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Resumo
O artigo aborda a dimensão visual do sonhar na sua relação com as artes visuais. Parte-se do paralelismo entre sonho e cinema como formas de “pensamento por imagens” e discute-se seu estatuto mágico e primitivo, utilizando-se a noção winnicottiana de ilusão para tratar dos paradoxos em questão. Critica-se, por fi m, a idéia de que o caráter alucinatório do sonho implica uma “arte visual privada”, já que o sujeito sonhador está em uma comunicação sutil com o outro e com o campo da cultura.


Palavras-chave
sonhar; criatividade; magia; artes visuais; cinema; Winnicott.


Autor(es)
Decio Gurfinkel
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor nos cursos "Psicanálise - teoria e clínica" e "Psicossomática" do mesmo Instituto. Doutor pelo Instituto de Psicologia da USP e autor dos livros Viagens ao informe: o sonhar e a experiência psicanalítica (em preparo), Do sonho ao trauma: psicossoma e adicções (Casa do Psicólogo) e A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania (Vozes).


Notas

1 A cooperação inconsciente é, para Winnicott, o contraponto da resistência, sendo a primeira derivada da transferência positiva, e, a segunda, da transferência negativa. Os sonhos, conforme são recordados e trazidos para análise de modo produtivo, cumprem um importante papel na cooperação inconsciente; como via régia de acesso ao inconsciente, eles constituem um canal especial de comunicação entre inconscientes (D. W. Winnicott (1962) “The aims of psycho-analytical treatment”).

2 Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe (no prelo).

3 J. B. Pontalis, Entre el sueño y el dolor.

4 A tela do sonho foi um conceito introduzido por Bertram Lewin na década de 1940 e retrabalhado por diversos autores, tais como Winnicott, Khan, Fédida e Pontalis; para Lewin, o sono é a tela do sonho.

5 R. Cromberg, “Tornar-se autora”.

6 A expressão foi utilizada pelo próprio Freud, que observou – resgatando também outras pesquisas – o contraste evidente entre o estado de vigília, caracterizado por uma atividade mental que opera por conceitos, e a vida psíquica do sonhador: “o sonho pensa principalmente por imagens” (“La interpretación de los sueños”, p. 378).

7 R. Cromberg, “Tornar-se…”, p. 153-4.

8 R. Luz, “Cinema e psicanálise: a experiência ilusória”.

9 S. Freud (1913), “Totem e tabu”, op. cit., v. 2.

10 Para compreendermos melhor a sutileza da concepção genética de Winnicott, é preciso notar a distinção fundamental entre a experiência de onipotência da área de ilusão e a onipotência patológica, própria do estado dissociado do fantasiar (cf. D. W. Winnicott, “Dreaming, fantasying and living: a case-history describing a primary dissociation”, p. 30 – nota de rodapé).

11 R. Cromberg, op. cit., p. 9.

12 R. Luz, op. cit., p. 241.

13 R. Luz, op. cit., p. 240.

14 S. Freud, “Totem…”, p. 1800.

15 S. Freud, “Totem…”, p. 1804.

16 Lembremos que a cultura ocidental vive assombrada pela ameaça de as imagens pintadas nas paredes de Lascaux estarem desaparecendo, como um sonho esquecido…

17 Oliver Sacks utilizou o modelo do cinema – com seu paradoxo de uma imagem em movimento – para abordar, a partir da neurologia, o fluxo de consciência: “um fi lme, com seu fluxo constante de imagens tematicamente interligadas, sua narrativa visual integrada segundo os pontos de vista e os valores do diretor, não é uma má metáfora para designar o próprio fluxo de consciência” (O. Sacks, “A torrente da consciência”, p. 5).

18 Um bom modelo para compreendermos essa fixidez da imagem é o exibicionismo da histeria, que comporta um aprisionamento imaginário devido ao investimento excessivo na ordem materna em detrimento da ordem paterna. A chave dessa alienação no outro encontra-se no processo de identifi cação. Cf. C. Bollas, Hysteria.

19 R. U. Cromberg, “Algumas coordenadas de leitura de A interpretação dos sonhos”, p. 24.

20 M. Chnaiderman, “Falas tornadas imagens ou imagens faladas: psicanálise, Godard e Tarkovsky”, in G. Bartucci (org.), op. cit.

21 Esta metáfora é brilhantemente trabalhada por Osman Lins em seu romance Avalovara.

22 F. E. Teixeira, O terceiro olho, p. XXII.

23 Em que pesem os desafi os e problemas que os saltos entre biologia, psicanálise, estética e fi losofi a comportam, creio estarmos aqui no campo dos enigmas de uma “fenomenologia da percepção”.

24 R. Mezan, “Sonhos induzidos: a efi cácia psíquica da publicidade”, in Interfaces da psicanálise, p. 316.

25 Silvia Alonso ressaltou o caráter ambíguo que a força das imagens comporta. Se, por um lado, a cultura de massas faz uso do poder hipnótico das imagens, há também a contraface dessa tendência de captura: o seu poder de evocação, “que se mostra por meio da forma pela qual a obra de arte visual nos interpela, através das cores, das formas, das linhas e dos movimentos que conseguem abrir brechas de entrada e produzir impacto nos traços erógenos do corpo” (S. Alonso, “Encontros entre imagens e conceitos: refl exões sobre a temporalidade em psicanálise”, in G. Bartucci (org.), op. cit., p. 188).

26 Para maior desenvolvimento, consultar meu livro Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe (no prelo).

27 C. Sampaio, “Sonho e cinema”, p. 96.

28 Abordei a aproximação entre viajar e sonhar em “Sonhar e viajar: na vertical do estrangeiro”.

29 R. Kaës, La polyphonie du rêve: l’expérience onirique commune et partagée, p. 211.

30 Em outra ocasião, ela comentou, ao conversarmos sobre o sonho de Alice: “o bom do sonho é que nele os bichos falam…” Ora, é evidente que o gato de Alice prenuncia os desenhos animados – sonhos infantis compartilhados – que estavam por vir, e que realizam o desejo simples, antigo e universal de falar com os bichos.

31 O cineasta Francisco Ramalho Jr., ao sustentar que a ilusão é a força motora do cinema, assinalou também a sua função agregadora: pois se a ilusão “é uma ocupação solitária, no cinema passa a ser uma ocupação social: numa sessão de cinema, centenas de pessoas estão agregadas na mesma ilusão da narrativa de um fi lme” (F. Ramalho Jr., “Ilusão e cinema”, p. 86).

32 Essa antevisão profética poderia ser compreendida como uma percepção endopsíquica inconsciente do fi lósofo da experiência de seu próprio órgão-olho, à maneira da percepção hipocondríaca que Freud supôs se dar em certos sonhos? Bem, essa interpretação especulativa, de caráter bastante impressionista, deve ser temperada com um olhar mais ponderado sobre a história do conhecimento. A sensibilidade de Platão ao visual não se restringia apenas ao plano onírico; pois, no Timeu, ele já nos apresentou uma sistemática e cuidadosa refl exão sobre a visão: a teoria da emissão. Tal concepção foi retomada e transformada por Aristóteles, que descreveu o princípio da câmara escura – só viabilizada como aparato no fi nal do século XVI. Ora, as bases da ciência ótica se encontram justamente na antigüidade grega, de acordo com três tradições ou linhas de pesquisa. A tradição fi losófi ca de Platão e de Aristóteles infl uenciou e se desenvolveu em paralelo a, por um lado, uma tradição médica dedicada ao estudo da anatomia e fi siologia do olho (Alcmeon de Crotona e Galeno de Pérgamo), e, por outro, uma tradição matemática voltada para a explicação geométrica da percepção do espaço (Euclides e Ptolomeu). A segunda era signifi cativa da história da óptica se deu no século XIII, no mundo árabe, e foi fi nalmente sucedida pelos trabalhos revolucionários de Kepler, no início do século XVII (cf. C. R. Tossato, “A função do olho humano na óptica do fi nal do século XVI”, p. 415-41). Sobre a releitura da mítica platônica a partir da psicanálise, ver também D. Gurfi nkel, “A mítica do encontro amoroso e o trabalho de Eros”, trabalho preparado para a Segunda Jornada sobre o Feminino do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, 2007 (inédito).

33 A fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty foi uma das contribuições para esta “fi losofi a da visualidade” que merece destaque, e que fala de perto ao psicanalista (cf. D. Gurfi nkel, “Fé perceptiva e experiência de realidade” e “Sonhar e viajar: na vertical do estrangeiro”).



Referências bibliográficas

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Bollas C. (2000) Hysteria. São Paulo: Escuta.

Chnaiderman M. (2000) Falas tornadas imagens ou imagens faladas: psnálise, Godard e Tarkovsky. In: Bartucci G. (org.) Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago.

Cromberg R. (1997) Algumas coordenadas de leitura de A interpretação dos sonhos. In: Alonso S. L.; Leal A. M. S. (orgs.) Freud: um ciclo de leituras. São Paulo: Escuta/Fapesp.

_____ (2000) Tornar-se autora. In: Bartucci G. (org.) Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago.

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Freud, S. (1900/1981) La interpretación de los sueños. In: Obras completas de Sigmund Freíd. Madrid, Biblioteca Nueva, v.1.

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_____ (2003/2004) Sonhar e viajar: na vertical do estrangeiro. Percurso, nº 31/32.

_____ (s/d) Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe (no prelo).

_____ (2007) A mítica do encontro amoroso e o trabalho de Eros. Trabalho preparado para a Segunda Jornada sobre o Feminino do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, 2007 (inédito).

Kaës R. (2002) La polyphonie du rêve: l’expérience onirique commune et partagée. Dunod: Paris.

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Mezan R. (2002) Sonhos induzidos: a efi cácia psíquica da publicidade. In: Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras.

Pontalis J. B. (1978) Entre el sueño y el dolor. Buenos Aires: Sudamericana.

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Teixeira F. E. (2003) O terceiro olho. São Paulo: Perspectiva.

Tossato C. R. (2005) A função do olho humano na óptica do fi nal do século xvi. Scientiae Zudia, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 415-41.

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_____ (1996) Dreaming, fantasying and living: a case-history describing a primary dissociation. In: Playing and reality. London: Routledge.





Abstract
The paper approaches the visual dimension of dreaming in its relationship with visual arts. A sort of “thought through images” permits a parallel between dream and cinema; its magical and primitive statute is discussed, and its paradoxes deal with Winnicott’s notion of illusion. Finally, it criticizes the idea that dream hallucinatory character leads to a “private visual art”, since dreamers are in a subtle communication with others and with the fi eld of culture.


Keywords
dreaming; creativity; magic; visual arts; cinema; Winnicott.

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 TEXTO

Sonhar: uma arte visual

Dreaming: a visual art
Decio Gurfinkel


O sonho, constatou Freud, é predominantemente visual. Neste artigo, explorarei esta dimensão visual do sonhar, abordando- a na sua relação com uma dimensão análoga a ela no campo da cultura: as artes visuais. Seria o sonho uma espécie de arte visual privada, de si para si? Ou será que, no escuro e no silêncio de seu cinema privado, o sujeito sonhador não está em uma comunicação sutil com o outro e com o campo da cultura? Ora, a experiência psicanalítica conta com esta última possibilidade, já que, devido à relação inerente entre sonho e transferência, o sonhar é tomado como um ato de comunicação e de cooperação inconsciente [1] com o analista.

Iniciaremos nosso percurso pela aproximação entre sonho e cinema.

Sonho e cinema

Apoiando-nos na descoberta dos movimentos rápidos dos olhos (rem), encontramos uma curiosa porta de entrada para abordar o paralelo entre sonho e cinema. Afi nal, ambos caracterizam- se por um tipo de pensamento por imagens, animadas continuamente pelo movimento do psíquico. Aqui psicanálise, estética e neurologia podem se encontrar em um campo de diálogo possível, ainda que não de todo pacífi co.

Os movimentos rápidos dos olhos, identifi cados na década de cinqüenta em estudos da fi siologia do sono, distinguem-se de outras formas de ação motora de maneira notável. Sobre a especifi cidade desse tipo de movimento, destaquei em outro lugar [2] o seu parentesco com a atividade de pensamento, sinalizando uma forma particular de pensamento por imagens. Ora, este tipo de pensamento por imagens assemelha-se a um cinema privado.

A relação entre cinema e psicanálise tem sido bastante ressaltada, a começar por serem eles, na sua origem, praticamente contemporâneos. A analogia entre sonho e filme contribui certamente para reforçar o parentesco entre os dois campos. É bastante freqüente, ao longo das análises, o relato de fi lmes em meio ao discurso do analisando. Não creio que devemos considerar esta ocorrência em total equivalência a qualquer outra, já que, associando-se a partir de um fi lme recordado, observamos que o efeito resultante assemelha-se àquele da lembrança e do trabalho sobre um sonho em análise. Muitas vezes dá-se um lapso que substitui filme por sonho, com já havia assinalado Pontalis [3]. Se o fi lme necessita de uma tela de projeção, podemos supor que os olhos, ao se fecharem, criam também uma tela: tela-anteparo que impede a passagem dos estímulos visuais oriundos do mundo exterior, e tela-receptáculo como lugar onde as imagens interiores são projetadas [4]. Seria a alucinação do sonho, assim, um processo psíquico que é de certa forma imitado por essa forma de arte? Qual é o alcance dessa analogia?

“A revelação de que nossos sonhos pensam, essencialmente, através de imagens, transforma o livro inaugural da psicanálise, A interpretação dos sonhos, de Freud, no primeiro grande ensaio sobre a mecânica psíquica do cinema” [5]. Renata Cromberg propõe que o principal elemento que une cinema e psicanálise seja este “novo pensamento”, que emergiu do deslocamento da função habitual dos órgãos; o pensar por imagens [6] que se produz no sonho induziu a construção de um dispositivo que instrumentaliza esta transformação e torna-a um método: a escuta pelas imagens, que coloca

o ouvido na posição de um olho capaz de acompanhar o curso de uma fala e de se aproximar da disposição inconsciente, criando um pensamento por imagens, ou um cinema singular que possibilita ao analista atingir as fi guração do fantasma [7].

Exploraremos algumas particularidades deste pensamento por imagens.

A magia nas artes visuais

Qual é a natureza e a especifi cidade da experiência fílmica? Como pensar a experiência estética que vive o sujeito que assiste a um filme? E como a psicanálise pode contribuir para o seu esclarecimento, participando dos debates sobre a estética da recepção?

Há uma tradição de pesquisa sobre o espectador de cinema, de inspiração psicanalítica, que o toma como um sujeito de desejo e de identifi cações inconscientes; mas há também uma outra possibilidade de abordagem: aquela que se interessa, como ressaltou Rogério Luz [8], pelo “regime psíquico” do indivíduo que assiste a um fi lme. Trata-se, segundo Edgar Morin, de um “regime psíquico intermediário” – nem sonho e nem devaneio: o espectador “sabe” que está acordado e em uma sala de cinema, “assistindo” a uma sucessão de imagens concebidas por um artifício mas, no entanto, em certos momentos, ele efetivamente mergulha no fi lme e participa da ação imaginária. Christian Metz utilizou ainda a expressão alucinação paradoxal para indicar, por um lado, uma leve suspensão temporária da prova de realidade e, por outro, a distância desta da “verdadeira” alucinação. Na experiência fílmica se daria, assim, uma mistura de percepção e alucinação.

O que está em causa – tanto na experiência fílmica quanto na experiência do sonhar – é o estatuto da percepção que ali se dá. A metapsicologia freudiana desenvolveu instrumentos teóricos sofi sticados para abordar tal questão, especialmente através de sua concepção a respeito dos modos de funcionamento psíquico e da problemática crucial da instauração da prova de realidade.

Um tempo primitivo do psíquico é concebido como um processo primário e, posteriormente, como o regime do princípio do prazer. Nele, predomina a satisfação alucinatória do desejo e não se reconhece ainda a diferença de tecido entre alucinação e percepção, de modo que fantasia, sonho e “percepção objetiva da realidade compartilhada” são igualmente percepções. O sonho – como fi lme projetado na tela interior do sono – não se distingue das imagens em movimento do viver cotidiano no “mundo exterior”. Esta indistinção do primitivo é comum ao estado psicótico, à viagem com drogas e à experiência onírica.

Em um segundo tempo – aquele do processo secundário –, o psíquico conquista a capacidade de discernimento, o que dá as condições para a instauração da prova da realidade. Um fi ltro se instala na porta de entrada do processo perceptivo que julga as percepções afl uentes segundo seu estatuto: interno ou externo? Alucinação ou percepção de realidade? Verdadeiro ou falso? Fantasia ou fato? No caso do sonho se dá um processo curioso: o julgamento é realizado a posteriori, já que durante o tempo mítico do acontecimento do sonho a prova de realidade esteve suspensa. É no tempo secundário do estado desperto que podemos julgar: foi um sonho! No entanto, o próprio Freud supôs que, em algum lugar do psiquismo, o sujeito que dorme sabe que dorme; esta observação é muito interessante, pois é de certo modo precursora de alguns desenvolvimentos pós-freudianos, já que reconhece um paradoxo segundo o qual o primário e o secundário coexistem na experiência do sonhar. Esse mesmo paradoxo está presente na experiência fílmica, conforme apontou Metz com a proposição de uma “alucinação paradoxal”.

Freud aprofundou o tema do primitivo do psíquico, de modo fascinante, em Totem e tabu [9]. O primitivo pode ser encontrado em três registros: o primitivo dos povos “selvagens” ou “não civilizados” (um primitivo fi logenético), o primitivo da infância de todos os indivíduos (o primitivo ontogenético) e o primitivo da neurose, que se manifesta no “homem civilizado adulto”. O percurso do desenvolvimento psíquico das formas de pensamento – do primário para o secundário – é estudado em paralelo ao desenvolvimento da concepção de universo na cultura humana. Freud descreveu três grandes formas de concepção do universo, que se sucederam historicamente: a animista, a religiosa e a científi ca. No período animista, os povos primitivos povoavam o mundo com inúmeros seres espirituais (benéfi cos e maléfi cos) que seriam os causadores dos fenômenos naturais. Condição preliminar de qualquer religião, tal concepção de universo persiste nas superstições e nos mitos, e é particularmente evidente no pensamento obsessivo. Um traço distintivo do animismo nos interessa particularmente: a magia. A magia busca controlar os fatos do mundo por um controle imaginário, e para tanto utiliza-se de seus sortilégios: os feitiços e os contra-feitiços. Ela se assenta na confusão entre uma conexão de idéias e uma conexão causal real, precede a prova de realidade e é motivada basicamente pelos desejos humanos; nesse sentido, ela nos remete ao tempo dos processos primários e do princípio do prazer.

Ora, o que merece ser reconsiderado neste modelo freudiano é o caráter linear de sua concepção evolucionista, e uma sutil negativização do primitivo. A fi gura do paradoxo – tão genialmente trazida por Winnicott para o campo psicanalítico – nos permite compreender não apenas os restos ou a persistência de um primitivo irredutível no humano, mas também a coexistência estrutural entre primário e secundário que produz a graça e a coloração da vida. A magia e a onipotência do pensamento não pertencem apenas ao negativo psicopatológico da neurose e da psicose, mas também e fundamentalmente às experiências da área transicional: o brincar, o sonhar e o viver criativo. Houve um tempo mítico na ontogênese de cada um de nós em que fi zemos uma travessia fundante: aquela do auto-erotismo à escolha de objeto, ou do subjetivamente concebido ao objetivamente percebido. Mas essa passagem não é apenas “coisa do passado”: ela perdura em todos os sujeitos humanos e constitui a terceira área da experiência – um espaço potencial de movimento psíquico e de gestualidade. É nesse espaço potencial da cultura que assistimos a fi lmes!

O paradoxo de Winnicott nos permite compreender que o desenvolvimento humano não signifi ca uma substituição ou superação do animismo pela concepção científi ca do universo – ou do processo primário pelo processo secundário –, e sim uma peculiar articulação entre os dois registros que produz um fenômeno terceiro: a ilusão. O positivo da ilusão contém a magia do humano, a experiência de onipotência [10], e dota o sujeito da capacidade criativa, que para Winnicott é a maior conquista do ser humano. A área da ilusão é, nesse sentido e paradoxalmente, o “ápice” do desenvolvimento! A ciência e o animismo podem, assim, se reencontrar continuamente em sucessivos movimentos em espiral, e não segundo uma lógica linear.

Sabina Spielrein parece também ter intuído a importância e o valor positivo da magia na experiência humana, conforme ressaltou Renata Cromberg em seu trabalho de pesquisa sobre esta pioneira do movimento psicanalítico. Em seu estudo de 1920 (1922) sobre a origem da linguagem, Spielrein apoiou-se nas concepções freudianas de Totem e tabu para formular a proposição de três tempos na constituição da linguagem: o estágio autista, o estágio mágico e o estágio social. No estágio mágico, se por um lado há uma vaga noção de um mundo exterior, impera também a crença na onipotência da palavra. Assim, o primeiro balbucio da criança (“mö-mö-mö”) que originará a palavra “mamãe” nada mais é do que uma reprodução dos movimentos labiais que acompanham a amamentação, sendo ele mesmo a ação alucinatória positiva e mágica da presença do objeto-seio, que antecede a operação da ausência do mesmo. Essas formulações assemelham-se, em alguns aspectos, à teoria winnicottiana da ilusão. Como ressaltou Cromberg, enquanto Freud forjava uma teoria negativa da origem da linguagem com o exemplo prototípico do Fort-Da, “Spielrein irá mais além de Freud, a partir do próprio Freud, dizendo que há um caminho positivo antes que a linguagem substitua a coisa” [11]. E, de fato, podemos considerar o momento mágico entre o estágio autista e o estágio social como o espaço intermediário postulado por Winnicott; talvez tenha faltado a Spielrein a ferramenta conceitual do paradoxo, que tornou possível uma tópica estrutural para a experiência da ilusão e conferiu à magia um lugar defi nitivo no universo da cultura. De qualquer modo, as proposições de Freud (em Totem e tabu ) e de Spielrein de um modelo em três tempos – animista, religioso e científi co, ou autista, mágico e social – contrastam com a tendência dualista do pensamento freudiano (processo primário / processo secundário, princípio do prazer / princípio da realidade), prenunciando a necessidade de considerarmos uma terceira área da experiência, conforme propôs Winnicott.

No cinema, uma seqüência de imagens impressas em fotogramas e projetadas sucessivamente produz a ilusão de movimento. Por uma espécie de magia, o estático torna-se dinâmico, e uma fi gura congelada é assim animada. A alucinação paradoxal indica precisamente a possibilidade de encontro, na experiência fílmica, entre princípio de realidade e experiência mágica, ou entre concepção animista e concepção científi ca do universo.

É nessa mesma direção que Rogério Luz ressaltou a pertinência de avançarmos, a partir dos modelos de inspiração freudiana, em direção à teoria winnicottiana da ilusão, pois esta contém em si a possibilidade de ultrapassar a posição dilemática que opõe alucinação e percepção, ao mesmo tempo que oferece uma ferramenta metapsicológica para compreender a natureza paradoxal de certas experiências. Assim, “o que é característico da experiência do fi lme é um suspender provisoriamente o confl ito entre aspectos subjetivos e objetivos da experiência para criar entre eles uma ponte, um lugar por onde transitar, a partir de uma disposição inicial de relaxamento e de repouso, não direcionado por um objeto ou objetivo determinados” [12]. Desse modo, é a própria natureza do fi lme que é paradoxal. A experiência fílmica é, ainda, uma abertura – potencial – para o futuro: o fi lme é o modelo de um “mundo possível”, e o espectador pode experimentar- se, efetivamente, “imerso em um devir” [13].

É curioso como Freud apontou a magia inerente ao brincar, e como reconheceu na arte uma exceção à dicotomia animismo/cientifi cismo. A criança que brinca experimenta, segundo interessante expressão utilizada pelo próprio Freud, uma alucinação motora [14], uma vez que – ao contrário do bebê que realiza alucinatoriamente seu desejo – ela já conta com o recurso da ação motora. Podemos entrever, na expressão alucinação motora, um esforço para transcender a dicotomia prazer/realidade, mas que no entanto não avança o sufi ciente. E quanto à arte? “Com razão se fala da magia da arte, e se compara o artista ao feiticeiro” [15]. Para Freud, a arte é, portanto, o único domínio onde a onipotência das idéias se manteve até nossos dias. Nela, o homem consegue realizar seus desejos provocando efeitos afetivos “como se tratasse de algo real”, e isto através – e a expressão é novamente de Freud – da “ilusão artística”. Como na magia do cinema!

Para reforçar a aproximação entre arte e magia, Freud acrescentou que, nos tempos primitivos, a arte era efetivamente movida por intenções mágicas, não sendo ainda uma “arte pela arte”. Assim, as pinturas de animais nas paredes das cavernas da França tinham a fi nalidade de exorcizar, mais do que de proporcionar prazer estético. Ora, o exemplo escolhido por Freud é bastante sugestivo. A superfície das paredes é a antecessora da tela de uma pintura e da tela de projeção de uma sala de cinema, mas lembra também a tela interior de projeção dos sonhos. Afi nal, os primitivos retratavam em suas pinturas os objetos ameaçadores que os assombravam, assim como em um típico sonho de angústia ou em um fi lme de terror! Podemos também entrever, no exemplo de Freud, o tema da dialética entre um espaço interior e um espaço exterior. Dentro, um lugar protegido (self) onde a criação pode emergir e, do outro lado, o espaço aberto da ameaça e do fascínio – um fora, onde a vida se desenrola e de onde emana uma misteriosa força de atração. Nele habitam os objetos que alimentam o sonhar.

O exemplo das pinturas em cavernas pode ser tomado também como uma alusão indireta ao mito da caverna de Platão, com a problemática da “ignorância” derivada da limitação de determinado ponto de vista. Onde podemos reconhecer a “realidade”: nas sombras projetadas no interior do cinema-sonho ou na “realidade objetivamente percebida” fora da caverna? Como situar a realidade psíquica retratada na cena onírica: engano perceptivo ou verdade do inconsciente? Ora, tanto na experiência onírica quanto na experiência fílmica é justamente a ambigüidade entre dentro e fora e o desconcerto quanto à “verdadeira realidade” que instauram o estado de magia que proporciona a experiência criativa. A metáfora da caverna não alude – ainda – à solidão essencial do ser humano e aos dilemas da comunicação, que tornam o sonhar uma contínua brincadeira de esconde-esconde [16]?

A partir da aproximação entre arte e magia, compreendemos que o próprio sonhar pode ser tomado como um modelo prototípico das artes visuais. Ele é, em sua essência, precisamente uma arte visual. Bem: podemos pensar que a magia das artes visuais assenta-se na magia das imagens em movimento do sonho.

Um olhar em movimento

O aspecto que ora nos interessa provém justamente da origem etimológica do termo cinema, que signifi ca movimento. Se a imagem, como objeto de contemplação, vinha sendo – na história da arte – até então predominantemente estática, ela tornou-se, com o cinema, dinâmica; a partir da sucessão rápida de imagens – como em um “movimento rápido dos olhos” – cria-se a ilusão de movimento, ilusão que se torna, então, o verdadeiro objeto e a fonte da magia do cinema [17]. Ganha-se em movimento mas perde-se em imagem, uma vez que esta deixa de ser um objeto de contemplação, diante do qual o tempo presente pode ser dilatado de acordo com um ritmo determinado por quem olha; em contraste com a tela de uma pintura ou com o instante congelado na fotografi a – sua antecessora lógica –, a imagem do cinema é evanescente, pois está condenada a ser rapidamente substituída pela seguinte. A evanescência da imagem do cinema pode ser tomada como um antídoto diante dos riscos da fascinação pela fi xidez da imagem, tornando o sujeito presa de um imaginário alienante [18]?

A imagem de um fi lme se alimenta de uma dialética: no bom cinema, ela é pregnante e fi xa-se profundamente na alma do espectador, mas ao mesmo tempo já não está mais lá, em exibição. Ora, o sonho também é movimento na mesma medida: ele é, por defi nição, “uma imagem que não está mais lá” e literalmente – do ponto de vista de sua realidade imagética – um objeto inexistente. Pois o sonho lembrado não é mais o sonho visto, e o sonho visto é uma experiência sempre presumida e, a rigor, uma fi cção da memória tão incerta como uma lembrança encobridora. Talvez o sonho esquecido seja aquele que mais preserva a autenticidade de sua inexistência: ele conserva – em negativo – o movimento de sua passagem.

Assim, ao lado da exigência de fi gurabilidade, é o movimento que confere ao cinema e ao sonho uma natureza tão singular. Se, conforme propôs Cromberg, o sonho traz uma dimensão cinematográfi ca à sessão, é porque a análise tem como objeto “uma vida em movimento”, que “pede para ser escutada com o olho e vista pelos ouvidos” [19]. Também Miriam Chnaiderman [20], estudiosa da relação entre estética e psicanálise, ressaltou que – em que pese a transformação da fala em imagem inerente ao processo analítico, que busca tornar o discurso uma “poesia visual” (ou torná-lo cinema) – a imagem não deve ser dissociada da noção de movimento. A imagem, quando estática, perde sua potência estética e se torna uma coisa em si mesma, aprisionando o sujeito e impedindo o movimento vital. Aqui podemos reencontrar a metáfora da espiral e do quadrado [21]: a imagem está, por um lado, fi - xada no quadro do fotograma; mas, durante a projeção do fi lme, o fl uxo das imagens em movimento instaura um processo em espiral, que é a re-criação do objeto no espaço de ressonância receptiva do espectador.

A idéia de uma estática da imagem não deve ser tomada de modo literal, mas apenas como um modelo metafórico que representa a antítese do cinema-sonho. A fi gura do cinema-sonho emerge de uma leitura imaginativa de um fato histórico – o advento simultâneo do cinema e da teoria freudiana do sonho – e visa destilar da arte de fazer fi lmes sua dimensão maior: dar lugar a uma imagem em movimento rebelde a qualquer captura, seja pelo Eu onipotente, seja pelo mercado midiático. Seria, portanto, simplista e absurdo supor, por exemplo, que uma fotografi a ou uma tela estejam contaminadas por uma estática da imagem devido a suas propriedades físicas; ao contrário, tais objetos podem estar plenos de imagem em movimento. E, inversamente, o movimento físico dos fotogramas de um fi lme não garante em nada o movimento aqui aludido; não é ele que o determina. Afi nal, a mágica de transformar uma seqüência de imagens estáticas na ilusão de um movimento pode facilmente ser usada com a fi nalidade de produzir alienação e fascinação, submetendo a massa ao hipnotizador. O movimento do cinema- sonho não é físico, apesar de que este último pode servir de veículo do primeiro; trata-se de um movimento a um só tempo psíquico, estético e expressivo. Creio ser o gesto um bom modelo para tal movimento.

Por isso é preciso se perguntar: a que cinema nos referimos? A que sonho nos referimos? E ainda: com que teoria sobre o cinema e com que teoria sobre o sonho operamos?

Em cuidadoso ensaio sobre cinema e vídeo, Francisco Elinaldo Teixeira teceu uma crítica às teorias estéticas e às práticas cinematográfi cas que assimilam a câmera ao olho humano. Tal “arte retiniana” – segundo denominação de M. Duchamp – reduziu seu objeto e se entregou às demandas de um “olho-visão-olhar”; já no verdadeiro cinema de poesia, voltado para “as regiões mais recuadas do espírito-mente-cérebro”, a câmera tem como função “traçar movimentos e processos de pensamento e, assim, converter-se em uma espécie de terceiro olho: o olho do espírito” [22]. Essas indagações, oriundas da estética, podem subsidiar o psicanalista na renovação de sua teoria sobre o sonho.

Penso que o caráter cinemático de um pensamento por imagens almeja pôr em movimento as imagens, e, ao fazê-lo, animá-las, dotando-as de vida. Ele é afi m a um cinema de poesia e transcende uma arte puramente retiniana. Os movimentos oculares são insufi cientes para dar conta dessa cinemática; conforme a psicossomática psicanalítica veio nos lembrar, a atividade do sono rem não implica necessariamente sonhos; é preciso aqui distinguir o fenômeno neurofi siológico do fenômeno psíquico. O sonhar precisa ser construído: ele é sobretudo uma criação poética. A atividade cerebral que acompanha o sono rem indica que, mais do que uma atividade redutível ao órgão olho, o sonhar é uma forma especial de pensar que, no entanto, mobiliza a atividade do olhar de forma preponderante e peculiar [23]. Um pensamento por imagens: as imagens estão a serviço do movimento de animação, deixando de ser desenho estático para tornarem-se desenho animado. É a animação que confere gestualidade à imagem, assim como é a atividade simbolizante que gestualiza a ação.

O extravio desse pensamento por imagens pode levar a uma estática da imagem e a uma captura do sonho pela mesma. Creio que, no campo social, isso se traduz claramente na apropriação da imagem, realizada pela mídia, com o objetivo de produzir um fenômeno hipnótico de massas. O uso capitalista da imagem pela publicidade é emblemático desse extravio: a fi m de induzir o consumo de objetos tornados fetiche, ele busca induzir os sonhos por uma manipulação deliberada. Como sintetizou R. Mezan, a publicidade

seduz e excita a criança que existe em nós, e isso em todos os aspectos relevantes do funcionamento psíquico: o desejo sexual em suas várias formas, os anseios narcísicos e a vontade de superar os limites impostos pelas normas sociais sem por isso ser castigado [24].

Aqui, o que poderia se constituir em objeto-sonho transforma-se em objeto-fetiche, pervertendo-se a relação sujeito objeto: o sujeito se torna coisa, objeto capturado pela imagem, e o pensamento por imagens torna-se imagem sem pensamento [25].

No plano individual, muitas são as formas de extravio do sonho pela imagem, análogas às formas sociais de alienação por submersão à imagem massifi cada; a fi gura do sonho dirigível, proposta por Ferenczi, é um bom exemplo, assim como certos tipos de “viagem” com drogas [26]. É bom ressaltar, também, que a captura pela imagem não é um monopólio da máquina mercadológica; também em psicanálise estamos sujeitos aos mesmos riscos, já que, como assinalou Camila Sampaio, “não estaria menos aprisionado o sonhador inveterado, do que o espectador fascinado” [27]. A psicanálise contemporânea – sobretudo a partir da obra de Winnicott – tem se preocupado em identifi car quando se trata de um verdadeiro sonhar e quando se trata de um pseudo-sonho; neste último, a produção imaginária não comporta gestualidade: movimento vital do si-mesmo que busca a criação-encontro de objetos.

Um “sonho fílmico”: fascinação ou criação?

No exemplo que se segue – de um sonho próprio – mais do que a analogia entre sonho e fi lme, trata-se do entrelaçamento e da interpenetração entre ambos; o próprio sonho comporta uma discussão sobre o tema da relação entre sonho e artes visuais.

Estou em um barco e mergulho na água. Descubro que é bem raso e, portanto, não é perigoso. Mas, de repente, algo no fundo “pega” nos meus pés; são como mãos mecânicas. Penso: é uma armadilha! Em seguida, estou nadando e mexo em algo (um peixe elétrico?); levo um choque e acordo sobressaltado.

Ao acordar, lembrei-me de um fi lme a que havia assistido na véspera com meus fi lhos: “Pequenos espiões em 3d”. No fi lme, havia me chamado a atenção o jogo entre “vida real” e “vida virtual”, esta última referida especifi camente ao videogame. Um certo “gênio”, supostamente do mal, criara um novo game maravilhoso que, como uma armadilha, “prendia” as crianças que o adentravam, “roubando” sua vida psíquica. Misturavamse, nesse fi lme, ingredientes tais como a sedução de uma “Ilha dos Prazeres” (Pinóquio), uma fi - gura maligna e rancorosa que quer vingar-se do mundo, e o enredo típico de fi lmes de espionagem. O pequeno espião – herói do fi lme – deveria “entrar” no jogo (videogame) para tentar salvar a irmã e pegar o criminoso. Para tanto, vestia um capacete-simulador que criava a realidade virtual e, assim, adentrava o jogo; a partir daí, o fi lme era a própria realidade dentro do jogo, e as imagens se transformavam naquelas – características – produzidas por computador. Tratava-se, pois, de uma viagem28 para dentro do jogo. Uma das metas do fi lme parece ser justamente “brincar” com a questão da realidade virtual.

Ao assistir ao fi lme, fi quei tomado por essa “brincadeira”. Lembrei-me do fi lme Sonhos, de Kurosawa, no qual os personagens fi guravam dentro de um quadro de Van Gogh. Estava então escrevendo sobre as passagens entre a vigília e o sono, e o fi lme me estimulava a refl etir sobre o assunto: como se situar entre fi cção e realidade, entre percepção onírica e percepção de vigília, entre fi lme e sonho e, sobretudo, em relação ao problema do que confere substância à experiência da vigília, permitindo diferenciá-la do sonho.

Lembrei-me também de que, há muitos anos, quando começara a fi car atraído pela teoria psicanalítica dos sonhos, assisti a outro fi lme que me marcou. Neste, uma fi cção científi ca, havia-se descoberto uma forma de adentrar os sonhos; no fi lme, um cientista (viajante) especialmente treinado entrava no sonho de alguns “pacientes”. Um “doente” por perturbações no sono – atormentado por sonhos terrorífi cos e repetidos – era “curado” e “salvo” por este tratamento heterodoxo: um outro ia lá para ajudá-lo a enfrentar seus monstros perseguidores, auxiliando-o a reagir em sonho justamente no momento em que iria despertar aterrorizado. Evidentemente, nesse procedimento, corriam-se certos riscos… Eu imaginava, então, essa situação como semelhante ao trabalho do analista; gostava desta comparação e, ao mesmo tempo, considerava-a ingênua e tola.

A armadilha aludida no sonho parecia redobrar a armadilha do fi lme visto na véspera do sonho. Neste, havia um falso “Cara” dentro do game, uma espécie de falso líder que conduziria o jogador ao desastre e que precisava ser distinguido do verdadeiro. Armadilha e impostura aqui se sobrepunham. O “lugar com água” do sonho (um lago, um mar ou um rio?) logo evocou outro elemento do fi lme. Na realidade virtual do videogame havia um “lugar tomado por lava” que poderia ser muito perigoso, mas mostrava-se o contrário – “é apenas lava fria, é um truque do jogo”. No entanto, seguir por este caminho mostrou-se também uma armadilha, preparada pelo “gênio do mal” (Toymaker) para trazer os heróis para a sua prisão.

A brincadeira fi cção-realidade proposta pelo fi lme era acompanhada por um efeito especial in loco: a sala de projeção do cinema era preparada – por mais uma “brincadeira” – para redobrar e complementar os “efeitos especiais” do fi lme ao vivo! Assim, um “lugar frio” retratado em certas cenas do fi lme era acompanhado por jatos de vapor que jorravam na sala de cinema durante a projeção de tais cenas. Esse “efeito especial” lembroume de outro semelhante, que acontecia durante a projeção de um outro fi lme ainda a que assisti tempos atrás em um parque temático da Disney; a associação se evidenciava através do elemento “mãos mecânicas que pegam no pé”. Nesse outro fi lme – que era em 3d –, um rato havia fugido. De repente, todos os espectadores sentem nas suas canelas jatos de ar que imitam perfeitamente um animal furtivo, correndo e roçando; gritos de pânico, muitos erguem as pernas!

Vejo que o elemento “fi lme em 3d” desse sonho não é apenas um elo intermediário (Freud) pouco importante, que serve para ligar elementos signifi cativos e possibilitar uma condensação: ele é também expressivo por si mesmo. Durante a projeção, todos usam óculos próprios para se ver em 3d. Esses óculos têm um formato especial, com tampões laterais que dão a sensação de um “fechamento”; eles lembram o capacete virtual do fi lme, como que procurando redobrar e induzir a entrada na viagem virtual. Tudo parece uma ótima idéia, pensava: o efeito indutor de um salto para outra realidade, que é inerente ao cinema, aqui se potencializa, já que, acrescentada mais essa dimensão que só a visão binocular pode apreender. A “brincadeira sobre o virtual” se torna mais envolvente!

Mas talvez haja aqui um engano básico, uma armadilha que cheira a impostura: desde quando a tecnologia, os efeitos especiais e os artifícios indutores podem fazer a arte ser mais arte do que ela é? Serão as crianças de hoje capazes de “viajar” em um fi lme mudo, em preto e branco? Desde quando sonhos podem ser “produzidos”, “induzidos” ou “dirigidos”, seja em um estúdio cinematográfi co, seja em um laboratório de fi cção científi ca, seja por um Eu domador de inconsciente? Ora, um capacete não faz um sonho!

Vejo-me, assim, em meio a esta oscilação: um envolvimento com o poder evocativo da imagem – “agora em três dimensões e, portanto, mais penetrante” –, e o repúdio da fascinação por um falso “Cara”, imagem anti-arte, tanto mais patética quanto mais ela se esforça em imitar a vida. Para sair desse dilema, devemos ter em conta o forte diálogo que se estabeleceu entre filme e sonho, em uma relação de entrelaçamento e interpenetração entre dois espaços: o pessoal e o cultural.

Espaços oníricos compartilhados

Há aqui uma questão de grande relevância. Segundo certo ponto de vista, um fi lme – seja qual for sua qualidade artística –, ao fazer-se sonho e ser relatado, por exemplo, ao analista, torna-se um outro objeto; o trabalho associativo é responsabilidade e autoria do sonhador. A dimensão estética dos objetos – fi lme e sonho – não é relevante, e o fi lme é um elemento totalmente acessório. Mas se a produção imagética da cultura na qual estamos imersos se torna, tão amiúde, ocasião para sonhos pessoais, um fi lme sonhado não pode ser reduzido a resto diurno ocasional, como aqueles elementos atuais e não importantes descritos por Freud: ele é também fonte de sonho.

A relação entre o espaço privado do sonho e um espaço onírico comum (que no sonho fílmico relatado tomou a forma de um fi lme socialmente compartilhado) mostra-se, assim, bastante complexa. Kaës abordou o assunto de maneira original e extensiva, desenvolvendo a hipótese da polifonia do sonho: “a polifonia do sonho descreve como, a partir dos dois umbigos do sonho e da formação de um espaço onírico plural, comum e partilhado, o sonho se organiza por uma combinação de muitas vozes. O sonho, a mais íntima e a mais egoísta de nossas produções noturnas, o mais banal de nossos sintomas, é tecido por uma trama polifônica de interdiscursividade” [29]. Através de uma construção rica e elaborada, a contribuição de Kaës renova signifi cativamente a teoria do sonho em psicanálise, especialmente no que tange à interface entre individual e social. Partindo de um estudo dos espaços psíquicos do sonho e utilizando- se de amplo material clínico em que uma dimensão compartilhada do sonhar pode ser reconhecida – com especial ênfase para a situação grupal –, o autor chega à proposição de um “segundo umbigo do sonho”: ele liga o material onírico pessoal a uma miscelânea intersubjetiva, na qual se deposita e da qual se alimenta o sonho de cada um. Na regressão – tanto do sonho como da situação grupal –atingem-se certas zonas de indiferenciação e de porosidade entre os respectivos espaços individuais.

Começamos a compreender, assim, todo interesse que contém a discussão interligada entre sonhos e artes visuais. As condições culturais em que se experimentam os fi lmes e produções audiovisuais em geral (videogames, televisão, “cinema em casa”, videoproduções informatizadas etc.) interagem dialeticamente com os espaços oníricos pessoais de todos nós, da mesma maneira com que a literatura – e particularmente os contos de fadas – têm conformado ao longo dos séculos um tipo de mentalidade e o espaço onírico da infância e da vida adulta.

O pesquisador de sonhos deve estar atento ao que se passa nos espaços oníricos comuns; a negligência deste fator pode conduzir a distorções e a erros de apreciação que a psicanálise de hoje deve cuidar de evitar. Estamos cada vez mais conscientes da impossibilidade de tomar a obra e o gênio criador independentemente de seu contexto cultural e do sujeito da recepção. É preciso reconhecer que muitas das críticas referentes à desconsideração de fatores culturais, históricos e antropológicos de que a psicanálise tem sido alvo por parte de diversos ramos das ciências humanas certamente procedem.

Ora, também as ciências humanas podem ser enriquecidas pelos estudos do sonho e do inconsciente. O estudioso da estética pode enriquecer seu trabalho levando em conta as condições de recepção do sujeito que se relaciona com a obra de arte – seja como um “sonhador” co-criador, seja como um consumidor. Como está o “potencial onírico” do sujeito da recepção? Até que ponto ele é capaz de recriar a obra enquanto se relaciona com ela, sendo portanto co-autor do espaço onírico compartilhado da cultura? E, por outro lado, em que momentos ele se torna simples consumidor, que importa acriticamente e reproduz em si aquilo que é vendido pela mídia na sociedade de massas? Que fatores culturais e individuais contribuem para que percorra uma outra dessas duas trilhas?

Cabe interrogarmo-nos se – e como – mutações na relação do homem com a imagem no campo da cultura repercutem nos processos oníricos individuais. Assim, por exemplo, o advento do videocassete e do dvd tem tido como efeito uma espécie de “privatização” do espaço de projeção do fi lme e uma transformação signifi cativa do que entendemos e experimentamos como cinema: a “experiência fílmica” não é mais a mesma… Ora: por decorrência, a relação do espectador com um objeto supostamente evanescente – “uma imagem que não está mais lá” – tende a mudar, fenômeno cultural cujas conseqüências novas pesquisas devem buscar compreender.

Retornemos ao nosso exemplo singular. Dentre as linhas associativas derivadas do “sonho do fi lme em 3d”, há uma cuja origem em um espaço psíquico comum pode ser reconhecida. Na noite da véspera do sonho, conversava em família sobre a passagem-mergulho para uma realidade outra, retratada no fi lme Pequenos espiões em 3d na forma do mundo virtual do videogame. Comentávamos como essas passagens são freqüentemente retratadas na literatura e na fi lmografi a infanto-juvenil, como no caso da Alice de Carroll, do fi lme Atlantis dos estúdios Disney e outros. Minha fi lha acrescentou o exemplo do Mágico de Oz, e iniciou-se uma discussão: será que, ao ser carregado pelo vento forte do redemoinho, o protagonista está indo para a terra dos sonhos? A discussão baseava-se na versão cinematográfi ca, recentemente vista por ela. Ela mesma argumentou taxativamente que sim: trata-se mesmo de uma “viagem para a terra dos sonhos”, pois quando passa o furacão, a tela fi ca virando, virando, virando, e isso é sinal de que está virando sonho… [30]

* * *

Sonhamos – e sabemos que sonhamos – também segundo um código culturalmente com partilhado; as crianças bem o sabem. Talvez a graça de um fi lme – e de poder sonhálo – seja a ilusão de uma viagem compartilhada para uma realidade outra [31], como no caso da turma de espiões que jogam juntos o jogo vir tual, ou do espantalho e seu grupo mambembe de O mágico de Oz. Aliás, trata-se mesmo – como vimos – de uma questão de magia! A solidão essencial pode ser, assim, contrabalançada por um espaço intermediário. A força das imagens pode aniquilar o pensamento pela massifi cação, mas pode também possibilitar um espaço compartilhado de magia e ilusão. É o movimento que arranca o imaginário de uma fascinação narcísica, animando as imagens, que assim se tornam objeto de intermediação entre o si-mesmo e o outro. Desta maneira, constitui-se a verdadeira arte visual.

Todos nós que compartilhamos a mesma “realidade exterior” – ou que temos a mesma ilusão – estamos, de certo modo, reunidos em uma mesma sala de cinema; talvez na mesma caverna ainda do “homem primitivo”. Nela, ora nos dissolvemos diante do poder hipnótico da imagem, e ora podemos re-encontrar o nosso si-mesmo em um espaço de sonho comum; como bem assinalou Winnicott, esse espaço intermediário comum e compartilhado é o espaço do brincar e da cultura. Oscilamos continuamente, portanto, entre a alienação do Eu na massa indiferenciada e o movimento singular do si-mesmo, próprio do viver criativo.

Podemos estabelecer, assim, um paralelo entre a estrutura do olho, a sala de projeção de cinema e o mito da caverna de Platão. O olho, com sua tela de projeção privada que é a retina, serviu de protótipo para os inventores das “máquinas de imagem” – iniciando pela “câmara escura”, tão utilizada pelos pintores a partir do século xvi, tais como Vermeer, até a máquina fotográfica e o cinema, incluindo as mais recentes inovações tecnológicas da era digital. Trata-se de “invenções” derivadas de um insight da pesquisa científica a partir do conhecimento do olho como órgão humano. Não me parece descabido supor, também, que Platão tenha tido uma antevisão profética [32] sobre as descobertas científicas da estrutura do olho e sobre a invenção dos processos projetivos das artes visuais. Ao dar início a uma “filosofia da visualidade”, nos chamou a atenção para a complexidade paradoxal que o visual comporta [33]; daí a força e a imortalidade do mito do caverna. Esse paralelismo nos permite compreender, pois, ainda que de relance, a grande potência significante da visualidade e suas sombras para a experiência humana. O advento da psicanálise e sua teoria do sonho representa, na história da cultura, uma contribuição significativa nesse campo, constituindo certamente mais um elo na luta do homem pela inteligibilidade da potência misteriosa do visual.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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