi a. São Paulo: Companhia das Letras.

Sousa, E. Vasos comunicantes: sintonia e dissonâncias entre arte e psicanálise. Percurso, ano xv, n. 34, 1º. sem..





Abstract
Drawing from Nan Goldin[s photographic exhibition, I will be your mirror, featured at the New York Whitney Museum of American Art in 1996, the paper approaches different aspects of photography, its relation with death, beauty and the ephemeral. The author raises hypotheses about the role of photography as allegory, fetish and relic.


Keywords
photograph; beauty; death; hallow.

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 TEXTO

Nan Goldin: imagens ao infinito

Nan Goldin: Images infi nite
Paula Patrícia S. N. Francisquetti


A beleza será convulsiva ou não será beleza
[André Breton [1], Nadja]

Para mim tirar fotografi a é um caminho para tocar alguém.
Isto é um carícia, um carinho, um afago. Olho com olhos
quentes e não frios. Não analiso o que está acontecendo,
eu somente me inspiro para tirar fotografi as da beleza e da
vulnerabilidade de meus amigos.

[Nan Goldin]


No texto “A linguagem ao infi nito”, Foucault nos diz: escrever, falar para não morrer. Segundo ele, os Deuses nos teriam enviado os infortúnios para que fossem narrados. “É bem possível que a aproximação da morte, seu gesto soberano, sua proeminência na memória dos homens cavem no ser e no presente o vazio a partir do qual e em direção ao qual se fala” [2]. Com Nan Goldin, podemos pensar: fotografar para não morrer.

Nos anos 1970, Nan Goldin, uma fotógrafa americana contemporânea, começa a fotografar pessoas com as quais convive. Também fotografa pessoas por quem tem interesse e a partir daí passa a se relacionar com elas, inclusive através das fotos. Seu interesse, ou melhor, sua atração pelas pessoas fotografadas, segundo ela, parte de uma necessidade emocional. Haveria, entre ela e a pessoa fotografada, uma conexão profunda, uma espécie de reconhecimento. Ela diz, numa entrevista, querer sentir, através do ato de fotografar, o que o outro sente. É como se ao fotografar quebrasse uma barreira, um vidro, entre ela e quem é fotografado [3].

Suas lentes recolhem surpresas, lirismo, a partir de situações do cotidiano, como, por exemplo, pessoas se vestindo para uma festa, na cama, num banheiro, encontrando outras pessoas, fazendo sexo. Nas suas imagens deparamos com corpos frágeis, fortes; e também com afeto, dor, violência, tendências destrutivas, morte.

No início de sua carreira, a artista mostra suas fotos em bares underground, na forma de show de slides. A partir dessas experiências, desenvolve uma forma narrativa de mostrar suas fotos e nessas narrativas aparecem conjuntos afetivos. Goldin diz, numa entrevista com David Armstrong e Walter Keller, que não acredita num retrato único de uma pessoa, e sim na acumulação deles, devido ao que denomina como a complexidade presente nas pessoas [4].

Nesses conjuntos afetivos, a passagem do tempo é evidenciada, pois Goldin fotografa pessoas a quem está ligada e “com as quais dança a música do tempo” [5]. Em suas fotos, “o fl uxo ou a duração da vida pode ser capturada nas imagens de dias e noites de pessoas familiares” [6]. Ela segue na contracorrente das imagens da atualidade, que tendem a mascarar a passagem do tempo e seus efeitos.

Na exposição “Eu serei seu espelho”, que abrigou 25 anos da carreira de Nan Goldin, encontramos, por exemplo, um núcleo narrativo em torno de Cookie Mueller, uma de suas amigas e a quem ela descreve como adorável e carismática. Podemos ver fotografi as de Cookie em festas, com os amigos, com o fi lho, num banheiro com outra amiga, num bar, dando uma boa risada e exuberante, em seu casamento, seu marido morto, ela doente, ela própria morta, seu fi lho e um amigo dela desolados, o sofá vermelho vazio de sua sala. Nan Goldin fotografa o brilho e a ausência. Num certo momento de sua relação com Cookie, ela depara com a devastação da epidemia da Aids, com a morte, e suas lentes testemunham também esse momento.

Num primeiro contato com sua fotografi a, podemos nos incomodar com o despudor, com uma certa brutalidade das fotos. Seriam muito reais? Como a intimidade poderia ser posta a nu dessa maneira? Que espelho seria esse que Nan Goldin nos propõe? O espelho da atualidade? O espelho das feridas, das doenças, da morte, da vida, do sexo, do desejo de cada um de nós? E também a beleza… “

A linguagem, sobre a linha da morte, se refl ete: ela encontra nela um espelho; e para deter essa morte que vai detê-la não há senão um poder: o de fazer nascer em si mesma sua própria imagem em um jogo de espelhos que não tem limites” [7]. As fotos da exposição “Eu serei seu espelho” formam um labirinto de espelhos, um labirinto “livro-diário”, repleto de histórias… É difícil fechar os olhos, é difícil escapar diante de suas fotos enormes, tocantes, líricas e de um colorido surpreendente.

Todo retrato é um auto-retrato que refl ete o espectador, pois o olho não se satisfaz apenas em ver, diz Manguel [8]. Na exposição de Goldin, o espectador é levado, por suas fotos-janelas, à introspecção, a olhar para dentro de si, para seus sonhos, desejos, fragilidades, perdas, relações e ao mesmo tempo se torna parte integrante de uma época, de seus descaminhos e buscas. O eu é um outro [9]. Essa tensão entre o individual e o coletivo, entre o público e o privado, é marca da arte contemporânea.

Nas fotos de Goldin não encontramos apenas desolação diante da epidemia da Aids, morte, perdas, mas também experimentações e buscas por identidade, muitas vezes transgressivas; suas imagens nos mostram como a identidade é incerta; a fotógrafa retrata uma geração que lutou pela liberdade sexual, pela liberdade de expressão e foi ao limite – aliás, muitas vezes o ultrapassou. Não apenas retrata uma geração, mas, com sua arte, participa dessas buscas. Ela nos fala, numa entrevista, sobre seu complicado sentido de gênero [10].

Nos primeiros anos de sua carreira, encontramos muitas fotos feitas à noite, em quartos, banheiros, bares, festas. Nelas a intimidade é devassada e deparamos com um erotismo frenético, inquietante, tanto homossexual como heterossexual. Vemos muitas fotos de pessoas se beijando, fazendo sexo, se abraçando. Encontramos algumas fotos de quartos vazios, desarrumados, sendo que um deles mostra um jorro de sangue na parede que sugere um momento de violência.

O que inquieta em suas imagens é o entrelaçamento entre erotismo e morte. Para Foucault, a sexualidade moderna teria sido desnaturalizada pelos discursos (Freud, Sade) de forma violenta e lançada “em um espaço vazio onde ela só encontra a forma tênue do limite” [11]. E mais: a emergência da sexualidade estaria ligada à morte de Deus, assim como também a uma forma de pensamento que não busca a totalidade, mas interroga os limites [12].

A sexualidade foi absorvida no universo da linguagem, continua Foucault. “Ela faz a experiência de si mesma e dos seus limites na linguagem e nessa transgressão da linguagem que a leva, como levou Bataille, ao desfalecimento do sujeito falante” [13]. Na produção de Goldin, observamos como a sexualidade é experimentada e levada ao limite.

O espelho de Nan Goldin fere, atordoa e ao mesmo tempo embala, pela beleza e pelo afeto que transparece nas fotos. É interessante como em seu trabalho arte e vida se misturam. Ela nos diz, numa das entrevistas de seu catálogo, que foi muito infl uenciada pelo cinema (Truff aut, Fellini, Antonioni) e pelas divas (Garbo, Joan Crawford, Marlene Dietrich) [14].

Um importante fotógrafo japonês, Nobuyoshi Araki, em entrevista para Arturo Escandón, nos fala sobre Goldin e sobre seu próprio trabalho, que também envolve uma relação de intimidade com aquele que vai ser fotografado: “Se não existem contatos íntimos, as obras não têm força; na minha opinião, a fotografi a é uma forma de vida e, como tal, deve superar a realidade, deve ser mais interessante que a realidade, pois o que proponho é infundir vida nos espectadores, mudar suas próprias vidas, conduzir a novas experiências. A fotografi a não é e nem pode ser passiva” [15]. A fotografi a teria o poder de tornar visível o invisível do visível e, dessa forma, provocar, instigar, acordar o espectador. A intimidade propiciaria o acesso a alguma verdade?

Goldin nos revela estados da alma… Ela diz, numa entrevista, que suas fotos não são uma exploração das pessoas fotografadas. Ela procura dar retornos para essas pessoas que deram tanto de si a ela. Ao comentar sobre os povos primitivos que temem ter sua alma roubada numa fotografi a, afi rma que as pessoas deveriam ser fotografadas por pessoas da mesma tribo, pois não haveria perigo. Pensa que se pode dar para as pessoas acesso a algo, antes imprevisto, da alma delas [16]. Busca uma verdade. Muitas vezes, seus amigos lhe disseram que suas fotos os fi zeram se sentir melhor, saber mais de si, se aceitar numa direção diferente de antes etc. Há mesmo um sentido de aceitação em suas fotos [17].

A descoberta do espaço da experiência nós devemos a Breton; aqui, com esses fotógrafos, o ato fotográfi co é uma forma de experimentar a vida, de pesquisá-la, de torná-la mais intensa e mesmo de transformá-la; também podemos reconhecer em Nan Goldin e em Nobuyoshi Araki a questão da revolução, herança surrealista, pois neles a fotografi a tem a função de tocar as pessoas, mudar a vida, como para Breton: “um livro, uma frase, uma palavra por si sós podem constituir a antimatéria do mundo e compensar todo o universo” [18].

Para Susan Sontag [19], é como se, na atualidade, diante de um sentimento de realidade cada vez mais esvaziado, os fotógrafos procurassem, através das fotos, uma transfusão, ou seja, reavivar a realidade, viajar para ter novas experiências. Também para essa autora, as fotos seriam uma forma de aprisionar a realidade, de fazê-la parar, de deter o tempo, já que não se pode possuir o tempo, mas imagens…

A fotografi a e a morte

Entre esses quatro pontos cardeais que
a morte domina e esquarteja como uma
grande aranha, a linguagem tece sua
precária superfície, a fina rede onde se
cruzam os ritos e os sentidos.
[M. Foucault]

Fotografias, vestígios do tempo capturados pelo homem contemporâneo. Para Sontag,

[…] en quanto uma pintura, ainda que conforme os padrões fotográfi cos da semelhança, nunca é mais do que a afi rmação de uma interpretação, a fotografi a nunca é menos do que o registro de uma emanação (ondas refl etidas sobre os objetos), um vestígio material daquilo que foi fotografado e que é inacessível a qualquer pintura [20].

Como vestígio, a fotografi a aprisionaria, congelaria um instante do passado. E devido a sua imobilidade, sua fi xidez, guardaria uma relação com a morte. Aliás, a relação da fotografi a com a morte vem sendo objeto de refl exão por vários teóricos. Para Santaella, na fotografi a, morte e eternidade seriam indissociáveis; enquanto a vida passa, o signo permaneceria. A fotografi a guardaria para a eternidade uma imagem, uma cena que aconteceu uma única vez, e essa cena do passado poderia ser reproduzida ao infi nito.

Podemos fazer aqui um paralelo entre a fotografi a e o psiquismo. No psiquismo, morte e eternidade também estão presentes sob a forma de um paradoxo. Haveria ao mesmo tempo a crença na imortalidade e um saber sobre a morte. A ilusão da eternidade seria constitutiva do eu e a base para todas as outras ilusões. O ser humano resistiria à assunção da morte. “O sujeito vai se dizendo mortal, sem nunca afi rmar isso, no entanto, de maneira conclusiva” [21].

O teatro e a fotografi a teriam em comum uma relação com a morte, é o que escreve Barthes em seu lindo livro A câmara clara. Esse autor aponta para a relação original do teatro com o culto dos mortos, sendo que os primeiros atores teriam se destacado ao representarem o papel dos mortos. É interessante sua observação de que várias formas de teatro (o teatro totêmico, o teatro chinês, o Katha Kali indiano, o Nô japonês) usariam a pintura branca no rosto, o branco da palidez do cadáver. Para ele, por mais viva que a foto seja, ela “é como um teatro primitivo, como um Quadro Vivo, a fi guração da face imóvel e pintada sob a qual vemos os mortos” [22]. Como nos sonhos, na fotografi a e no teatro, os mortos retornam, adquirem fi guração. No cenário do sonho, do teatro e da fotografi a se trava um luta entre vida e morte.

A fotografia seria o inventário da mortalidade, para Sontag. “Basta, agora, um toque do dedo para dotar um momento de uma ironia póstuma. As fotos mostram as pessoas incontestavelmente presentes num lugar e numa época específi ca de suas vidas; agrupam pessoas e coisas que, num instante depois, se dispersaram, mudaram, seguiram o curso de seus destinos independentes” [23].

Ao acompanhar a exposição de Goldin, acompanhamos seu percurso afetivo e vital, através de seu olhar, e deparamos com suas incursões em vidas e países, assim como com suas paixões, amizades, perdas e obsessões. Através de fatias de sua vida, vislumbramos diversos núcleos narrativos que nos revelam a passagem do tempo. Neles, a morte faz presença na vida e dela Goldin faz várias aproximações no decorrer de sua obra. Em sua obra, os mortos fazem suas aparições.

As fotografias guardariam “a memória dos mortos como mortos. Mas, mesmo entre aqueles que ainda vivem, fotografi as funcionam como documentos dos efeitos da passagem do tempo e dos traços do envelhecimento. Testemunhas impiedosas da passagem da vida em direção à morte” [24]. E é isso o que nos atestam as fotografi as de Goldin, sendo que nelas encontramos, inclusive, fotos de pessoas mortas: testemunho, homenagem ou profanação?

Numa entrevista a artista nos fala de si como alguém em perigo e com medo. Diz que usa a fotografi a para se acalmar. O essencial, para ela, seria o gesto de fotografar como uma forma de sobreviver [25]. Nan Goldin parece travar uma luta contra a morte. Imagino que fotografar seria uma forma de a artista lidar com suas feridas, e, dentre elas, aquelas que a epidemia da Aids provocou, a morte de amigos queridos. E, como já dissemos, o psiquismo resiste à morte, por isso a luta. As fotos de sua exposição que mostram pessoas mortas escandalizam e ferem “de morte” os espectadores, pois ali a morte reaparece e nos aponta que somos mortais, fi nitos.

A beleza e a morte

A psicanálise introduziria um olhar diferente sobre o belo, isto é, arrebatador, ameaçador e obscuro, diz Edson de Souza. Para ele, “o belo é uma das faces da verdade e, portanto, sempre surpreendente. A arte busca imagens que possam nos despertar e permitir novamente pensar o mundo em que vivemos” [26]. E não é justamente isso que encontramos nas fotos de Nan Goldin? De qual verdade Nan Goldin nos fala? O que nos provoca tal arrebatamento? As marcas do tempo, a revelação do efêmero, o estado de desamparo que transparece nas fotos?

O efêmero emprestaria certo brilho e encanto ao belo, nos diz Freud em seu texto “Sobre a transitoriedade”. A revolta contra o luto, o apego excessivo a certos objetos nos impediriam de apreciar a fruição da beleza. A morte e a beleza parecem caminhar juntas. Lacan, no seminário sobre a ética da psicanálise, nos diz: “a função do belo é precisamente a de nos indicar o lugar da relação do homem com sua própria morte, a de nos indicá-lo somente num resplandecimento” [27].

Retomando o texto de Freud, o brilho, o encanto da beleza da paisagem, do rosto e do corpo humanos se deveriam ao efêmero, à sua fragilidade, ao que pode mudar, desaparecer. Agora, Lacan: o belo não teria nada a ver com o ideal, mas indicaria uma posição numa certa relação temporal. Ele exemplifi ca essa idéia através dos pintores holandeses. Uma natureza morta, por exemplo, mostra e esconde o que nela ameaça como a decomposição. A pintura, uma natureza morta, presentifi caria o belo como uma relação temporal que faz o ideal entrar em função, isto é, “em função de uma passagem para o limite” [28].

Assim o sofá vermelho vazio de Nan Goldin, assim as botinas de Van Gogh que Lacan retoma no seminário acima citado: apontam para uma presença e uma pura ausência. A história da arte, ensina Lacan, desde as pinturas de cebolas gregas comentadas por Aristófanes, teria muitos exemplos para nos mostrar como qualquer objeto – e até mesmo as cebolas – pode ser o signifi cante pelo qual vem vibrar o que chamamos de belo.

A beleza aqui tratada seria atravessada pela morte, pela castração. Nas imagens de Goldin, a passagem do tempo não é mascarada, mas revelada. É importante uma ressalva, pois, para Birman [29], a noção de belo se identifi caria com a noção de falo relacionada às idéias de perfeição e completude e o resultado de uma sublimação teria a ver com o sublime e não o belo. O sublime seria o que denomino como a beleza arrebatadora, convulsiva, que traz consigo um brilho, um encanto que se deve ao efêmero, como Freud nos aponta em seu texto “Sobre a transitoriedade”.

Outras idéias

A morte é o limite e o centro, o mais essencial dos acidentes da linguagem, para Foucault. E mais: no espelho da morte, nessa duplicação que faz sua dobra originária, nesse espaço virtual, a linguagem jorra. A produção do belo, a arte, isso que Foucault chama de murmúrio, é uma forma de se lidar com o desamparo e a morte. A criação, a arte, a fotografi a, as várias formas de linguagem que têm relação com o sintoma são formas de se lidar com o vazio, com o sofrimento provocado pela mortalidade e a dimensão trágica da existência.

Para os psicanalistas, o processo psíquico envolvido na produção do belo objeto é a sublimação. Também para a psicanálise, a beleza seria uma forma de se lidar com a morte, ou, dito de outra maneira, de “atravessar o drama que se desenrola entre perda e domínio sobre a própria perda-desvalorização-condenação à morte”. Kristeva nos fala do luto que a sublimação possibilita. A sublimação sempre possibilitaria um luto? Produtos da sublimação poderiam funcionar como uma relíquia, uma alegoria ou como fetiche? Vejamos.

Nomear o sofrimento seria uma forma de reabsorver o luto, nos diz Kristeva. Para a autora, a arte possibilitaria ao sujeito encontrar um sentido para o que fi cou sem sentido, depois da perda que leva ao luto, e só a sublimação resistiria à morte. O belo objeto, produto da sublimação, viria reparar essa perda.

A dinâmica da sublimação, mobilizando os processos primários e a idealização, tece em torno do vazio depressivo e com ele um hipersigno. É a alegoria como magnifi cência do que não existe mais, mas que retoma uma signifi cação superior porque estou apto a refazer o nada, sempre da forma melhor e numa harmonia inalterável, aqui e agora, e para a eternidade, visando um terceiro ser [30].

A alegoria, o belo objeto, na sua signifi cação sublime, seria o artifício, um produto do imaginário que teria relação com o efêmero. A fotografi a poderia ser tomada como uma alegoria [31].

De outra forma, poderíamos pensar que a fotografi a, quando carrega o belo relacionado ao falo, poderia se aproximar do fetiche, isto é, ponto de parada, algo que desvia o olhar daquilo que tem a ver com a castração, a diferença dos sexos e a fi nitude. Mas, este não é o caso da fotografi a de Nan Goldin, a meu ver, pois nas suas fotografi as deparamos com a morte, a fi nitude e muitas questões relacionadas à diferença sexual.

E a relíquia? Todos sabem o quanto é difícil realizar que alguém morreu, o psiquismo reluta e se revolta em aceitar tal fato. A relíquia teria a função de nos ajudar no processo do luto, ao conservar nela alguma coisa da pessoa que morreu e da qual nos separamos, sem termos de renunciar à constatação da separação. Segundo Fédida: “apesar de um saber sobre a separação, é preciso acreditar que alguma coisa subsiste” [32]. A relíquia, objeto do qual o morto se separou, pode manter visível algo do morto e, assim, protege o olhar e a imaginação da decomposição do cadáver e da angústia da sua destruição.

Poderíamos pensar na fotografi a como uma relíquia? Penso que sim, ela não nega a morte, muitas vezes a fi gura, ao mesmo tempo que também conserva algo do morto – sua imagem – e a eterniza.

Recorrências

Encontramos algumas imagens que se repetem, ao longo da exposição de Goldin: vários auto-retratos; pessoas em camas olhando para a câmara, fazendo sexo, se abraçando etc. diferentes pessoas em banheiras, rios, lagoas e mares; ela e outras pessoas diante de um espelho; ela e outras pessoas perto de uma janela; ela e outras pessoas dentro de um trem olhando para fora através de uma janela; algumas paisagens; árvores e fl ores que cruzam verticalmente a foto; e também a imagem da cruz.

Suas janelas nos fazem olhar para uma luz que está fora do cômodo, do quarto, da sala, do trem fotografados. É muito diferente das imagens dos quadros de Veermer, nos quais a luz penetra no recinto e ilumina um gesto doméstico, como a leitura ou a escrita de uma carta, o leite sendo derramado de uma vasilha para outra. A luz em sua fotografi a nos convida a olhar, ou melhor, a contemplar o mundo que está alhures.

Sousa [33] nos diz que Breton considerava cada pintura uma janela. Segundo ele, Breton se interessava mais pelas janelas que abriam para algo de perder de vista. As fotografi as de Goldin, como a pintura para Breton, são como janelas e nos fazem olhar para fora e para dentro de nós. O perder de vista, esta imagem-limite me remete à fotografi a de Goldin, “Empty landscape from train”, Suíça (1993) [34]. Nela encontramos uma massa de céu que se encontra com a neve e borra a linha do horizonte. São muitas nuances de branco e de um verde quase branco.

No final do texto “Sobre a transitoriedade”, Freud afi rma que o luto tem um fi m. Depois de tanta dor, depois do trabalho do luto que consome, a libido fi ca liberada para investir em novos objetos. Nesse texto, escrito durante a Primeira Grande Guerra Mundial, Freud já fala em esperança, naquilo que sobrevive à morte, na reconstrução depois de tanta destruição e no valor daquilo que se mostrou perecível, mas que tem lugar no coração dos homens.

Nan Goldin olha para si mesma e para seu mundo, em diferentes momentos de sua vida, e faz diferentes e novas recomposições de si e de seu mundo. A dor, a doença, a morte fazem seus golpes e se fi xam no papel fotográfi co. A tempestade de fl ores de cerejeira acaricia seus amigos e os diverte. A água purifi ca, renova, e traz algo que tem a ver com renascimento. O trem passa como a vida: ficam as fotos para os que ficam.

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